quarta-feira, agosto 05, 2009

PEREGRINAÇÕES (continuação)

Camilo nunca foi feliz na casa de S. Miguel de Ceide. Herdada do marido de Ana Plácido, por lá viveu durante vinte e sete anos de intensa criação literária. Recebia Castilho e os seus discípulos, que vinham de Lisboa para o visitar, como atesta o tosco monumento de pedra erguido à entrada da propriedade. Deu um tiro na cabeça, sentado numa cadeira de baloiço que ainda lá está como testemunha muda do drama de um desistente. Foi em 1890, um ano depois do suicídio de Soares dos Reis, um ano antes do de Antero de Quental.

terça-feira, agosto 04, 2009

PEREGRINAÇÕES


A casa de José Régio. Aliás são duas casas: a dos pais, ao centro, e a da madrinha Libânia, com o seu jardim e mirante, à direita. A esta se recolheu o Poeta no final da sua vida, nela morrendo em 22 de Dezembro de 1969 em consequência de um enfarte de miocárdio que não quis tratar no único local onde o poderia fazer com alguma probabilidade de êxito: o hospital.Em Vila do Conde há ainda a casa onde, entre 1881 e 1891, viveu Antero de Quental. E muito próximo desta, praticamente na mesma rua, uma que foi habitada por Camilo Castelo Branco.

domingo, agosto 02, 2009

SOBRE AS VIAGENS







O Régio era uma pessoa muito modesta. Esteve a explicar-me que não precisava de sair do País porque aqui encontrava tudo. Contou-me de um sapateiro de Portalegre que tinha sodomizado a filha. Portanto, dizia ele, todo o universo estava em Portalegre. Fiquei horrorizado com esta ideia. O universo todo não está em Portalegre. (…) Tive a percepção imediata de que aquilo era uma redução absurda. O que não é de espantar no Portugal de Salazar. Era a isso que o Salazar nos queria reduzir. (…) Todos aqueles homens da geração da Presença, como depois os neo-realistas, foram vítimas. Não perceberam que havia mais mundos no mundo. Não os deixaram.

Vasco Pulido Valente em entrevista à revista Ler (Julho de 2009)

Neste meu estado, falam-me em viagens! Digo, eu próprio, que tenciono ir à Itália no próximo ano; – e o mais curioso é que efectivamente alimento esse vago plano: ir lá com os Mirandas. Na verdade, porém, que me interessam as viagens? Que me interessam pessoal e profundamente? Que poderão ensinar-me que eu não saiba, dar-me que eu não tenha? (…) É aos extrovertidos que as viagens interessam: aos cujo relativo vazio de vida interior se tapa com uma aparência de enriquecimento. Eu sei que é em mim que tenho o mundo – o mundo que me é possível apreender.

José Régio em Páginas do Diário Íntimo

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está para mim em parte alguma. (…) Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.

Fernando Pessoa / Bernardo Soares em O Livro do Desassossego



Não há nada como dar a palavra aos próprios!

sábado, junho 20, 2009

MINISTRO DEBALDE

O ministro Augusto Santos Silva respondeu à intervenção dum deputado do Partido Ecologista “Os Verdes” que levou um balde para o Parlamento. Um balde furado, pretendendo mostrar com tal auxiliar retórico a ineficiência da política energética do governo.
Falando do verbo baldear, derivado de balde - segundo referiu, muito usado na marinha mercante -, disse o aguerrido ministro que os ecologistas deviam “varrer com baldes de água os (seus) convés” , repetindo imperativamente: “baldeiem dos vossos convés os preconceitos.”
Só que o plural de convés é conveses, de acordo com o que se pode ler, por exemplo, em Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, nas regras relativas à formação dos plurais dos nomes.
Um pequeno engano, tão pequeno que nem tira votos, nem prejudica a carreira política do ministro. Isso é, afinal, o que mais interessa, e que se "balde" a língua.

quarta-feira, junho 10, 2009

LUÍS DE CAMÕES ( I )

Camões e as Tágides, Columbano, Museu de Grão Vasco
Há vários meses que, por razões que não são para aqui chamadas, ando acompanhado de Camões. Para ser mais preciso, do Camões épico, o d´Os Lusíadas, o tal poema que serviu em tempos para os estudantes dos liceus se treinarem na divisão de orações. Assim, a epopeia camoniana era apresentada aos liceais não como um corpo vivo, apetecível, mas como um cadáver pronto a ser dissecado sobre uma mesa de anatomia.
Falar d’ Os Lusíadas é tema vasto. Há que ir por partes. Hoje, 10 de Junho, falo do parecer do censor do Santo Ofício, Frei Bartolomeu Ferreira, que analisou a edição de 1572. Diz o dominicano:

Vi por mandado da santa & geral inquisição estes dez Cantos dos Lusíadas de Luís de Camões, dos valerosos feitos em armas que os Portugueses fizerão em Ásia & Europa, e não achey nelles cousa algua escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes, somente me pareceo que era necessário advertir os Lectores que o Autor pera encarecer a difficuldade de navegação & entrada dos Portugueses na India, usa de hua fição dos Deoses dos Gentios. (…) Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo Poético não tivemos por incoveniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salva a verdade da nossa sancta fe , que todos os Deoses dos Gentios sam Demónios.

Ora aí está: Baco, inimigo dos Portugueses, e Vénus, a doce deusa que por mais de uma vez , ao longo da viagem para a Índia, protegeu a armada do Gama, além de todos os outros deuses apresentados por Camões, são demónios, e, ao mesmo tempo, ficções. O bom inquisidor arrumava assim a questão, sem ver nada de escandaloso no poema: nem Vénus a seduzir Júpiter no Canto Segundo, nem os amadores das ninfas no Canto Nono.
Convinha muito à Ordem de S. Domingos aquilo que Camões diz no poema contra os Jesuítas, émulos dos Dominicanos no árduo trabalho de conquistar o Reino dos Céus. Só por tal rivalidade permitiram os homens da Inquisição (Dominicanos) que a epopeia fosse publicada sem nódoas expurgatórias. Ainda bem.

domingo, junho 07, 2009

PLATÃO EM DIA DE ELEIÇÕES

Jean Delville, L´École de Platon, 1898, Musée d´Orsay, Paris
O partido que escolhi nestas eleições está à beira de ganhar. Uma vitória esmagadora, por maioria absoluta, embora, em verdade, não seja bem um partido – talvez uma espécie de frente popular, heteróclita, com distintos níveis de motivação e consciência. Assim, não foi por acaso que me encontrei a ler, neste fim-de-semana, vastos passos do diálogo Górgias de Platão. A retórica e a política sem princípios, a criação pela persuasão de um estado de crença sem ciência – foi tudo isso que o Mestre da Academia denunciou que a mim me afastou das urnas. O Cavaco que vote, mais o Dias Loureiro. Se calhar, apesar da reclusão indigna, até o Oliveira e Costa não deixará de exercer o sacrossanto dever. Têm boas razões para isso. Prova-se, afinal, que não são ingratos para com o sistema que os criou.

sexta-feira, maio 29, 2009

PANFLETO


EM 7 DE JUNHO NÃO IREI VOTAR. Não o faço por comodismo, para aproveitar os feriados e partir de férias. Estarei por cá, e nem sequer penso aproveitar os dias de praia, se é que vai dar em termos meteorológicos para tais recreios. Faço-o por imperativo de consciência! A política nacional afunda-se num pântano (reconheço agora a pertinência da expressão usada por aquele chefe de Governo que, perante o cenário de sombras, optou corajosamente pela desistência). Um pântano bem ilustrado pelo impasse indigno a que se chegou no processo de eleição do Provedor de Justiça. O nosso sistema partidário está caduco, prisioneiro de interesses e de glórias vãs, pedindo votos quando nada faz pelo povo, pelas massas trabalhadoras, pelos reformados pobres e pelos indigentes. O sistema partidário não pensa nos outros, só pensa em si. Sobram-nos os casos tristes dos bairros problemáticos, explorados com avidez pelos canais de televisão; os escândalos financeiros que envolvem membros dos partidos e do Conselho de Estado; o circo parlamentar onde a bancada do Governo e as da Oposição rudemente se confrontam em vez de procurarem soluções para a superação da crise. É o momento de lhes fazer sentir que não é esse o caminho, que a liberdade exige respeito por quem trabalha, por quem não está comodamente sentado à mesa do orçamento: trabalhadores (nacionais e imigrantes), empresários, estudantes, professores, investigadores. NÃO VOTAR EM 7 DE JUNHO É UM AVISO AOS SENHORES DO PODER, UM IMPERATIVO PATRIÓTICO!

segunda-feira, maio 25, 2009

SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA

Catarina Wallenstein no papel de Luísa Vilaça
Adaptação ao cinema, por Manoel de Oliveira, de um conto de Eça de Queirós, escrito em Cuba em 1873, quando o autor ali desempenhava funções diplomáticas. Um Macário e uma Luísa Vilaça do século XXI. Um belo filme sobre o texto famoso do grande Eça.

domingo, maio 24, 2009

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XVI )

