terça-feira, janeiro 18, 2011

OS TEXTOS ROÍDOS

Se a Literatura é – como disse Pedro Tamen – a única História possível do homem, ela é também uma história que se faz de intermináveis histórias, um permanente fazer e desfazer das tramas, como Penélope e o seu manto perante o assédio dos pretendentes.
Agora que se fala muito do Filme do Desassossego, venho de um jantar de amigos em que a autobiografia sem factos de Bernardo Soares – o Livro do Desassossego – foi servida como sobremesa. Entre outros, lemos o fragmento 452 da edição de Richard Zenith, que nos fala do aprendiz de escritório que coleccionava tudo o que pudesse encontrar sobre viagens.
Ia este jovem pelas agências de turismo, pedindo folhetos sobre viagens para Itália, para a Índia e outros lugares; tinha fotografias de barcos e navios, mapas de países e continentes; conhecia as ligações possíveis entre Portugal e a Austrália, entre Portugal e outros pontos do mundo. Diz o narrador que ele era o maior e o mais verdadeiro viajante, pois viajava com a alma e não com o corpo!
Também pelos meus catorze anos viajava desta forma. Como não podia visitar os Campos Elísios de Paris, as margens do Reno ou as ruínas imperiais de Roma, ia pelos balcões do Turismo Francês – na Rua do Ouro –, pela secção de turismo da Embaixada Alemã – que já não sei onde ficava –, e pelo Turismo de Itália (Ente Nazionale per il Turismo) – sediado no Marquês de Pombal –, e recolhia brochuras, mapas e informações sobre aqueles locais, viajando com a alma como o jovem aprendiz do escritório de Bernardo Soares. Uma vez, aí por 1962, fui mesmo à Embaixada de Cuba – que ficava, se não estou em erro, na Rua Pascoal de Melo – e vim de lá carregado de propaganda do novo regime de Fidel de Castro. Grande e revolucionário viajante era eu naquele tempo! Mas passemos adiante, não foram estes detalhes autobiográficos que aqui me trouxeram.
Do rapazinho do Livro do Desassossego fez Mário Cláudio o narrador da novela Boa Noite, Senhor Soares. Diz ele no capítulo V: Empenhava-me em ir recortando dos jornais velhos do patrão Vasques, e das revistas que ele assinava, as ilustrações que mais me atraíam, algumas delas representando os paquetes colossais, ou até mesmo os humildes cargueiros, e enchia com tudo isto, colado a goma arábica, cadernos e cadernos de almaço que guardava em caixas de cartão, e debaixo da cama.
Assim se entrecruzam os fios no manto de Penélope. É a Literatura como autofagia criadora – os textos roídos, como diz Machado de Assis no capítulo XVII de Dom Casmurro – , o desafio dos intertextos e o permanente recontar de histórias – esse canto de sereias que não se extingue e sempre desejamos ouvir. Era sobre isto que me interessava falar, não das minhas remotas experiências de viajar com a alma.

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