quarta-feira, agosto 22, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 5 )

O cigano vinha às quintas-feiras. Percorria as ruas da aldeia com a sua carrinha de pintura debotada, mordida da ferrugem, e ia parando à porta das clientes exibindo os artigos que mercadejava: jogos de toalhas de pano turco, cobertas de cama, pijamas de homem e de mulher, roupa interior, peças decorativas e adereços baratos. Dizia-se que muito do que vendia era material de contrabando, mercadorias que dissimulava sob os bancos do veículo ou que metia num falso compartimento que passava por ser da roda sobressalente. Apresentava-se com um sorriso branco, a pele morena, vestia casaco preto e camisa de fantasia, trazia ouro ao pescoço e anéis fulgentes nos dedos. Não se lhe conhecia o nome ou o apelido de família, sendo suficiente o traço distintivo da sua etnia para uma clara e insofismável identificação pessoal. Não se sabia se tinha mulher ou filhos, de onde vinha e para onde ia. Certo e seguro era que às quintas-feiras chegava a Vilarinho do Rio à primeira hora da tarde, fazendo-se anunciar pela buzina da carrinha através de uma sequência de sons que não deixava dúvidas a ninguém.
O cigano tinha uma forma cantante de falar, repleta de expressões e pronúncias próprias das gentes do outro lado da fronteira. Mostrava uma combinação cor-de-rosa, com finas rendas, que retirava de uma caixa de cartão, e perguntava à cliente:
“Te gusta? Es preciosa!”
As mulheres, se ainda jovens, coravam de desejo perante aquelas peças maravilhosas com que se imaginavam, à noite, no fogo das alcovas, a deslumbrar os seus companheiros. E compravam muito, quase sempre a prestações, que de ninguém desconfiava o mercador, sempre disposto a conceder facilidades de pagamento sem o mínimo receio de ver pairar sobre o seu negócio a sombra odiosa do crédito malparado.
Só Salomé não se entusiasmava com as roupas. A maioria das vezes só tinha olhos para as molduras de estampas religiosas que se misturavam por entre a panóplia de artigos com que o cigano enchia a carrinha. Desejou muito um S. João Baptista representado no meio do rio Jordão, com a água pelos joelhos, dando o baptismo a Nosso Senhor. Quase se apaixonou pela serenidade daquele rosto de onde brotava o fulgor de uma santidade profunda, parecendo-lhe o de Cristo, ao pé do dele, pouco mais que uma vulgaridade. E pensava que quando lhe nascesse um filho – o que ia tardando –, lhe daria o nome daquele santo grandioso e belo que pregava no deserto da Judeia contra fariseus e saduceus, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, vestindo uma rude roupa feita de lã de camelo cingida com uma tira de couro grosseiro. Porém, como não se decidira logo e, entretanto, fora vendida a moldura do baptista, acabou por comprar um quadro com a imagem de um anjo da guarda a proteger duas frágeis crianças que brincavam descuidadamente na margem de um rio. A cabeça do anjo era um novelo assexuado de caracóis de ouro, os lábios entreabertos como se sorrissem ou deixassem passar algum avisado conselho aos incautos infantes – um menino e uma menina – , as asas levantadas e os braços abarcando a iminência do perigo sob o resplendor do dia. Salomé trabalhara seis meses na fábrica de papel, tinha um dinheiro de parte, e pagou a pronto. Isso pareceu impressionar o cigano que se dispôs a entrar em sua casa munido da ferramenta adequada para colocar o quadro no sítio desejado pela cliente. Tanto a boa vontade do cigano, em que poderia ser vista sem maldade uma simples atenção comercial, como o assentimento dado por Salomé a que a ajudasse naquele trabalho, não agradaram às vizinhas que estavam por perto e puderam presenciar a cena. O que se passou lá dentro não lhes foi dado ver, pelo que se limitaram a calcular o tempo em que permaneceu o homem no interior da morada, uma enormidade de minutos que por pouco não faziam uma hora, um tempo desajustado ao fim em vista, para o qual, segundo elas, uns cinco minutos teriam sido suficientes. Isto foi o que disseram e depois correu por toda a aldeia, chegando aos ouvidos de Josué, embora não pareça de justiça acreditar em tudo o que se diz e se ouve. Se o cigano demorou dentro de casa mais do que os cinco minutos que pareciam bastar para a operação, foi porque alguma coisa deverá ter corrido mal, reclamando cuidados adicionais: um prego que se entortou, impedindo a imediata suspensão do quadro na parede, a necessidade de improvisar uma bucha para uma mais sólida fixação, enfim, quem lança as mãos à obra é que sabe as dificuldades com que se depara.
“Santo Deus, meter o cigano em casa com o marido fora.”
Josué afastava-se da aldeia que ia submergindo e galgava o aclive do monte por entre o odor poderoso e inebriante das estevas em flor. Quando ali voltasse não estaria nenhuma pedra à vista, estava seguro disso. E, de súbito, como uma frecha lançada de um passado distante, irrompeu-lhe na memória a visão daquele quadro que um certo dia, ao chegar a casa, quando regressava da pesca no rio, vira pendurado na parede fronteira à porta de entrada.
“Comprei-o ao cigano. É um anjo da guarda”, disse-lhe a mulher.
Salomé andava estranha, em frequentes visitas à igreja, a lavar-se de manhã e à noite com água da Fonte Santa, dizendo ter pedido uma graça à Senhora dos Milagres, e a razão, sabia-a ele, era essa dificuldade em emprenhar, cinco anos de matrimónio e nenhum resultado à vista. Josué também se sentia mal com a união maninha, mas que fazer? De um ou outro membro do casal teria de ser o problema, se calhar dos dois, ainda que fosse menos provável esta última hipótese. Sempre se deram casos destes em que a semente do macho, por defeito seu ou da fêmea que a recebe, não dá o fruto desejado. Não iria acabar o mundo por causa disso. E respondeu-lhe:
“Melhor gastasses o dinheiro em coisas de utilidade.”
E foi só isto que ele falou, nada mais, pois sabia que se se alongasse em outras considerações, Salomé aproveitaria para tentar discutir a questão da união infértil, e sempre que isso acontecia ele era acometido por um grande embaraço de macho ferido nas suas capacidades de reprodutor, um embaraço que o remetia para um persistente silêncio sobre tal assunto, como se soubesse de antemão que o mal era dele e só dele, sentindo-se diminuído perante a mulher e todos os que o rodeavam.
Então foi passar as mãos por água no lavatório. Sentou-se à mesa a sorver a sopa e a comer o pão do jantar. Tinha pressa de terminar. Acabou, e foi para a sociedade recreativa jogar dominó com os camaradas.
Quando voltou, perto da meia-noite, Salomé já dormia, enrolada sobre si como um feto. Nem se mexeu quando ele avançou por entre os lençóis e a enlaçou pela cintura, passando-lhe uma perna sobre as coxas. Ela contraiu-se um pouco, como se, inconscientemente, quisesse dar um sinal de algo que não deveria acontecer, e a sua respiração ganhou volumes de um silvo agreste e inesperado. Nenhum perfume de desejo emanava daquele corpo desgastado de desilusão e mágoa.
Josué lembrava-se bem: foi no dia seguinte que partiu para a faina das vindimas, para ganhar um dinheiro suplementar, uma oportunidade que lhe surgira da parte de um antigo patrão dos seus tempos de solteiro. Esteve fora de casa duas semanas. Foi quando regressou, ao fim desse tempo, que Salomé lhe disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”