Depois de A Cidadela Branca, leio Istambul de Orhan Pamuk. Pergunto-me se o hüzün istambulense (uma forma de melancolia típica dos habitantes da cidade) não terá algo a ver com a saudade portuguesa, esse sentimento de privação e incompletude em que Teixeira de Pascoaes viu a essência do génio português, aquilo a que chamou a única síntese perfeita entre o sangue ariano e o sangue semita. Pamuk dá-nos sobejos exemplos dessa melancolia de Istambul, um nevoeiro que vem do fundo dos tempos, sitiando as almas dos homens e os seus sentimentos.
Talvez a única ligação entre o hüzün da grande metrópole turca e a saudade portuguesa seja esse comum sentimento de decadência, de perdidos fulgores civilizacionais. Também eles, os turcos otomanos, tiveram as suas Índias. Submeteram vastas regiões do Médio Oriente, do leste da Europa e da África mediterrânica, tendo chegado às portas de Viena e instalado o pânico entre a Cristandade dos séculos XV e XVI.
Mas tiveram Lepanto, como nós tivemos Alcácer Quibir, e tudo se desfez. Chega sempre um momento em que a História se ri da soberba dos povos.

sábado, abril 25, 2009

25 DE ABRIL

“Acham que aquilo é um telejornal?” – A interrogação retórica do homem do leme indignou o Georg von Trapp da TVI (pelo menos de tal se mascarou numa das últimas galas da estação!), como se os telejornais de que é director não fossem, desde sempre, o exemplo acabado da desinformação, do oportunismo, visando claramente as audiências e os benefícios comerciais que as mesmas proporcionam. A pose institucional com que veio a terreiro, qual falsa dama ferida na sua honra, ficou ao nível da grotesca fealdade da apresentadora e da decrepitude física do comentador. Escusava era de ter falado do 25 de Abril. Não é certamente pelos ideais democráticos do movimento que anda metido no mundo da televisão.

domingo, abril 19, 2009

PEREGRINAÇÕES

Numa passagem d´A Cidade e as Serras, Zé Fernandes sobe com Jacinto aos altos de Montmartre, onde então se construía a Basílica do Sacré-Coeur, e olhando Paris põe-se a filosofar sobre os malefícios da cidade e a vil exploração das plebes pela burguesia triunfante. O discurso inflamado do companheiro de Jacinto, atormentado com a perversidade urbana e a barbárie capitalista, só se acalma à hora do jantar, num luxuoso restaurante do Bois de Boulogne, perante um vinho gelado com que põe termo às securas da garganta e às suas filosofias de ocasião. Este trecho do romance queirosiano é a melhor recordação que guardo do Sacré-Coeur, lugar muito frequentado por turistas nestas tardes mornas de Primavera.
Porém, há sempre motivos interessantes a descobrir. Num pequeno jardim sobranceiro à Rue Chappe, praticamente no espaço sagrado da Basílica, há uma estátua de bronze em cujo pedestal podemos ler:


AU
CHEVALIER
DE LA BARRE
SUPPLICIÉ À L’ ÂGE DE 19 ANS
LE 1er JUILLET 1766
POUR N´AVOIR PAS SALUÉ
UNE
PROCESSION


Este é o caso do Chevalier de La Barre que indignou Voltaire. Não deixa de ser tocante que ali à beira do templo, perante o espírito do lugar, se preste homenagem tão expressiva a uma vítima da intelorância religiosa.

segunda-feira, abril 06, 2009

"UMA NOITE COM O FOGO"


O romance Uma Noite com o Fogo, de António Manuel Venda, foi apresentado no dia 1 de Abril na loja Bertrand da Avenida de Roma.
Trata-se do relato de uma experiência vivida, ideia sustentada pela epígrafe de Mário Quintana:

“O autor nada mais fez do que vestir a verdade…”.

Porém, a experiência vivida não é descrita como numa simples crónica. A verdade dramática vestida pelo autor não prescinde da ficção, esse canto de sereia em que acreditamos como se fosse a realidade pura.
É essa mistura de referencialidade e imaginação que nos leva a classificar o texto de António Manuel Venda como uma autoficção, designação de género definida basicamente como um relato de conteúdo simultaneamente autobiográfico e romanesco em que se regista identificação nominal entre autor, narrador e protagonista.
Apesar de em Uma Noite com o Fogo essa identificação não ser explícita, a sobreposição daquelas três instâncias não deixa de estar presente ao longo de todo o texto. Percebe-se bem de onde e para onde viaja o protagonista naquela noite em que o fogo andou à solta. Percebe-se bem onde ficam aqueles montes de sobreiros e medronheiros assolados pela fúria das chamas. Na personagem que se defronta com o fogo não conseguimos ver outra figura que não seja a do próprio autor, lá na serra algarvia onde nasceu e onde viveu os tempos da infância e da juventude, a tal floresta do sul que deu nome ao seu blogue – uma floresta destroçada pela incúria de todos, não só dos que se sentam nas cadeiras do poder.
O tempo da história resume-se a uma única noite, o suficiente para emocionar o leitor, tanto pelo combate desproporcionado contra a calamidade natural (?), como pela intervenção frequente da memória autoral numa espécie de “recherche du temps perdu” – um mergulho no mundo da infância e da inocência perdida.
Um livro muito interessante de António Manuel Venda, dentro do género a que nos habituou, tão raro, por enquanto, nas nossas letras.

terça-feira, março 10, 2009

CRISTINA BRANCO canta JOSÉ AFONSO



Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar
Pelos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio
Congregando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

terça-feira, fevereiro 24, 2009

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XV )

Jesuina (assim mesmo, sem diacrítico no i), protagonista de As Bicicletas em Setembro, talvez não fosse viúva no sentido usual do termo. Há muitas formas de viuvez: a mais dolorosa será, provavelmente, viuvar de alguém que se encontra vivo.
Diz-se na contracapa do livro que todos nós já perdemos alguma coisa. Todos nós já perdemos alguém, embora o mais importante nem seja a perda originada pela morte ou aquela que a separação tantas vezes impõe aos que se amam. A perda mais difícil de aceitar é a das pessoas que saíram da nossa vida pelos seus próprios pés, ou, em outra variante, a das pessoas que nunca nela chegaram a entrar.
Jesuina vivia nas margens do tempo e do espaço, reclusa na sua própria casa, cercada de jornais velhos e de crianças de quem tomava conta, lendo o Amor de Perdição, inventando cores para as palavras como Rimbaud inventara para as vogais.
Tudo isto num bairro cinzento, pesado como o odor da salsugem que sobe do rio no período da vazante – ali à beira do Largo da Paz, dos quartéis da Calçada da Ajuda, do Jardim Botânico, da casa de Alexandre Herculano, da Torre do Galo, do Salão Portugal e das Terras do Desembargador.
Jesuina não é só do bairro da Ajuda, é de todos os bairros com as suas ruas de solidão.

(Baptista-Bastos, As Bicicletas em Setembro, Porto, ASA Editores, 2007.)

domingo, fevereiro 08, 2009

O PROBLEMA DO DESEMPREGO

Atravessou como se seguisse num carreiro de formigas a estreita passagem entre a cancela e o posto do pessoal da segurança. Tinha acabado de chegar no autocarro fretado pela empresa, uma lenta viagem diária por lugarejos e ermos, recolhendo as operárias em diversos pontos do percurso. Continuou pelo espaço alcatroado do parque de estacionamento até se meter por uma porta lateral do edifício em cuja platibanda se podia ler:

FÁBRICA DE COMPONENTES DE ELECTRÓNICA

Tinha quinze minutos para despir a gabardina e o casaco, deixar a roupa e a mala no cacifo, vestir a bata, tomar um café tirado na máquina de bebidas do refeitório, encaminhar-se para o posto de trabalho, aguardar o som da campainha que às oito e meia em ponto dava o sinal para o começo da laboração. Antes, à entrada da área fabril, ainda passaria pelo chefe de turno, sempre com a folha de produção nas mãos e um olhar de cobiça comendo-lhe as formas do corpo. Teria ainda cinco minutos para, já sentada no seu lugar, pensar em algumas coisas da vida.
Às sete horas deixara a criança na ama. Passara pela padaria, voltara a casa para tomar o pequeno-almoço, à pressa, antes de se dirigir ao ponto de paragem do autocarro. Levantara-se atordoada, custando-lhe enfrentar a luz, após uma noite de sexo e pouco sono. Tinha pouco mais de trinta anos, o marido à procura de emprego, um filho pequeno. Trabalhava na fábrica desde os vinte e dois anos de idade.
Passara algum tempo na Suíça, chamada por familiares da diáspora com próspero negócio de restaurante e casa de hóspedes. Fazia camas e limpava quartos, chambres, rooms, zimmers – era como quisessem chamar-lhes, que todos aqueles nomes estavam inscritos no reclamo luminoso virado para a estrada que marginava o espelho escuro do lago. Todos menos o nome português, pois não contava para tal efeito a língua nacional, apenas o dialecto em que se dizia e escrevia o árduo trabalho de todos os dias.
Não chegara a concluir o nono ano. O pai era picheleiro, a mãe fazia serviços de limpeza e amanhava o quintal onde floria uma nespereira sobre canteiros de ervilhas e ervas de cheiro. Nunca dispôs de ambiente familiar estimulador dos estudos. Depois das aulas ajudava na cozinha dum restaurante, tomava conta de dois irmãos, e namorava. Fazia-se uma mulher de mão-cheia, bonita e apetecível como um fruto fresco. Os clientes do estabelecimento, jogadores de cartas e amigos dos copos, decrépitos como os velhos canecos que vinham à mesa, sibilavam epigramas obscenos quando a viam passar, e arriscavam sorrisos de dentes foscos, a saliva cobrindo-lhes os cantos da boca, aguados de lascívia e míngua.
Foi numa noite de S. João. Um odor álacre a sardinha assada, o desvario do baile, uma neblina que subia do rio e fazia brilhar o chão das ruas, violando o ciclo natural das estações. Foi por amor ou desejo. Passou a andar de mão dada, às claras, sem medo de ninguém, como se a noite fria de Junho lhe tivesse outorgado um novo estatuto, uma nova força para enfrentar a vida. O pai não tolerava as intimidades de que ia tomando conhecimento, enquanto a mãe contemporizava, fazia que não via nem ouvia. Uns meses depois, subia a um terceiro andar dum prédio antigo de onde se divisava um grande monte, escuro como uma fortaleza, na margem esquerda do rio. Saiu de lá dilacerada e fria, de barriga dormente e pernas frouxas, com uma caixa de comprimidos de sulfamidas na mão.
Do fundo do tempo vieram os cadernos da infância: redacções sobre o Natal e o Dia do Pai, desenhos de girassóis coloridos e casas com duas janelas e uma porta, semelhantes a caras espantadas, de olhos e boca bem abertos perante o inverosímil da paisagem. Num nos cadernos, escreveu:

