domingo, junho 22, 2008

A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( III )

António Malhadinhas, protagonista pícaro da conhecida novela de Aquilino Ribeiro, raptou a prima Brízida para que não a tomassem os fidalgotes que lhe andavam a namorar as carnes: o Tenente da Cruz e o abade de Britiande.
Levou-a à força pelos alcantis das Terras do Demo, fazendo-a passar de donzela a dona num cardenho lúgubre perdido nos píncaros das serranias.
Quando o progenitor da jovem, seu tio e segundo pai, lhe saltou ao caminho em reparação de tão grave afronta, o pérfido Malhadas apontou-lhe o bacamarte ao peito e disse:
- Tenha-se, senão morre!
Assim se pagavam naquele Portugal de antanho os desvelos de tio e pai adoptivo. Porque António Malhadinhas nunca foi boa rês. Tinha uma língua afiada e uma faca ágil com que não se coibia de fazer estrago no coração ou nas tripas de quem contra ele levantasse contenda.
E, no entanto, a vida deste homem poderia ter sido diferente se um pouco antes do desaforado rapto se tivesse deixado ir na corrente de felicidade que lhe augurava a doce e terna Rita. Ter-se-ia talvez convertido num agricultor sisudo, cioso do chão de onde lhe manava o sustento, e não no renitente recoveiro sempre disposto a correr os sendeiros de Barrelas a Aveiro mordido pela febre da veniaga, em busca do lucro rápido nas transacções de sal, presuntos e azeite.
Por estas razões dá que pensar O Malhadinhas. Como seriam as nossas vidas se não tivéssemos seguido, em determinado momento, a voz desse raptor que temos dentro de nós? E nos tivéssemos deixado ir, simplesmente, na doce promessa dos olhos ternos que rejeitámos? Estaríamos melhor, estaríamos pior? Seríamos de certeza diferentes.
D.E.

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