D.E.

quinta-feira, agosto 09, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 4 )

Durante quarenta dias e quarenta noites as águas cresceram muito sobre o corpo da terra. Um dilúvio silencioso, nascido do chão, batia no paredão da barragem e, refluindo, estendia-se pelos vastos campos ainda povoados de todas as classes de criaturas: animais puros e impuros, répteis e aves do céu, insectos rastejantes e voadores – humildes seres em cujas narinas havia sido depositado o sopro da vida.
Com as raposas, os texugos, as abetardas e as cegonhas não se tinham preocupado muito os donos do empreendimento, mesmo apesar de todo o assédio que lhes fora movido pelas organizações de defesa do ambiente, ciosas da preservação das espécies e do equilíbrio dos ecossistemas. Foram outros e mais fundos os seus cuidados: os autarcas que não cessavam de reclamar benesses pela propaganda feita em prol da obra, a satisfação das exigências dos que teriam de deixar as suas casas, as pressões do governo para a rápida conclusão da empreitada. Como se estava em ano de eleições, era preciso converter em votos o sucesso do empreendimento, mostrando às populações o número de postos de trabalho que seriam criados na região e a prosperidade induzida que resultaria do regadio e da futura instalação de um pólo agro-industrial. Os animais, portanto, que cuidassem de si. À medida que as águas lhes entrassem nas tocas ou nos ninhos, logo demandariam outros lugares de poiso, que nisso eram bem mais aptos do que os indivíduos do frágil género humano, sempre necessitados de auxílio para responderem a incidentes como os que agora se atravessavam nas suas vidas.
Naquele dia, ao fim da quarentena de água, Josué atravessava sozinho a floresta de estevas, atalhando pelos sinuosos caminhos de pé posto que desciam da nova aldeia para as margens do lago em enchimento. Um vizinho que viera lá de baixo dissera-lhe que as águas estavam a subir de forma inesperadamente rápida. Já lambiam os muros do velho cemitério, não tardaria muito e toda a aldeia seria engolida pela massa líquida.
“É uma diferença enorme de ontem para hoje, até nem dá para acreditar. Só vendo!”
Josué queria ver. Enquanto firmava o pé moído, inseguro, na terra escorregadia do caminho, lembrou-se da frase com que Salomé o acolhera, num fim de tarde, há mais de quarenta anos. Ele tinha acabado de transpor a porta da casa de chão térreo, de uma só divisão. Salomé estava ao lume, mexendo a panela da sopa, os fogachos da lareira atiravam sobre as paredes de adobe reflexos de uma luz bruxuleante. E disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”
Josué sentiu que resvalava no pó do carreiro, agarrando-se, para evitar a queda, à rama pegajosa de um pé de esteva.
“Como foi isso, mulher?”, perguntou.
E ela respondeu sem sequer o fitar:
“Já levamos cinco anos, homem, alguma vez teria de ser.”
Josué levantou-se, sacudiu as calças, cuspiu nas mãos para desfazer o visco que lhe colava os dedos, e perante os seus olhos apareceu, de súbito, como uma epifania tormentosa, a mancha clara do lençol de água. Avançava sobre o dorso dos campos com os seus esteiros tentaculares, rodeando as colinas, preparando-se para submergir tudo o que era obra de Deus e do Homem. Parecia que se tinham aberto as fontes de um grande abismo ou rompido todas as cataratas do céu para formar o grande lago – mas estes não eram os genuínos pensamentos de Josué, homem simples entre os mais simples, habituado desde sempre às palavras chãs com que se escrevem os dias de trabalho, antes o que estava escrito nos livros sagrados desde o princípio dos tempos, agitando-lhe o espírito como se o chamasse para uma grande missão ou lhe enviasse um sinal premonitório.
Josué, por esta altura, ainda não tinha destruído o televisor com o vigor do seu martelo. Recebera a nova casa sem formular nenhuma exigência, limitando-se a aceitar aquilo que lhe queriam dar. O Presidente da Câmara veio à aldeia com os donos do empreendimento para entregar as chaves das casas, em sessão solene, aos deslocados de Vilarinho do Rio. Josué recebera-as com o reconhecimento próprio de quem há muito se habituara a obedecer. Por esta altura, ainda ele não tinha proferido o sinistro vocábulo “retaliação”.
“Como é possível, mulher?”, insistiu.
“Sabes bem que fiz uma promessa à Senhora dos Milagres. Sabes bem que me lavei, por baixo e por cima, durante todo o mês, com água da fonte.”
Josué deu conta de que a Fonte Santa, assim chamada pelas curas extraordinárias que as suas águas sempre fizeram, já tinha sido completamente engolida pelo crescendo do lago. O povo ainda quis levar as pedras para a nova aldeia, reconstruí-la com as suas bicas de mármore por onde escorria saúde em estado puro e aquela lápide tosca onde quatro algarismos, 1918, atestavam o tempo prodigioso da sua construção. Nenhum habitante da aldeia morrera naquele ano com a terrível epidemia de gripe que assolara o país, e isso só poderia ser o resultado do poder salutífero das águas. Por isso o povo a queria levar, mesmo sabendo que, apartada do manancial que lhe dava a vida, mais nenhuma cura milagrosa sairia das suas bicas, e que, para continuar a ser uma fonte, teriam de lhe canalizar a água dos serviços públicos de abastecimento, essa mesma água carregada de metais, proveniente de humildes represas espalhadas pela região mas que, muito em breve, segundo se dizia, jorraria directamente do grande lago, em quantidade e em qualidade, bastaria abrir as torneiras a qualquer hora e em qualquer época do ano. Só que os donos do empreendimento não estiveram pelos ajustes. Já tinham aceitado o encargo de levar as pedras da igreja matriz e da capela, as lajes sepulcrais do cemitério, um antiquíssimo monumento funerário que desde tempos imemoriais estava cravado no chão a uns cem metros da aldeia. A fonte seria sacrificada numa escala de valores para cuja definição pouco contara a vontade do povo.
Quando Josué, seguindo pela borda do lago em formação, se aproximou do velho cemitério, um veio de água, brilhante como metal, já tinha atravessado os melancólicos portões e começava a espalhar-se por cima do chão das antigas sepulturas.
Poderá não ter passado de um ilusório reflexo do sol sobre o espelho das águas, uma falsa aparência induzida pelo seu sentido da visão já bastante senil, mas pareceu-lhe perceber, por cima do lugar onde jaziam os restos mortais de Salomé, uma nuvem branca que vogava na claridade do dia como uma chama extinta ou uma alma desabrigada. E saiu dali tão depressa quanto pôde.

D.E.

quinta-feira, agosto 02, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 3 )