Quando for grande quero ser enfermeira para tratar as pessoas doentes, os velhinhos e os desempregados sem dinheiro.

Não se lembrou de mais nada para lá daquele ponto. Voltara de novo ao equador da vida. Tinha pouco mais de trinta anos, o marido à procura de emprego, um filho pequeno que deixara na ama às sete horas da manhã.
Não deu conta de que há muito havia tocado a campainha para o arranque do trabalho. Ela disse depois que não ouvira, que se deixara escorregar no plano inclinado duma estranha viagem até ao ponto mais distante e próximo de si, e que tal incidente até deveria ser avaliado pela medicina do trabalho, pois talvez fosse o resultado da tensão quotidiana vivida na fábrica, o medo constante de não atingir os objectivos exigidos pela empresa. Desculpas que não mereceram acolhimento, pois a folha de produção do chefe de turno, apensa ao processo disciplinar, não deixava dúvidas: mais de cem unidades por produzir, o efeito multiplicador induzido sobre os postos de trabalho a jusante, um prejuízo de grossas proporções, algo nunca visto numa empresa com tão eficiente organização fabril. E depois ainda se admiram, referia o despacho da sanção disciplinar, se a fábrica for deslocada para os países do Leste ou para a Ásia.
Chegou a casa, já tarde, com uma folha carimbada para apresentar no centro de emprego da sua área de residência. Encostou a cabeça ao espaldar alto duma velha cadeira e nem por um momento pensou na vida passada. Agora só lhe interessava o que viria a seguir: tinha pouco mais de trinta anos, o marido à procura de emprego, um filho pequeno que deixara na ama às sete horas da manhã, e que, dava-se conta naquele momento, ainda lá estava, esquecido pelos progenitores, aturdidos, a braços com o problema do desemprego.

domingo, dezembro 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIV)

E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria , ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignomínia crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico. – Isto é dito por Almeida Garrett nas Viagens, cuja história decorre em Julho de 1843, em pleno período da ditadura de Cabral. Dito por Garrett e não por um seu narrador, pois há suficientes provas, ao longo de toda a narrativa, da identificação do autor com o narrador e protagonista. A crítica costuma enfatizar a complexidade da obra, os seus diferentes níveis (narrativa de viagem, novela, carta) e o hibridismo formal típico do Romantismo, mas raramente se detém nas suas marcas autobiográficas. Uma verdadeira autoficção, dizemos nós, muito antes de o termo ter sido inventado, em 1977, por Serge Doubrovsky.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XIII )

Em certa altura, no silêncio da casa, a minha mãe dizia como se se tratasse da coisa mais natural do mundo: “Lá está a costureira.” Eu aproximava o ouvido do sítio da parede que ela tinha apontado, e aí ouvia, juro que ouvia, o ruído inconfundível de uma máquina de costura, das de pedal (não existiam outras), e também, de vez em quando, um outro som característico, arrastado, o da travagem, quando a costureira leva a mão direita à roda para deter o movimento da agulha.

(JOSÉ SARAMAGO, As Pequenas Memórias, Lisboa, Editorial Caminho, 2006, p. 89.)


Ouvi-a algumas vezes na casa da minha avó, em Tomar, nas horas lentas dos serões, e também em Lisboa, num terceiro ou quarto andar da Travessa Nova de Santos, onde morei com a família até aos seis anos de idade. Chamavam-lhe a costureira, ou a costureirinha. O som vinha do interior das paredes, de detrás dos móveis ou até dos interstícios do soalho, reproduzindo na perfeição o ruído de uma máquina de costura em pleno funcionamento. O meu pai, de quem herdei, entre outras coisas, um certo pendor para a incredulidade, dizia tratar-se de um insecto que roendo o seu sustento ou vibrando as asas produziria aquele rumor semelhante ao de uma máquina de costurar. Que insecto seria, não sabia dizer, mas recusava as explicações destituídas de racionalidade.
Li hoje n´As Pequenas Memórias de José Saramago o relato de igual experiência vivida pelo escritor nos seus tempos de criança. A explicação que lhe era dada pelos adultos referia uma costureira que por não respeitar os domingos, trabalhando afincadamente nesses dias em vez de os dedicar ao culto de Deus, havia sido condenada a costurar eternamente, eternamente metida dentro das paredes das casas. Já não me lembro que justificação fabulosa me apresentavam para tão intrigante mistério, mas estou em crer não ser muito diferente da que era prescrita ao pequeno José pelos seus familiares.
Tal como Saramago, também eu não voltei a ouvir a costureirinha. Talvez o juiz condenador tenha decidido comutar-lhe a pena, libertando a triste de tão penoso fadário. Ou talvez tenhamos deixado de a ouvir apenas por causa do barulho dos aparelhos de televisão e das potentes aparelhagens de som que passaram a marcar lugar nos nossos espaços domésticos, abafando com os seus decibéis o brando murmúrio da respiração das casas. Tudo é possível.
Não me atrevo a jurar, como o nosso Nobel, mas lá que a ouvi, ouvi, a pobre costureirinha, condenada por um juiz cruel a vaguear de casa em casa, por dentro das paredes, sempre a dar ao pedal da sua máquina de costura. Pequenas memórias? Não me parece.

domingo, novembro 16, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XII )

A leitura de O Último Cabalista de Lisboa, de Richard Zimler, leva-me de viagem para outro livro: Consolação às Tribulações de Israel, de Samuel Usque, obra-prima da literatura de língua portuguesa do século dezasseis, publicado em Ferrara, Itália, no ano de 1553.
Em ambos os livros (o de Zimler apresenta-se como a transposição literária de um manuscrito da diáspora sefardita), recordamos a intolerância e as exprobações sofridas por uma comunidade laboriosa que apenas aspirava à liberdade de religião e ao respeito pelas suas ancestrais tradições.
Após o massacre de Lisboa de 1506 (a que recentemente se ergueu, junto da Igreja de S. Domingos, um belo memorial) e durante o reinado inquisitorial do Piedoso, milhares de judeus abandonaram o país com prejuízo da economia, da ciência e da cultura portuguesas. Tudo por causa da cristianíssima fé dos reis, do clero fanático e do povo ignaro.

sábado, novembro 15, 2008

SÉGOLÈNE ROYAL

Parece o descanso da guerreira, mas não é. Neste fim-de-semana, em Reims, Ségolène Royal está na luta pela liderança do Partido.
Voto nela!

domingo, novembro 02, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 15 )

Fui hoje chamado para uma reunião com o director do centro de ajuda psicológica. Pretendia ser informado, de viva voz, sobre a evolução de cada um dos casos que me foram entregues desde a mudança da população para a nova aldeia. Expliquei-lhe que um deles me inspirava particulares cuidados, o do homem que tinha recusado trasladar os restos mortais da sua mulher, referindo-me a ele desta maneira e não pelo nome próprio por me parecer que assim seria identificado com maior facilidade pelo meu superior hierárquico. Logo percebi que o motivo apresentado para a reunião não passava de um mero expediente para chegar a outras indagações. Ouviu quase distraidamente a minha exposição, fazendo correr por entre os dedos um caneta esferográfica, supostamente destinada a tomar notas, enquanto ia olhando os longes da paisagem através da janela que se abria à esquerda da sua secretária.
Devo dizer que nunca simpatizei com este homem. No dia em que me apresentei no centro, questionou-me sobre aspectos da minha vida particular de forma tão despropositada e abusiva que desde logo passei a evitá-lo, só o contactando por rigoroso imperativo de serviço. A pergunta mais extraordinária que então me fez, acabado de chegar e não me conhecendo de nenhum lado, foi se eu era solteiro como indicavam os meus documentos de identificação ou se, como era comum entre muitos jovens, vivia em união de facto com alguém. Confesso que gaguejei, tal a surpresa. Dei uma resposta atabalhoada, inconclusiva, incomodado por me ver constrangido a contar a minha vida a uma pessoa com quem não tinha qualquer intimidade e que se limitava a ser o director do serviço onde acabava de ser colocado.
No prosseguimento da reunião, sempre pouco interessado naquilo que eu lhe ia dizendo, rapidamente se encaminhou para as perguntas que realmente pretendia fazer-me: o que achara eu do jantar oferecido pelo Presidente da Câmara, por que razão me ausentara ainda o discurso não havia terminado, se alguma coisa me parecera mal na organização do referido jantar. Sendo o mandatário da candidatura, disse-me, era de bom grado que registaria as opiniões e críticas dos eleitores.
Falei-lhe da minha fraca disposição para discursos longos, do desinteresse que sentia pela política e do facto de não ser eleitor no círculo do concelho. Isso explicava a minha atitude. Dei-lhe, nestes aspectos, uma resposta franca, mas escondi a revolta sentida perante o arrazoado demagógico do Presidente da Câmara. Indignara-me aquela disposição para iludir com as palavras, o oportunismo das homenagens ao pobre morador falecido, a hipocrisia das alusões aos pastores espoliados das suas terras, as referências aos dias felizes do povo na nova aldeia – como se a felicidade se construísse pelo apagamento da memória e das raízes, pelo internamento de toda a população numa geometria de ruas limpas e paredes brancas.
Foi então, enquanto alimentava estes pensamentos, que ele lançou sobre mim uma frechada súbita:
“Diz-se por aí que costuma frequentar um bar de
gays do outro lado da fronteira.”
A minha perplexidade perante o arrojo e o descaramento da observação não poderia ter sido maior. Nos primeiros instantes, só a indignação dos meus olhos foi capaz de falar. Aquele homem conhecia os lugares que eu frequentava, talvez até as minhas relações pessoais, parecendo-lhe natural inquirir sobre a matéria da minha vida privada e convidar-me a prestar-lhe contas do que fazia para lá das horas de trabalho. Ele deve ter sentido o efeito causado pela sua observação, pois o desenho da boca, onde era visível a mais impudente das determinações, cedeu o lugar a um trejeito sombrio e ameaçador que não podia deixar de ser levado em conta. Confirmei em absoluto, pela forma como procedeu comigo, aquilo que dele se dizia. Tendo sido sempre um funcionário zeloso do regime deposto, logo se adaptou às novas condições criadas pela democracia, com inscrição partidária e prossecução dos seus propósitos carreiristas. Era portanto uma mentalidade do passado, um espírito de inquisidor disfarçando-se sob o cartão dum partido e o folclore das campanhas eleitorais. E foi aí que a minha cólera explodiu. Acabei por lhe dizer que não admitia insinuações e reparos sobre a minha vida privada, que tal não lhe era permitido, e que só em matéria profissional me sentia obrigado a dar-lhe satisfações. O homem deu por terminada a reunião, como se estivesse satisfeito com os resultados da mesma, dizendo-me entre dentes que se tinha limitado a avisar-me, e eu saí para o corredor, a caminho do meu gabinete, num passo lento e triste.
Daí a uma hora teria mais uma sessão com Josué. Sentei-me à mesa de trabalho a ler as notas que vinha tomando sobre o desenvolvimento do seu caso, e senti que nunca como naquele momento ele me despertava tanto interesse. Um interesse que não era afinal do domínio da profissão, onde os progressos até não existiam, mas antes fundado na humanidade daquele ser e daquela vida, nos seus merecimentos e imperfeições que não conhecia por completo, no drama de ter sido o único a deixar tudo sob as águas – elementos que faziam dele a mais singular das pessoas com que me deparara entre os povoadores da falsa terra prometida. Esperei-o com ansiedade, e rapidamente esqueci a impertinência astuciosa do director do centro.
Quando, à hora marcada, dei indicações para chamarem Josué ao meu gabinete, estava longe de imaginar o que ia acontecer.

sábado, outubro 18, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( XI )

Compreende-se bem por que razão o romance Jogo da Cabra Cega, publicado em 1934, foi retirado do mercado e proibido pela censura salazarista durante cerca de trinta anos. Romance modernista, não compatível com a moral vigente e a ordem social e política estabelecida pelo ideal do corporativismo, só lhe foi autorizada uma 2ª edição no ano de 1963, quando o seu autor já se tornara uma figura proeminente da nossa vida literária.
Trata-se de um texto denso, perturbador, no qual a virtude e o vício, o bem e o mal, o amor e o ódio se assumem muitas vezes como categorias indistinguíveis. Sem Deus, ou apesar de Deus, nada mais resta ao sujeito individual, outrora uno, que a aventura da dispersão e do estilhaçamento: ser ele e o outro, e tudo ao mesmo tempo. É assim que lendo este José Régio não podemos deixar de nos lembrar de alguns textos de ficção de Mário Sá-Carneiro.
(Ilustração: reprodução do óleo sobre tela Poeta de Deus e do Diabo, de Ventura Porfírio, datado de 1958; Casa-Museu José Régio, Portalegre.)

domingo, outubro 05, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( X )

No desfecho dum romantismo brasileiro povoado de índios e cânticos nacionalistas, Castro Alves foi o poeta dos escravos, da vergonha brasileira e da consciência abolicionista. Chamaram-lhe condoreiro, de condor, ave soberba que sobreleva no seu voo os altos píncaros dos Andes.
É bom reler O navio negreiro, Vozes d´África e A cachoeira de Paulo Afonso, do melhor que se escreveu, em oitocentos, na língua portuguesa. E do lado de lá do mar!

domingo, setembro 28, 2008

OUTROS BLOGUES


Do blogue Insónia, de Henrique Fialho (www.antologiadoesquecimento.blogspot.com), retiro esta imagem de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Como deixou escrito um judicioso comentarista do mesmo blogue, isto sim, era modernidade...

sábado, setembro 20, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( IX )

Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura – assim dispunha Ricardo Reis sobre o autor no prefácio aos poemas de Alberto Caeiro, poeta das sensações que teria repugnado a religião e a metafísica, descobrindo o mundo sem precisar de pensar nele.
Porém, esta personagem quase sem cultura lia o livro de Cesário Verde até lhe arderem os olhos (poema III de O Guardador de Rebanhos), sabia dos cantos literários dos pastores de Virgílio (poema XII do mesmo livro) e numa entrevista supostamente dada em Vigo criticava Junqueiro e Pascoaes e chamava idiota a Verhaeren.
O que mais se encontra nos escritos de Alberto Caeiro é pensamento puro, filosofia. Uma complexidade que não se conforma com a simplicidade e a espontaneidade anunciadas. Paradoxos fascinantes do drama em gente pessoano.

domingo, setembro 07, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VIII )

Marguerite Yourcenar confessa ter saboreado em Anna, Soror… , pela primeira vez, o supremo privilégio do romancista, o de se perder inteiramente nas suas personagens, ou de se deixar possuir por elas.
Vinte e dois anos tinha a escritora quando viveu a paixão dos irmãos Anna e Miguel. Como pano de fundo, uma Nápoles da Contra-Reforma povoada de Sextas-Feiras Santas e de Cristos de gesso, um ambiente de penumbra e drama digno dos pincéis de Caravaggio.
Discorrendo sobre o tema do incesto, diz-nos a autora no seu posfácio a Anna, Soror…: (…) o facto de se pertencer a dois clãs inimigos, como Romeu e Julieta, raramente é sentido nas nossas civilizações como um obstáculo intransponível; o adultério banalizado perdeu, além disso, muito do seu prestígio graças à facilidade do divórcio; o amor entre duas pessoas do mesmo sexo saiu em parte da clandestinidade. Só o incesto continua a ser inconfessável e quase impossível de provar, mesmo onde suspeitamos que exista. É contra as falésias mais abruptas que mais violentamente se lança a vaga.
É isso. A vaga só é branda nas planuras da praia. Não tolera o desafio dos rochedos nem as escarpas dos sentimentos.

quinta-feira, agosto 28, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VII )

Há quem não lhe aprecie o estilo, os temas, a atitude de polemista que não fugia à luta e nunca ia por onde o mandavam ir. Amado por uns, detestado por outros, foi professor durante uma vida numa remota cidade do Alto Alentejo. Dramaturgo, poeta, ensaísta e principal animador da histórica revista “presença”, é talvez como romancista que menos é conhecido.
Leio agora o ciclo romanesco A Velha Casa – um misto de ficção e autobiografia que o autor considerava a obra capital da sua produção literária. Vou no terceiro livro – Os Avisos do Destino – e passo por episódios já encontrados em Confissão dum Homem Religioso ou nas Páginas do Diário Íntimo, escritos autobiográficos, como se o imaginário não fizesse sentido sem a luz do real, como se à vida não bastasse vivê-la e sempre se tornasse necessário dar-lhe visos de sonho. Este homem sonhou de mais e viveu de menos. Ou, pensando melhor, talvez tenha vivido na plenitude, se é verdade que, como disse o Poeta, o sonho comanda a vida.
Ficou conhecido por José Régio, um pseudónimo tirado do seu nome José Maria dos Reis Pereira. E nem aqui se distanciou de si mesmo.

segunda-feira, agosto 18, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VI )