Eram dezenas ou centenas de rebanhos conduzidos por pastores assombrosamente desnutridos, as mãos escuras arrimadas aos cajados, seguidos de matilhas de cães que afrontavam a luz do dia com a impertinência dos seus ladridos. Meteram-se pelo asfalto das ruas como se pisassem a erva tenra de um prado, dispostos a saciar uma fome bíblica.
Os moradores, ainda mal refeitos dos incidentes da mudança, viram chegar aquela vaga de lã que infundia respeito e temor. Ester, que estava sentada na soleira da porta, saltou para dentro de casa e assistiu a tudo da janela do quarto, por detrás dos vidros, persignando-se nervosamente como quem esconjura um mal ou pede o auxílio divino. Igual refúgio procuraram Jonas, Daniel e Ruben, cada qual em sua casa, tapando os ouvidos com as mãos ante o balido ensurdecedor que trespassava os ares.
Homens e animais, tomados de um desígnio aparentemente inexplicável, espalharam-se como azougue por todos os espaços da aldeia. Ocuparam as ruas, o jardim e o largo do mercado, rodearam a igreja, o salão paroquial e o edifício da sociedade recreativa.
Os terrenos baldios onde os donos do empreendimento tinham decidido erguer a nova aldeia, eram fruídos há muito tempo, em regime comunitário, por aquele estranho povo de pastores. Isso aconteceu no decurso de várias gerações. Quantas, ninguém sabia ao certo, mas não teriam sido tantas como as catorze que na história do povo de Deus se sucederam de Abraão a David, ou, em igual número, as que tiveram lugar de David até ao exílio de Babilónia. De qualquer forma, permaneceram ali os pastores por um tempo suficientemente longo e continuado para merecerem que se lhes fosse outorgada, por usucapião ou qualquer outra figura de direito, a posse legítima das terras de pastoreio.
Disse quem estava ao corrente do assunto que, nesta matéria, os donos do empreendimento haviam falhado rotundamente. Tão preocupados andavam com os deslocados de Vilarinho do Rio que desprezaram os direitos adquiridos por aquela gente escura, de pele mordida pelos sóis inclementes, arrastando permanentemente atrás de si ovelhas de úberes túmidos, vivendo de leite e queijo como se não houvesse outros alimentos à face da terra. O resultado estava agora à vista: a ocupação da aldeia pelo povo escorraçado, decidido a fazer valer, no calor da luta, os seus ancestrais direitos.
A Guarda foi chamada pelos donos do empreendimento para restabelecer na plenitude a ordem vacilante. Perante o argumento da força, recuaram os despojados para fora do perímetro da aldeia, mas aí ficaram, sobre a linha divisória entre os dois mundos, vigiando na noite que crescia os movimentos dos moradores. Quando, pela madrugada, se deu a retirada da força policial e as gentes de Novo Vilarinho se dispuseram a demandar o sono, choveu sobre as casas e as ruas uma saraivada de pedras como nunca se vira, até parecia que as mesmas eram arremessadas por sofisticadas máquinas de guerra e não por modestas fundas de pobres guardadores de gado.
O assédio dos pastores não cessou ao longo dos dias que se seguiram. Num crescendo da revolta, encheram as paredes das casas de severas inscrições e palavras de ordem, exigindo a entrega de uma área de pastoreio igual à que fora objecto de espoliação. Depois, foram mais longe: começaram a deixar as ovelhas doentes, com a vida já por um fio, à porta de casa dos habitantes; vazavam grandes quantidades de leite azedo nos locais públicos por eles frequentados; e sujavam os bancos do jardim de pestilentos excrementos de animais. Quando muito bem calhava, voavam grossas pedras de encontro aos telhados das casas.
Tudo isto acontecia de noite, quando a população se rendia ao sono. A aldeia acordava sobressaltada em cada manhã, descobrindo a face de um terror que crescia como uma árvore medonha diante dos olhos aflitos de todos os habitantes. Tinham vindo eles do deserto das águas para aquela terra prometida e, afinal, sem que nada tivessem feito para isso, deparavam-se com tão grandes e injustas tribulações.
A Guarda não tinha mão na fúria dos pastores. Daí que, entre os homens da aldeia, se tenha começado a falar de retaliação. Ninguém sabia como surgira tão imprevisto vocábulo em bocas habituadas a pronunciar palavras dóceis, palavras que não feriam, como as que usavam para chamar os filhos ou nomear as aves que voavam no céu. A verdade é que não se oferece um peixe a quem dá uma serpente. Ao mal só se pode responder com o mal, uma outra forma de exprimir a conhecida máxima: olho por olho, dente por dente; o oposto de se dizer: se te baterem numa face, oferece a outra para que nela te façam o mesmo.
Foi assim que, numa noite, um grupo dos mais jovens homens da aldeia, ou, melhor dizendo, dos menos velhos, pois o que de mais havia entre a população era gente adiantada na roda dos anos, muitos deles já com os pés para a cova, ainda por cima de ânimos abalados pela mudança imposta nas suas vidas, um grupo de homens, armado de facas de mato e provido de bolas de carne envenenadas, afoitou-se pelo território do estranho povo. Com a carne envenenada eliminaram os sabujos, e com as facas degolaram tantas ovelhas quantas puderam, até os rebanhos enlouquecidos pelo cheiro do sangue desatarem num clamoroso coro de balidos que correu os montes e despertou os pastores.
Só então os expedicionários regressaram a casa, onde foram recebidos com as manifestações de apreço que se prestam aos heróis. A partir daquela noite, no tempo que se seguiu à breve euforia das gentes da aldeia e ao adivinhado desânimo dos pastores, uma espécie de perturbação nos mais elementares princípios do entendimento impedia que se distinguisse, com claridade, onde estava a razão. Se do lado dos infelizes deslocados acolhidos nas novas casas naqueles terrenos maninhos, se do lado dos pobres pastores alijados das suas terras pela fria gestão dos donos do empreendimento. À medida que crescia o conflito de interesses entre os vizinhos, olhava-se para uns e para outros, tomados de um ódio profundo e recíproco, e não se conseguia perceber quem eram as vítimas e os algozes.