Encontramos em Madame Bovary um episódio impressionante, de uma obscenidade excessiva, que atira o adultério de Emma e a perfídia dos seus amantes para o plano singelo das coisas comuns. Trata-se da operação ao pé boto do infeliz Hippolyte, um “acto médico” de Charles Bovary que acarretou ao paciente a consequência natural de uma gangrena: a amputação da perna.
Dificilmente se encontrará em outro romance, como neste de Gustave Flaubert, um libelo tão impiedoso contra os charlatães da medicina.
Dir-se-á que se estava no século XIX, tempo de ideais e filosofias mas de limitado progresso das ciências médicas. É verdade. De resto, não faltam casos de convicções pseudocientíficas na ficção literária de Oitocentos. Veja-se, por exemplo, O Primo Basílio e a morte de Luísa, a “febre cerebral” de que foi acometida, sendo-lhe rapada toda a cabeça para mais eficaz resultado das compressas húmidas com que pretendiam debelar-lhe o mal. Veja-se o uso indiscriminado das flebotomias, a crença nos resultados dos sinapismos e das ventosas, as garrafas de medicamentos preparadas por génios de botica do tipo Eusébio Macário.
A negligência médica de Charles Bovary foi instigada pela inanidade científica do farmacêutico Homais. Ainda hoje os grandes erros médicos resultam, na maioria dos casos, de uma conjugação de equívocos entre a medicina e a farmacêutica – uma indústria poderosa que delapida milhões em estratégias de marketing perante a postura reverencial de investigadores e instituições universitárias. O corrupio de delegados de propaganda médica à porta dos consultórios e os congressos organizados em hotéis de luxo configuram uma medicina submetida à lógica do lucro, onde conta mais o dinheiro que a felicidade das pessoas. E não devia ser assim.

domingo, agosto 17, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( V )

Bela tarde de sábado passada com o Fervor de Buenos Aires de braço dado com o grande poeta argentino. Deu para lembrar Bernardo Soares e as suas viagens "com a alma" (por oposição a viajar "com o corpo"): Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é poente; não é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação de libertação que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente de quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma.
Leio em Borges: Las Calles de Buenos Aires / ya son mi entraña. Fico com a cidade dentro de mim. E penso: como ainda há gente que insiste em partir de férias!

sábado, agosto 09, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 14 )

De um dia para o outro as paredes da aldeia encheram-se de cartazes com as fotografias dos líderes políticos, enquanto o chão se coalhava de coloridos rectângulos de papel, de diversos tamanhos, mostrando os programas dos partidos e as listas de candidatura. Largas faixas de pano atravessavam as ruas à altura dos beirais dos telhados, suspensas pelas extremidades nos candeeiros de iluminação pública, deixando cair sobre os moradores relâmpagos de frases curtas e incisivas, apelos ao voto e ínvias promessas de felicidade. Era a máquina da propaganda eleitoral em toda a sua força.
Logo nos primeiros dias da campanha, o Presidente da Câmara veio à aldeia em demanda de votos para um novo mandato. Trouxe consigo, para recrear o povo, um conhecido grupo coral de mineiros que desfilou pelo largo principal com a dolência dos seus cantares, os homens movendo-se muito lentamente, de braços dados, com os fatos de ganga, os capacetes escuros e as lanternas, os lenços vermelhos atados ao pescoço e estendidos em triângulo sobre a largura dos ombros. Entre a população, para que não houvesse dúvidas de quem organizara o evento, distribuíam-se esferográficas, sacos de plástico e outros brindes gravados com o nome e a fotografia do candidato. À noite, na sociedade recreativa, foi oferecido um jantar aos eleitores, tendo discursado o Presidente da Junta, um representante dos donos do empreendimento e, por último, muito inflamado, o Presidente da Câmara.
Foi enquanto este fazia a sua alocução que se soube do falecimento de Daniel. Acontecera durante a tarde, mas só à noite, quando entraram em casa para lhe levar o jantar, deram com o corpo estendido sobre a cama, como se estivesse a dormir, o pescoço e os membros superiores já tomados pela rigidez post mortem. Entre os amigos e vizinhos que participavam do repasto, a notícia foi passando de mesa em mesa, gerando-se alguma perturbação e natural desinteresse pelas palavras do orador. Este, estranhando o comportamento do auditório, fez uma pausa, ao mesmo tempo que sorvia uns golos de água, procurando saber junto de um assessor qual o motivo daquele rumor que percorria a sala. E tendo sido informado do sucedido, logo abriu um parêntesis na oratória para se associar ao pesar da aldeia pelo falecimento daquele seu filho, o que foi feito com grande eloquência e aparente emoção, embora não conhecesse o defunto de nenhum lado e nem sequer soubesse o seu nome. Assim, desta forma e por estas singulares razões, é que Daniel recebeu homenagens fúnebres, do alto de um palanque, no dia da sua morte. Foi mais uma vítima da subida das águas.
Entretanto, havia um problema que preocupava os donos do empreendimento e que o Presidente da Câmara pretendia resolver como grande trunfo eleitoral: era o caso daquele estranho povo de pastores que fora desapossado das suas terras para nelas se edificar a nova aldeia. O conflito com os habitantes de Novo Vilarinho, ocupantes forçados dos seus ancestrais lugares de pastoreio, tinha ficado em suspenso depois da intervenção da Guarda e de algum trabalho negocial feito com os líderes da revolta. A paz, no entanto, não parecia segura. Os pastores continuavam a reclamar um território alternativo para a subsistência dos seus rebanhos, pretensão que se revelava bem difícil de satisfazer, dado o valor económico entretanto adquirido pelas terras com as infra-estruturas de regadio que a barragem permitira criar.
As exigências dos pastores eram apoiadas por algumas forças políticas da oposição e pelas organizações ambientalistas, correntes de opinião que os donos do empreendimento se tinham habituado a não menosprezar no complexo processo que precedera a construção da barragem e o enchimento da albufeira. Agora, porém, que a obra tinha atingido os seus objectivos primários, que o grande lago era uma realidade e as populações deslocadas se acomodavam às suas novas casas, já eles pareciam não recear qualquer sucesso que lhes embaraçasse os planos, os quais consistiam na rápida expansão das áreas irrigadas e no incremento da produção de electricidade para todo o país e até para o exterior. Portanto, bem poderiam clamar no deserto os descrentes da sua política de progresso. Tinham aceitado salvar uma grande quantidade de oliveiras centenárias e uns poucos monumentos megalíticos; deixaram sob as águas as pedras escuras do milenar castelo, mas puseram a salvo a igreja matriz e as campas do cemitério; os deslocados haviam sido alojados numa aldeia nova, dispondo de locais de culto religioso, de espaços de convívio, de médicos e de apoio psicológico; ninguém tinha ficado mal e a verdade é que só praticamente os velhos, uma espécie em vias de extinção, demonstravam alguma resistência em se adaptarem à nova realidade. Havia então que resolver, como se de um pequeno detalhe se tratasse, a questão dos pastores e dos seus rebanhos, ou, melhor dizendo, dar a ideia de resolver, pois entregar a uma horda de queijeiros e produtores de lã terras com aptidão para uma agricultura de alto rendimento, era solução que não ousavam admitir.
Conhecedor das estratégias do empreendimento, apelou o Presidente da Câmara à cooperação entre as diferentes culturas. E falou de formação profissional, de reconversão para uma agricultura moderna, chamando a atenção para aquela força de trabalho – a dos pastores – que, devidamente formada, poderia responder aos desafios lançados pelos novos investidores, muitos deles vindos do país vizinho, gente com ideias avançadas, com uma visão apurada da economia e dos mais exigentes modelos empresariais. De todos estes juízos se ia compondo a intervenção do autarca, seguro de que não faltariam as ajudas e os fundos comunitários para obrar no seu concelho a revolução tranquila com que sonhava. E as suas palavras pareciam agradar, tanto quanto era possível avaliar pelos aplausos que ia recebendo.
Apenas um homem, um jovem psicólogo em serviço na aldeia, se levantou do seu lugar, como que revoltado, quando o discurso presidencial atingia o seu clímax. Saiu intempestivamente da sala, tornando-se assunto de muitas conversas naquela noite e nos dias que se seguiram.

domingo, julho 27, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( IV )

Afinal, por aquilo que tenho ouvido, O Crime do Padre Amaro é, muito mais que o romance realista de um padre sedutor e de uma infeliz donzela seduzida, uma prodigiosa história de amor a lo divino, parente afastado, digo eu, da poesia místico-erótica de San Juan de la Cruz e de algumas novelas religiosas de Sóror Violante do Céu e de Leonarda Gil da Gama.
Lembremo-nos de que Amélia, à noite, quando recolhia ao seu quarto exaltada pelos serões familiares onde Amaro pontificava, se punha a ler os Cânticos a Jesus, um livrinho devoto em que o Filho de Deus é invocado segundo um erotismo de alucinação: Oh! Vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quere-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! Queima-me! Vem! Esmaga-me! Possui-me! (Cap. VI).
Por outro lado, no Capítulo XVIII é Amaro que erotiza a sacra representação de Nossa Senhora, colocando sobre os ombros de Amélia a capa de cetim azul, bordada de estrelas, que devia adornar a imagem da Virgem: Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora – diz.
Tudo requebros que nos chegam dos Santos Evangelhos: Maria Madalena lavando os pés do Senhor, secando-os com os seus cabelos perfumados; a Samaritana dando de beber (ou dando-se a beber) a Jesus junto do poço de Jacob.
Hoje, felizmente, são mais terrenos entre os ministros de Deus os inexoráveis apelos da carne. Já dizia o Padre-Mestre a Amaro no citado Capítulo XVIII: Homem! É o que a gente leva de melhor deste mundo!