D.E.

sábado, julho 21, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 2 )

Quando correu a notícia de que iam fechar as comportas, os homens precipitaram-se para a aldeia abandonada com uma urgência que não sabiam explicar. Desceram por carreiros escorregadios entre matagais de estevas, como se lhes deparasse a última oportunidade de reverem as suas casas, não ignorando eles, por tudo o que tinham ouvido nas sessões de esclarecimento e pelos folhetos copiosamente distribuídos entre a população, que seria lenta a subida das águas, demorando várias semanas, talvez meses, até atingirem a cota em que se firmava a aldeia.
Chegaram, e puseram-se a andar pelas ruas, detendo-se nos lugares onde costumavam marcar encontro, o mercado, o largo da taberna, a sociedade recreativa, descobrindo nas antigas residências objectos e pertences de que se haviam esquecido durante a mudança, ou aos quais, ao carregarem as camionetas, não haviam dado o devido valor: um vaso com uma planta, um cesto de verga, a lâmina de uma enxada.
No vale, o rio continuava a correr com a sua língua estreita de água, gorgolejando por entre rochas escalvadas, carregado de espuma e limos. Os homens perguntavam-se como seria possível fazer nascer um grande lago daquele caudal tão frouxo. Mas esta interrogação interior, a que nenhum deles ousava dar voz, batia-lhes na alma como um pensamento sem sentido, uma ilusão que só podia ser alimentada por quem perdera o direito à esperança e buscava nos mais ínfimos indícios, fora de toda a racionalidade, uma fantasia ou uma crença a que se arrimar. No fundo, eles sabiam que os técnicos ao serviço do empreendimento nunca poderiam ter-se enganado. Tinham feito laboriosos cálculos, conheciam bem as potencialidades do projecto, a energia eléctrica que seria possível produzir, os hectares de terra que esperavam poder irrigar. Sempre falaram de um lago enorme, de uma mancha azul que, pela sua extensão, poderia ser vista da Lua.
Impressionou-os muito o lixo. Em todas as ruas se acumulavam detritos, peças de roupa sem préstimo, restos de móveis que haviam sido abandonados quando da saída dos moradores, sem que o pessoal do empreendimento, assoberbado de trabalho, tivesse tido tempo de os recolher. Falava-se que para preservar a qualidade da água todos aqueles despojos seriam levados, em tempo útil, para uma lixeira. Pela mesma razão tratariam de arrancar e remover as árvores, para que os seus corpos mortos não ficassem a apodrecer no fundo do lago, inquinando de matéria orgânica em decomposição a vigorosa claridade da grande massa líquida.
Entretanto, estavam sobre a hora do almoço. O sol estendia-lhes sobre os ombros o calor de um abraço, os estômagos começavam a pedir sustento. De vez em quando, um pássaro nervoso, saído da copa de uma árvore ou do beiral de um telhado, batia asas sobre as suas cabeças. Gatos famélicos, atordoados com a passagem do inesperado grupo, saltavam de cima dos muros para o refúgio seguro dos quintais, no vazio da sombra. Então, cada um dos homens puxou de uma bucha e bebeu de uma garrafa que um deles trazia num saco de plástico, mas nem pararam para merendar, que grande era a pressa de percorrerem todos os lugares, de gravarem nos olhos as perecíveis imagens do dia.
Foi quando saíam da rua principal, estrada fora, que repararam nas oliveiras. Tinham sido arrancadas do solo à custa de poderosas máquinas, as pás escavadoras rodeando os antiquíssimos troncos, desprendendo as raízes. Estas haviam sido metidas dentro de grandes sacos de terra para conservarem a lentura da vida até ao momento da transplantação. As árvores estendiam-se, jacentes, ao longo da estrada, aguardando transporte que as levasse para as suas novas moradas. Era sabido que fora uma exigência das organizações de defesa do ambiente que, com proficiente actuação, tinham pressionado os donos do empreendimento para não deixarem morrer uma única oliveira. A mesma sorte não calharia às árvores de outras espécies, condenadas à fogueira ou às lâminas das serrações. A mesma sorte não teriam as casas, que sendo feitas de pedra, tijolo e cal, matérias praticamente incorruptíveis, nenhum perigo representavam para a saúde das águas. Por isso lá iriam ficar no fundo do lago, como uma cidade perdida, qual Atlântida, assim se chamava, sepultada sob o mar oceano. Se algum dia, por qualquer razão, as águas viessem a descer, emergiriam as casas com as suas paredes verdes escorrendo lodo, as telhas desalinhadas pelas correntes do fundo, restos de uma civilização riscada do mapa pela ambição dos homens.
Carregados de pensamentos, nem deram conta de que se dirigiam para o velho cemitério. Pararam diante dos portões de ferro, como quem faz uma pausa numa caminhada grande. Moldados na chapa escura, num baixo-relevo ingénuo, dois prodigiosos esqueletos pareciam sorrir, segurando gadanhas de longas e curvas lâminas. Um arco que sobrepujava os portões mostrava em filactério a seguinte inscrição:

ESTE É O LUGAR DESTINADO AOS MÍZEROS MORTAES

FEITO À CUSTA DO POVO DA FREGUEZIA

ANNO DE 1879

Olharam assombrados o sorriso da morte. E viram, por entre a profusão de campas revolvidas e lápides quebradas, os sete palmos de terra de Salomé, intactos, desafiando o abismo das águas que vinha a caminho. Josué voltou a cabeça a tempo de evitar os olhares de reprovação que os companheiros lhe lançavam.

D.E.

domingo, julho 15, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 1 )

No dia em que Josué, de martelo em punho, reduziu a uma pilha de cacos o aparelho de televisão, houve quem visse naquele desvario uma genuína manifestação do síndroma do deslocado, designação criada pelos psicólogos que acompanhavam o povo da aldeia para classificar de forma científica e rigorosa os estranhos comportamentos observados nas gentes de Vilarinho do Rio.
Na nova aldeia, construída de raiz para os que foram obrigados a deixar o chão ancestral, Josué vivia tempos de melancolia, a memória dos antigos lugares aprisionada na tristeza da casa que lhe fora atribuída, um espaço que cheirava violentamente a novo, sem larguras de terra onde plantar uns pés de roseira ou semear umas vagens.
Josué é homem bem entrado na idade, viúvo, sem filhos, com cabelo e sobrancelhas que dão para uma casa de família, o nariz vagamente adunco, lábios finos e cova no queixo, estatura meã, pele tisnada. Todo o Inverno veste calças escuras e camisola de gola alta, e em dias de chuva enverga uma capa de borracha que lhe foi deixada por um embarcadiço seu amigo. Usa botas grossas, faz a barba dia sim dia não, e não é capaz de olhar de frente para uma mulher. Pescador em outros tempos, quando os barbos e as carpas corriam na babugem do rio, vivia do rendimento da pesca e do pouco que tirava da criação de patos e galinhas, trabalhando a horta para consumo próprio.
A porta da sua nova casa dá para uma calçada de pedra escura que margina o asfalto da rua. Nas traseiras há um quintal exíguo, onde, sob um telheiro, se guardam redes e outros apetrechos de pesca, umas enxadas e um ancinho. Ao lado da sua rua há mais duas, uma de cada lado, dispostas em paralelo, e a meio delas uma outra que as atravessava e vai dar ao largo onde foi reedificada a igreja matriz. É a esta geometria de ruas e casas brancas de traço monotonamente igual que dão agora o nome de Novo Vilarinho.
Josué foi ainda capaz de varrer os destroços do televisor, manobrando a vassoura e a pá com a destreza própria de quem não tem mulher em casa, sacudindo o tapete na soleira da porta, e, tomado de singular consciência ecológica, separou o metal, o plástico e o vidro, depositando em cada um dos contentores do lixo aquilo que lhes estava destinado receber. Parecia forte, mas deixou-se abater quando os vizinhos saíram à rua e começaram a abraçá-lo, recomendando-lhe calma e consolando-o com palavras amigas.
Josué foi o primeiro a escaqueirar o televisor, mas outros o seguiram. Jonas, também antigo pescador, teve o seu momento de cólera num dia húmido, pelas cinco da tarde, quando começavam as emissões diárias de circuito interno, explicando ao povo as vantagens do empreendimento. Depois foi Ruben, o carpinteiro. E Ester, e Daniel. Jacob, que se dizia ser um pouco tonto, agiu com grosseira violação das normas de segurança e foi electrocutado pela voltagem do aparelho. Ficou para a história como a primeira vítima da subida das águas, e há quem garanta sentir a sua alma, à noite, a deambular pelas ruas da aldeia.
Tudo isto se passava enquanto o povo menos consciente, ou talvez menos preparado para enfrentar o sofrimento, enganava a amargura dos dias na nova sociedade recreativa, jogando às cartas ou assistindo aos programas de televisão captados por antena parabólica, desafios de futebol, touradas, filmes às vezes um bocado picantes que as mulheres fingiam não ver e os homens só desfrutavam com satisfação quando elas não estavam presentes. Os psicólogos verificavam com a alegria própria do dever cumprido a integração destes deslocados nos novos espaços sociais. Não sabiam ao certo quantos eram, mas estavam seguros de que apenas uma pequena parte dos habitantes não se adaptara à nova situação. Tudo fora feito para suavizar os problemas da mudança, desde a entrega de casas novas, segundo as necessidades de cada família e a área das suas antigas habitações, até à reconstrução da igreja matriz, desmontada e montada pedra por pedra. Os restos mortais dos familiares foram exumados na antiga necrópole e sepultados nas campas e ossários do novo cemitério. Da cidade veio um entendido em assuntos de morte e sentimentos de perda para ajudar com o seu conselho os que poderiam deixar-se abater em tão doloroso transe. Nada foi deixado ao acaso pelos donos do empreendimento.
De entre todos os habitantes da aldeia, só Josué se recusou a levantar os ossos da mulher. Salomé se chamava ela, lá ficou sob o manto de água.

D.E.