D.E.

domingo, junho 22, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( III )

António Malhadinhas, protagonista pícaro da conhecida novela de Aquilino Ribeiro, raptou a prima Brízida para que não a tomassem os fidalgotes que lhe andavam a namorar as carnes: o Tenente da Cruz e o abade de Britiande.
Levou-a à força pelos alcantis das Terras do Demo, fazendo-a passar de donzela a dona num cardenho lúgubre perdido nos píncaros das serranias.
Quando o progenitor da jovem, seu tio e segundo pai, lhe saltou ao caminho em reparação de tão grave afronta, o pérfido Malhadas apontou-lhe o bacamarte ao peito e disse:
- Tenha-se, senão morre!
Assim se pagavam naquele Portugal de antanho os desvelos de tio e pai adoptivo. Porque António Malhadinhas nunca foi boa rês. Tinha uma língua afiada e uma faca ágil com que não se coibia de fazer estrago no coração ou nas tripas de quem contra ele levantasse contenda.
E, no entanto, a vida deste homem poderia ter sido diferente se um pouco antes do desaforado rapto se tivesse deixado ir na corrente de felicidade que lhe augurava a doce e terna Rita. Ter-se-ia talvez convertido num agricultor sisudo, cioso do chão de onde lhe manava o sustento, e não no renitente recoveiro sempre disposto a correr os sendeiros de Barrelas a Aveiro mordido pela febre da veniaga, em busca do lucro rápido nas transacções de sal, presuntos e azeite.
Por estas razões dá que pensar O Malhadinhas. Como seriam as nossas vidas se não tivéssemos seguido, em determinado momento, a voz desse raptor que temos dentro de nós? E nos tivéssemos deixado ir, simplesmente, na doce promessa dos olhos ternos que rejeitámos? Estaríamos melhor, estaríamos pior? Seríamos de certeza diferentes.
D.E.

quarta-feira, junho 04, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( II )

Quando Ruben A. escreveu “ A Torre da Barbela”, o cavaleiro virgem de Santa Comba ainda não frequentava o convívio crepuscular dos primos no Jardim dos Buxos da mansão senhorial. A Torre, como se sabe, estava acima das categorias de tempo e espaço, um não-lugar que era todos os lugares ao mesmo tempo, um vórtice de séculos onde os mortos estavam vivos e os vivos estavam mortos.
Em baixo corria o Lima, o lendário Letes, o rio do esquecimento dos Calaicos.
Madeleine chegou de Paris para umas férias com os primos Barbelas, uma estirpe decadente, apesar de tudo uns furos acima da parentela dos Beringelas, rudes senhores de Entre Douro e Minho envilecidos no trabalho mecânico das conservas de enguias e trutas assalmonadas.
Se o cavaleiro virgem de Santa Comba tivesse encontrado Madeleine, ter-se-ia apaixonado por ela como aconteceu com o cavaleiro autêntico da história. Era bem conhecida a sua atracção por senhoras parisienses, assim como a facilidade com que as convidava a passar férias na sua quinta e vinhedos do viçoso Dão.
Madeleine foi um raio de sol que rompeu o espesso nevoeiro dos domínios senhoriais da Torre da Barbela. É uma personagem excitante, alegre e desinibida, muito acima dos visos trágicos de Izabella, da postura belicosa de Dom Raymundo, da carnalidade do Abade da Moutosa ou da bastardia risível do Menino Sancho.
Madeleine estava morta e bem morta, e nisso era completamente diferente do Dr. Mirinho, um primo tecnocrata que, estando morto, até parecia vivo.
É por parecerem vivos que os tecnocratas são perigosos. O cavaleiro da história montava o cavalo Vilancete e dava a guante às garras do seu falcão Abelardo. Hoje, na nossa Torre, tecnocratas aparentemente vivos montam os velozes cavalos do poder e dão-se igualmente a artes de falcoaria.
Mortos, autenticamente mortos, seriam ao menos suportáveis.
D.E.

domingo, junho 01, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( I )

“Clepsidra” de Camilo Pessanha – parece que o título foi inspiração de um verso do poema “L´Horloge” de Charles Baudelaire:

“Le gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide.”

Lembrei-me do relógio – deus sinistro, aterrador, impassível –, metonímia do tempo fugaz e de imagens que se escoam nas retinas frágeis, a propósito do romance “As Horas Nuas”, de Lygia Fagundes Telles, livro que li mais uma vez no passado sábado, a horas vestidas de futebol, na comunidade de leitores da Biblioteca Municipal do Seixal.
Rosa Ambrósio, a diva, padecia o flagelo da idade nos cones de água do contador do tempo; Rahul, um felino de patas almofadadas que atravessara a vertigem das eras, derramava nos sofás o seu corpo de sombra e luz; Ananta continuava desaparecida; Cordélia amava; Dionísia sofria. Dos outros não me apetece falar, o Gregório que me desculpe.
Como ando a participar no boicote ingénuo às gasolineiras, fui e vim na boleia de uma carruagem que não se perturba com a subida dos preços dos combustíveis.
Sim, julgo entender a inscrição no portal de “Clepsidra”:

“Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…”

E peixe, vai haver peixe para as sardinhadas de Junho?
D.E.

quarta-feira, abril 16, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (13)

Naquela manhã, Josué saiu cedo de casa. Desde o dia da última sessão de terapia que não se sentia bem – uma dor de cabeça que lhe moía as têmporas e não dava sinais de regredir, apesar dos comprimidos que andava a tomar há mais de uma semana. Fechou a porta, embrulhou a chave no lenço como era seu hábito, e seguiu pelas ruas, um pouco ao acaso, sentindo que o espaço aberto e o ar fresco do dia lhe davam uma dose suplementar de resistência, uma outra força para enfrentar o sofrimento.
Atravessou o largo, passou rente à sociedade recreativa, tomando a rua que vai até ao terreiro da igreja e ao cemitério. Ali, sentou-se num degrau do cruzeiro a olhar a fachada do templo com o seu alpendre de telha-vã e a sua torre sineira. A manhã era uma várzea de luz e o voo dos pássaros riscava nos ares prenúncios de Primavera. Atrás, para lá do bloco escuro do museu, entrava pelos campos uma língua de água cinzenta e grossa, a superfície levemente ondulada, as pequenas ondas desfazendo-se numa babujem frouxa de encontro às pedras da margem. E pensou: Por pouco a água não lambia os muros do cemitério. Josué reparou nos ciprestes projectados na direcção do céu, e, por um instante, veio-lhe à memória o passamento de Jacob, o primeiro dos companheiros a partir depois da subida das águas. Repeliu a dolorosa lembrança e, levantando-se, recomeçou a andar, esboçando uma saudação fugaz para um grupo de forasteiros que atravessava o terreiro na direcção do museu.
Àquela hora, poucos moradores andavam pelas ruas, apenas se viam carros com pessoas de fora, gente que vinha de passeio ver a aldeia e os seus habitantes com o mesmo sentido de curiosidade de quem se dispõe a observar algo de inteiramente novo: uma ilha nascida no oceano por um qualquer fenómeno de origem vulcânica, uma cidade levantada depois de um cataclismo sísmico. E aprendiam, no livro aberto do museu, os nomes dos monumentos que para sempre tinham ficado sob as águas do lago: os menires e as antas, o castelo, as artes da pesca fluvial, os barcos do rio, as chaminés e os telhados das casas, tudo o que era a vida e a alma do povo. Os forasteiros, reparou, traziam máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, riam e falavam alto, gravavam, contra os desvios da memória, as imagens felizes de que são feitas as viagens.
Josué deixou o terreiro da igreja e voltou à rua, percorrendo-a na direcção contrária, no sentido do centro da aldeia. Ao chegar junto dos muros da pequena praça de touros, encontrou Daniel, ensimesmado, alheio a tudo o que o rodeava, como se já não fizesse parte daquele espaço e daquele tempo. Daniel, que sempre fora forte e soubera aceitar com estoicismo a infeliz condição de deslocado, tinha sofrido muito com a loucura de Jonas, seu companheiro de cavaco e pescarias. Começou a receber apoio psicológico no centro social do empreendimento, mas logo deixou de ir às sessões, ainda que muito instado para nelas comparecer. Vivia sozinho, e eram voluntários de uma qualquer instituição de apoio social que diariamente lhe vinham trazer as refeições e fazer os arranjos da casa. Daniel, que em tempos fora o mais querido de todos os camaradas, que andara com eles pelos caminhos do sonho, enfrentando provações que sempre soubera ultrapassar com dignidade, era naquele momento uma ruína de homem que inspirava a mais dolorosa das comiserações. Josué aproximou-se dele e abraçou-o. Colhia naquele transe todo o sentido de um adeus definitivo, os seus braços sobre os ombros murchos do companheiro, puxando-o para si como se quisesse metê-lo no coração, as palavras que não era capaz de dizer, os olhos turvos de febre ou de choro, e uma vontade de se deixar ficar ali no indizível transporte daquele abraço. Despedia-se, mas não sabia qual dos dois ia partir.
A manhã ia já adiantada. Na rua principal, a caravana automóvel de um partido político estendia nos ares, a partir de altifalantes roufenhos amarrados ao tejadilho de um carro, uma corda de palavras de ordem e cantilenas de esperança. Só então Josué percebeu que tinha começado a campanha eleitoral.
D.E.