quinta-feira, julho 12, 2007

UM DESTINO INEXORÁVEL

Ela conhecia os matizes da dor que via estampados nos rostos dos familiares. Não se surpreendia com as palavras condescendentes ou as expressões de desdém que acolhiam as suas arrojadas certezas. E compreendia bem a indulgência dos que não queriam contrariá-la, receosos de verem agravado o seu estado de saúde. Sentia-se fraca, talvez por efeito da medicação que lhe era imposta, mas à sua volta nada acontecia que a deixasse indiferente. Estava sempre atenta às notícias dos jornais e da televisão, inteirava-se de tudo o que dizia respeito às pessoas da família, arriscando juízos e premonições como se de uma pitonisa se tratasse. Naquela mente que os médicos insistiam em caracterizar como perturbada, fervilhavam convicções poderosas e formas desmedidas de ver o mundo. Ela que sempre fora uma pessoa sem ideias próprias, acostumada a guiar-se pela cabeça dos outros, sentia-se de repente singularmente segura de tudo o que pensava e dizia, parecendo querer recuperar do seu longo passado de apatia.
No pico das noites, quando era hora de dormir e o sono teimava em não lhe procurar o refúgio dos olhos, tinha visões de estepes geladas por onde corriam cavalos de crinas ao vento, recortando-se na linha do horizonte manchas de bandos de aves, um sol alaranjado, o vulto de um deus revoltado com a imperfeição dos homens. Ela contava estes sonhos – assim lhes chamava – à irmã com quem vivia desde que se separara do marido. A irmã traía num esgar a crispação dos músculos da face, fazia-se lívida, afastava-se com o rumor dos pensamentos a fustigar-lhe as têmporas, e era incapaz de responder ou de avançar com uma palavra de alento.
Há muito que aquele mal – ou aquela diferença – se disseminara no magma genético da família, irrompendo com regularidade pelo menos uma vez em cada geração. Todos conheciam a ameaça em suspenso, a espada de Dâmocles que traziam por cima das cabeças, interrogando-se permanentemente sobre quem seria o próximo a sofrer o assédio.
Num dia em que ela, no cume do delírio, degolou o canário de canto mavioso a que a irmã tanto se afeiçoara, uma ambulância de onde saíram dois homens de bata branca e bíceps protuberantes, levou-a, num aparato de sirenes e correrias desrespeitadoras das regras de trânsito, para um pavilhão sombrio de um hospital psiquiátrico.
Então, enquanto toda a família sofria as ondas de choque do desenlace e se desdobrava na procura de soluções, a irmã distanciava-se do problema, agindo como se ele não existisse ou como se, existindo, não lhe dissesse respeito.
Houve quem manifestasse pesar por tão invulgar alheamento, quem se insurgisse pela falta de solidariedade, aduzindo argumentos recriminatórios. Não entenderam a questão para além de aquilo que se firmava diante dos olhos. O que pesava na atitude da irmã não era a falha do amor fraterno ou a quebra dos naturais sentimentos regidos pelo altruísmo. O problema era outro. Ela sentia-se já no declive por onde tinham resvalado, em sucessivas gerações, tantos membros da sua família. Por isso, e só por isso, num natural reflexo de autodefesa, lhe era impossível enfrentar a face do mal e lidar com as suas infinitas expressões. No fundo, era como se recusasse encarar antecipadamente o destino que sabia estar guardado para si.
D.E.

domingo, junho 17, 2007

A SOBERBA IRONIA DE UM SORRISO

O primeiro sinal de que algo de estranho se passava com ela foi dado pelo desaparecimento dos livros, um conjunto de doze lombadas que desde sempre tinha ocupado lugar de destaque na biblioteca do casal. O marido deu pelo buraco negro aberto no miolo da estante e perguntou-lhe pelo paradeiro dos volumes. Ela respondeu que os tinha arrumado em outro sítio e não deu mais explicações.
Todos os livros desaparecidos, desde uma colectânea de poemas de amor a vários romances de autores contemporâneos, tinham-lhe sido oferecidos por ele nos momentos mais marcantes de um percurso amoroso entre o enamoramento e o matrimónio na igreja.
Ainda hoje o marido não conseguiu perceber por que motivo se decidiu ela pelo sumiço dos livros. Agita a memória desses tempos e não encontra um nexo, uma razão lógica, uma ideia explicativa para tão singular procedimento. Certo e seguro é que entre o casal havia silêncios maiores e mais pesados que todo o acervo de livros da biblioteca. Ele gastava o serão fumando cachimbo e folheando jornais; ela pintava ou moldava peças de barro num ateliê improvisado no sótão da casa.
Já então se entregava a um estilo de pintura aparentemente incompreensível, usando cores estranhas, aproveitando apenas uma metade da tela para exprimir a sua arte. Pintava essa parte e deixava em branco o resto, fosse a metade à esquerda ou à direita, a da parte de cima ou a de baixo. Por vezes dividia a tela pela diagonal e deixava correr os pincéis apenas em um dos triângulos formados. O contraste entre as metades, uma estranhamente pintada e a outra completamente vazia, deixava intrigados os amigos e familiares que ocasionalmente observavam os seus trabalhos.
Nas obras de cerâmica moldava rostos femininos com expressões de grande beleza, as bocas e os olhos serenos, mas depois de cozidas as peças deitava-as ao chão e fazia-as em cacos, para em seguida unir os estilhaços por meio de laboriosas colagens, umas correctas, outras propositadamente imperfeitas, introduzindo nos rostos disformidades e arestas que lhes fixavam indescritíveis traços de dor, indizíveis expressões de sofrimento.
Perante tais manifestações artísticas, o marido não permitiu que ela levasse os quadros e as obras de cerâmica à exposição de arte. Depois transigiu, mas pôs como condição a reposição na estante dos livros desaparecidos. A verdade é que os quadros e as peças de barro lá ficaram, longe dos olhos do público, enquanto os livros continuaram a morar em parte incerta.
Todos o dias, ao fim da tarde, o marido chegava a casa, tomava um banho, vestia roupa lavada, sorvia um vinho aperitivo e perguntava: O que é que há para jantar? Ela respondia quase sempre com uma ou duas palavras. Comiam em silêncio por entre o tinido dos talheres e o rumor das loiças.
Um dia, talvez desiludida por ninguém apreciar a sua arte, deixou de trabalhar no ateliê e passou a ocupar o tempo com inesperadas leituras, devorando livros que ninguém sabia de onde provinham, edições completamente desconhecidas, romances policiais sem crimes, histórias de amor onde os amantes não se beijavam uma única vez. O marido desconfiou daqueles livros cujos conteúdos perversos não auguravam nada de bom, e decidiu confiscá-los. Eram leituras perigosas, dessas que abalam as mentes frágeis das pessoas, em especial as mentes frágeis das mulheres.
Impedida de ler os seus livros, agarrou-se à escrita. Passou a ocupar as tardes e as noites sentada ao computador, compondo os textos mais extraordinários que é possível imaginar, textos onde em cada linha se elidiam letras, sílabas e palavras completas, de tal forma que o sentido dos mesmos ficava totalmente incompreensível, reduzido a uma amálgama de caracteres, a um exercício críptico de decifração impossível. Houve quem dissesse então que ela tinha um amigo a quem enviava esses textos e que esse amigo, sim, era capaz de os decifrar, e que por cada texto hermético que recebia lhe enviava outro onde os sentimentos se exprimiam de forma clara, e isso era o suficiente para ela depois refazer o seu e implantar sentido onde antes não existia. O marido não suspeitava de nada, mas um dia, percorrendo os arquivos do computador, deparou com uma escrita de arrebatadas expressões, com palavras carregadas de afectos, e achou por bem tomar uma atitude de homem.