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (12)


Ester veio hoje ao meu gabinete pela terceira vez. É difícil não reparar nos seus olhos de uma claridade quase líquida, ainda belos, surpreendentes numa mulher já tão avançada na carreira dos anos. Admiro-lhe a forma elegante como se senta, a saia cinzenta de fino corte, a blusa vistosa sob o casaco de malha onde radia a fortuita luminescência de uns botões de madrepérola.
De todos os deslocados que foram encaminhados para a ajuda psicológica, é este o caso que menos me preocupa. Às vezes, durante a conversa que mantenho com ela, consegue ser jovial. Há momentos, porém, em que se lhe turba o brilho dos olhos e as rugas do rosto, em que quase não se repara, conferem-lhe uma inesperada expressão de melancolia. É nestes momentos que sinto tocar a zona escura da sua alma.
Escuto-a. Conta-me coisas antigas dos seus tempos de moça, quando era a mulher mais formosa da aldeia e não havia homem que, perante si, ousasse ficar indiferente. Tempos difíceis para quem, como ela, trabalhava nos campos. Uns emigravam, outros, para não se afundarem na miséria, desenvolviam as mais variadas estratégias de sobrevivência. Ester saiu de casa dos pais e foi viver por conta de um poderoso senhor da cidade, um homem que mandava nas polícias de todo o distrito, guardador da ordem pública e dos silentes rebanhos de gente.
Houve um período, porém, em que alastraram as reivindicações dos trabalhadores. No surto das greves, os homens e as mulheres ficavam em casa sem sair para os campos, as sementeiras a perderem-se pela renúncia dos braços. Era então que a Guarda procurava os desertores nos lugarejos ou nos tugúrios isolados onde viviam, metia-os em camionetas de caixa aberta à força do poder das espingardas e entregava-os nas terras dos senhores que ansiosamente esperavam pelos seus braços de aluguer. Ester acompanhou tudo da gaiola doirada onde vivia, serva e rainha na casa do poderoso senhor, e quando saiu a ordem para a detenção dos cabecilhas da revolta, correu a avisá-los, para que não os alcançasse o braço da lei. Salvou os perseguidos, mas perdeu-se a ela.
Ao longo das sessões, venho notando que evita falar dos seus problemas, razão por que vem, semanalmente, ao meu gabinete. Pergunto-lhe o que pensa da nova aldeia, do canal de televisão e dos serviços de apoio do empreendimento, tento pegar no infeliz episódio da destruição do televisor, mas ela torneia as minhas questões. Responde-me evasivamente e, quando menos se espera, já se afunda no pélago das memórias. Memórias de água, diz-me em certo momento, e eu sinto que não posso insistir mais, que tenho de ouvir as suas recordações até ao último minuto da sessão, e que essa será a única forma de a poder ajudar.
Fala-me de Josué, de Jonas, de Daniel, do infeliz Jacob que se finou na incandescência de uma tarde de Verão, à hora em que se fazia sentir, em toda a plenitude, o rescendor único das estevas do campo. Faz-me recuar aos tempos em que eram todos jovens, antes, muito antes de lhes submergirem as vidas e os afectos numa massa de água sustida por um paredão de cimento com noventa metros de altura. Fala-me de Salomé, a que repousa no leito do lago por o marido ter recusado a trasladação dos seus restos mortais. Salomé, uma mulher nervosa e beata que fez um filho fora do casamento e que saiu da aldeia por não ter sido capaz de enfrentar a reprovação geral dos conterrâneos. Voltou mais tarde, sem a criança, a qual, segundo ela, teria morrido. Verdade? Mentira? Nunca se soube ao certo. Salomé morreria uns anos mais tarde, ainda jovem, de um mal na barriga.
Ester continua a falar até que termine o tempo que lhe está reservado. Eu já conhecia o episódio da recusa da trasladação: o que foi seu marido, Josué, vem regularmente ao gabinete de ajuda psicológica. Só não sabia o nome da mulher, as circunstâncias da sua vida conjugal, nem da brevidade da sua vida.
Chamava-se Salomé. Era o nome de minha mãe.
D.E.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

A SUBIDA DAS ÁGUAS (11)

Há três noites que Josué tem o mesmo sonho. Um sonho mais entre os muitos que costumam assediá-lo e com os quais se habituou a discernir o sentido obscuro e profundo das premonições.
Vai num barco de passageiros que navega as águas de um rio sob um céu azul por onde correm nuvens grossas e claras, a luz do sol atravessando-as como se fossem lentes, caindo em fogo sobre o dorso da terra. O rio às vezes é largo até não se verem as margens (um lago?); noutras, estreita-se tanto que quase não dá para continuar. Josué não se lembra da cara de nenhum dos companheiros de viagem, mas tem bem presente o reflexo de prata dos peixes enfrentando o ímpeto da corrente carregada de barro e limos. Não sabe para onde segue o barco, que destino demanda o inverosímil arrais.
A certa altura, Jonas aparece-lhe na margem segurando a cana de pesca, abrigado do sol sob o frágil rícino. Acena-lhe do barco, mas ele não o vê. Parece uma sombra. Apenas o fio de nylon lançado sobre o desassossego dos cardumes refulge à luz poderosa do dia.
Quando as margens se aproximam, vêem-se esteiros que se metem pelo corpo da terra, serpenteando entre montes, brumosos canais por onde o barco nunca se aventuraria a singrar.
À entrada de uma dessas línguas de água surge a figura de Ester, ainda jovem, debruçada numa espécie de varanda sobre a superfície do rio ou do lago, vestindo umas calças justas, os cabelos molhados como se tivesse acabado de sair do banho, os seios espetados sob a camisa leve e transparente, a pele muito branca. Ester também não responde ao aceno que ele lhe dirige, e, no entanto, não é um corpo de sombra como Jonas. Talvez seja ele, afinal, a verdadeira sombra. Por isso, por mais que procure chamar a atenção dos amigos que encontra, nunca o poderão atender os que estão do outro lado do sonho. Mas dá consigo a falar com Jacob, entretanto saído não sabe de onde, roxo e estropiado tal como ficou no transe da sua morte por electrocussão, a língua inchada saindo-lhe pela fenda da boca, os dedos negros como paus de carvão, os olhos baços, os cabelos em desalinho. Fala com ele, um mesmo código de linguagem fluindo entre ambos, um lento diálogo de sombras.

Josué está sentado no gabinete do psicólogo no centro social do empreendimento. Conta-lhe o sonho. O homem, ainda jovem, escuta-o com atenção. Depois de várias sessões de terapia, vencida a desconfiança inicial, sente-se agora à vontade com o terapeuta que lhe destinaram. É uma criatura simpática, de falas e modos delicados que, sem dúvida, procura ajudá-lo. Repara-lhe nas unhas das mãos, bem cuidadas, onde fulge o vago brilho de uma película de verniz. Tem ademanes curiosos, inusitados num homem, mas os olhos, os lábios e o formato do rosto são-lhe estranhamente familiares. Parece conhecê-lo há muito tempo.

No cabo do sonho Josué vê chegar Salomé, muito decaída, tal como era dias antes da sua morte. Junta-se a si e a Jacob e conversam os três como se não houvesse entre eles diferença de estado ou condição. Já então tinha desembarcado não sabe bem em que cais. Na margem do rio ou do lago desaparecera há muito a figura de Ester.

A sessão de terapia chega ao fim. Agora é o psicólogo que fala:
“Os sonhos têm janelas de onde é possível ver a realidade.”
E acrescenta:
“Sonho tantas vezes com a minha mãe, de quem mal me lembro, que é como se ela nunca me tivesse deixado.”
Josué recebeu o cartão com a data e a hora da sessão seguinte, guardando-o na frágil carteira de plástico. Saiu para a luz da manhã que desabava sobre a geometria das ruas. Doía-lhe a cabeça.
D.E.

sexta-feira, novembro 30, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 10 )

Quando a luz do sol se extingue muito para lá da aldeia e da grande massa de água que tomou conta das terras, encontro-me quase sempre sentado na varanda da pensão da vila, a uns cinco quilómetros de distância do meu local de trabalho, e, folheando um livro ou percorrendo num caderno as notas que me habituei a tomar, não deixo de pensar na tristeza das gentes que me rodeiam e na falta de sentido das suas vidas. Homens e mulheres bem adiantados na roda dos anos, os olhos gastos de tudo o que viram e deixaram de ver, a memória submersa, arrastando-se pelo traçado rectilíneo da nova aldeia, violentamente limpa, sem encontrarem os caminhos da felicidade.
É esta a massa em que todos os dias afundo as mãos no meu trabalho de psicólogo ao serviço do empreendimento. Estou nestas funções há pouco mais de um ano, desde a altura em que se trasladaram os restos mortais das campas do cemitério e os habitantes da aldeia começaram a mudar-se para as casas novas.
Vi coisas que não vou esquecer tão cedo, como o caso daquele homem que recusou levantar os ossos da mulher. Não se lhe conseguiu arrancar uma palavra de remição, nenhuma fresta se abriu naquela alma por onde se pudesse lobrigar uma mágoa ou um motivo para o insólito procedimento, nenhuma ajuda se lhe conseguiu dar. É por isso que, muitas vezes, descreio daquilo que faço: anos e anos a encher a cabeça de teorias, a afinar conceitos, a idealizar o momento de começar a aplicar os conhecimentos adquiridos, para, uma vez no terreno, não ser capaz de ajudar quem precisa.
Este homem foi o primeiro que, revoltado com as emissões diárias de propaganda a respeito dos benefícios do empreendimento, resolveu destruir o aparelho de televisão. Outros o seguiram. E, no entanto, bastava não ligarem os televisores ou deixarem de os sintonizar no respectivo canal para evitarem as promessas de progresso e felicidade com que os assediavam: uma nova aldeia com modernos equipamentos para toda a população, água em abundância para rega e produção de energia eléctrica, novas vias de acesso à região, melhor assistência médica. A destruição dos televisores foi alastrando de casa em casa numa espécie de automutilação sucessiva, como se os seus donos fossem incapazes de suportar ao pé de si, ainda que desconectados mas à distância de um distraído clique, aqueles aparelhos de onde poderia jorrar, a qualquer instante, o vómito abominável da falsidade. Acompanhei alguns destes casos. Não resolvi nenhum de forma aceitável.
Vou a caminho dos trinta e dois anos. Parece-me às vezes que sou ainda jovem, outras que já vi e vivi de mais. Não foi fácil chegar onde cheguei. Nunca conheci o meu pai, nunca me foi dito o seu nome, e da minha mãe não guardo mais que a vaga lembrança dos meus cinco anos de idade. Cresci agarrado às saias da minha avó, enquanto viveu. Depois ampararam-me e fui-me amparando. Fiz-me homem antes de tempo.
Um dia dei conta da solidão em mim e da nenhuma vontade em sair dela. Gosto de viver sozinho, nunca pensei em casar.
Agora que estamos no Verão costumo muitas vezes sair à noite. Atravesso a fronteira (outros caminhos, outros lugares) para ir cear aos restaurantes das cidades mais próximas do país vizinho, para tomar uma bebida num bar e, calhando, ter um encontro fugaz com alguém, longe do ambiente fechado da vila e da pensão onde resido, longe do meu local de trabalho, um desses encontros que duram um pedaço da noite e sempre me devolvem, no fim dos seus breves lampejos, à minha irrevogável condição de solitário. Regresso sempre à pensão a tempo de dormir umas horas, de tomar um duche, e às nove da manhã já estou no centro de apoio psicológico do empreendimento a fazer o meu trabalho.
Estas linhas são as primeiras de um diário que agora começo a escrever. Ainda que seja um diário sem datas, condenado a uma periodicidade irregular, ainda que, por isso mesmo, venha a ser tudo menos um diário, será uma forma de gravar os meus sentimentos, de me encontrar comigo, de acertar contas com a vida. Provavelmente falarei mais de aquilo que me rodeia e menos de o que em mim está. Tenho como certo que é pelos outros que passa o caminho para nós, e esta é apenas uma das muitas contradições que ainda não fui capaz de resolver.
D.E.

domingo, outubro 14, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 9 )

A mulher caminhava com uma criança nos braços sobre as pedras brancas e cinzentas do leito seco de um rio. Fazia-o com naturalidade, sem esforço, como se andasse sobre chão direito ou de há muito estivesse habituada à irregularidade daquele piso. Não dava para perceber que traços seriam os do seu rosto: uma folha de sombra caía-lhe do lenço da cabeça até à altura da boca, e apenas a delicadeza do corpo, vestido de saia e blusa, permitia colher uma vaga promessa de beleza.
A criança estava nua. Teria um ano, ou pouco mais.
A espaços, abriam-se no leito do rio grandes poças de água, olhos imóveis de um caudal antigo aprisionados na solidão das pedras. A mulher metia-se nessas ruínas da corrente pela altura dos joelhos, arregaçando a saia que apertava entre as pernas para que não se molhasse, e passava a criança pela água numa espécie de banho lustral: primeiro a cabeça com o seu tufo de caracóis castanhos-claros, depois todo o corpo até aos pequenos pés que se agitavam incessantemente. Podia ver-se, então, que era um menino. A sua cara saía das águas de olhos bem abertos, sem nenhum sinal de aflição, antes sorrindo, e com a língua de um vermelho vivo lambia os lábios e a região à volta da boca até encostar o corpo húmido ao peito da mãe que logo o começava a beijar na cabeça e nos ombros.
De um momento para o outro, porém, o céu turvou-se de grandes nuvens que obliteraram a luz do sol. Um bando de aves de penas eriçadas e bicos carregados de dentes veio poisar sobre os seixos do leito e beber sofregamente nas poças de água. Ao levantar voo, deixou sobre a pedras uma massa de excrementos que atraiu uma nuvem densa de insectos, obrigando a mulher a tirar o lenço da cabeça e a proteger com ele o rosto do menino.
Foi neste compasso do sonho que Josué lhe viu a cara – era Salomé. E acordou sobressaltado.
Levantou-se indisposto e veio para a rua apanhar o ar da noite. Um morcego passou-lhe sobre a cabeça num arremedo inquietante de voo e, por momentos, pensou que ainda balançava nas asas do sonho, e que nada do que via – as fachadas das casas, as copas das árvores, os muros dos quintais –, nada daquilo era fisicamente real, palpável, apenas imagens da vida reflectidas no espelho da alma, prontas a desfazerem-se à primeira luz da madrugada. E lamentou que um homem novo como ele, na força da vida, ficasse sobressaltado perante um sonho que parecia não dispor dos ingredientes necessários para se tornar pesadelo. É certo que havia os estranhos pássaros e a nuvem de insectos, ambos de certa forma ameaçadores, mas o que mais o perturbara fora a visão daquela mulher – a sua­ – com uma criança de tenra idade nos braços.
Josué sempre deu grande valor aos sinais do inconsciente. Durante os meses em que Salomé esteve fora de casa, sonhou uma vez com um mar que avançava sobre a aldeia até a submergir por completo, afogando-se nele as pessoas e os animais. E via os corpos sem vida a boiarem à tona de água, a serem comidos por aves necrófagas que desciam dos céus e por peixes enormes que vinham do fundo das águas com a sua gula de morte. Sentiu-se mal. Ao acordar parecia estar no prelúdio de um ataque cardíaco. Nunca mais esqueceria esse sonho mau.
O que o sobressaltou naquela visão da mulher e da criança, foi talvez o elo que estabeleceu, ainda que inconscientemente, entre o contorno do sonho e o que lhe dissera Salomé quando regressou a casa: “O menino morreu”. Tinha sido há um ano, ou pouco mais. Ele ouviu e nem questionou o que ela lhe dizia, limitando-se a aceitá-la com uma bonomia inexplicável, mas que talvez resultasse de a imaginar arrependida, destroçada pela perda do filho e carente de um arrimo certo.
Josué sabe agora, com a certeza que só os sonhos podem dar, a razão por que todos os meses se ausenta de casa a sua mulher. Leu os sinais dessa revelação naquelas imagens do leito seco do rio. Mas essa certeza é, por enquanto, algo que não se atreve a dizer a si mesmo, uma verdade que ainda não tem palavras para falar, e que nem sabe quando terá, embora esteja seguro de que elas virão um dia, lentamente, como uma maré, subindo aos poucos os degraus da alma até a cobrir por completo, tal como no sonho mau o mar cobria toda a aldeia. Será apenas uma questão de tempo. Salomé continuará a dormir na sua cama, a tratar-lhe da roupa, a cozinhar para ele, a meter-lhe o almoço e a merenda na lancheira, a beijá-lo quando chega a casa ao fim do dia e a dar-lhe novas da mãe sempre que regressa das visitas que em cada mês lhe faz. Continuará a ser sua esposa dentro e fora de casa, ninguém na aldeia dará por nada, tudo parecerá natural, dentro das normais relações entre marido e mulher, até ao momento em que a verdade revelada ganhe o poder da voz. Talvez Josué não esteja absolutamente certo daquilo que sabe. Talvez prefira ir deixando correr o tempo para que se separe o azeite da água, o certo do errado, e poder aceitar o sonho em toda a sua plenitude. Porque se há quem acredite em sonhos, há também quem veja neles não mais que um pálido reflexo da vida, uma emergência confusa e inconsequente de sentimentos que estão dentro da alma e que só obliquamente ganham o direito de expressão. Que conclusões se extraem deles? O leito seco de um rio representa a corrente existencial onde o amor se perdeu. Mas a mulher com a criança nos braços, dando-lhe banho, cobrindo-a de beijos, é uma imagem viva e poderosa do amor. Há amores mais robustos que moram para sempre no coração dos homens, enquanto outros se extinguem a qualquer momento nos lances inesperados da vida.
A madrugada adiantava-se com o seu odor subtil de orvalho e ervas. Josué sentia-se transportado numa corrente que lhe ia restituindo a calma, uma onda que o levava para fora de si, até lugares distantes em inimagináveis patamares do tempo. Foi serenamente que entrou em casa. Deitou-se ao lado de Salomé que não dera sequer pela sua ausência, e, com os olhos ainda doridos da revelação, ousou dormir até ao romper do dia.

D.E.