Foi por esta altura que ela começou a mentir. Nunca até aí se atrevera a tão desmedida desfiguração da verdade. Sempre que era questionada sobre uma matéria e não queria ou podia responder com rectidão, tinha artes de tornear a pergunta, de exprimir uma meia verdade, nunca dando o não pelo sim ou o sim pelo não. Essa sua maneira de ser alterou-se completamente. Passou a mentir de forma tão sistemática e com tal competência que ela própria acreditava nas falsidades por si criadas. À noite, nos serões silenciosos, enquanto ele fumava cachimbo e folheava os jornais, ela que já não pintava, moldava, lia ou escrevia, limitava-se a trucidar a verdade em cada um dos seus gestos, em cada expressão do seu olhar, como se vivesse na dependência de uma droga e já dela não pudesse fugir.
Um dia, ao fim da tarde, quando o marido chegou a casa e perguntou, como era habitual, O que é que há para jantar?, ela não lhe deu qualquer resposta. Havia nos seus lábios a soberba ironia de um sorriso, uma desfaçatez sem limites que causavam perplexidade e dor. Então o marido, perante tão flagrante violação da normalidade, fez aquilo que, talvez em consciência, lhe competia fazer: telefonou para uma clínica psiquiátrica e pediu um internamento de urgência.

D.E.

quinta-feira, maio 10, 2007

A RESIGNAÇÃO DOS DESISTENTES

No princípio preocupava-se muito com o corte das camisas e o padrão das gravatas. Tinha a certeza de que o verde não condizia com o azul, que umas meias cinzentas caíam bem sobre sapatos pretos e que a bracelete do relógio dialogava com o cinto das calças. Vestia a preceito e raramente comprava roupa em lojas de pronto-a-vestir: tinha alfaiates certos, artesãos escolhidos segundo o seu estilo pessoal ou os ditames da moda que decidia acolher.
Saíam com frequência aos fins-de-semana, estrada fora, a percorrer o país monumental: gótico flamejante, vitrais, arcobotantes e botaréus, arcos de volta perfeita do românico, abóbadas de berço, capitéis historiados. Almoçavam em restaurantes com portentosos cardápios e pernoitavam em pousadas históricas, castelos ou palácios adaptados às exigências da hotelaria moderna, velhos mosteiros com as antigas celas transformadas em agradáveis aposentos, as portas abrindo-se para claustros com jardins e lagos de repuxos, o silêncio da antiga clausura dando lugar à alegria ruidosa dos que viajavam.
Não se deixavam seduzir pelos fins-de-semana românticos em Paris ou Viena que as agências de viagens tentavam vender-lhes. À monumentalidade das grandes cidades ou a esses programas turísticos que chamam “de sonho”, preferiam a sobriedade do “saia para fora cá dentro”, aqueles lugares onde a maravilha se serve em doses equilibradas, sem empanturrar os olhos e a alma, não deixando embotar os corações de deslumbramento. Tinham-se apercebido disto quando passaram uma semana de férias em Roma: Capitólio, Via Veneto, Fonte Trevi, Basílica de Santa Maria Maior, Praça Navona, e quase não tiveram tempo para o amor, faltavam os olhos para si próprios, esbugalhados naquele torvelinho de novidade e beleza que submergia o fulgor dos afectos.
Durou pouco ou muito tempo esta fase das suas vidas? É difícil responder. A partir de certa altura, nas saídas que faziam, começaram a levar livros dos quais apenas liam, à noite, passagens esparsas. Enredavam-se em entretenimentos e jogos de palavras, compondo acrósticos, procurando vocábulos e frases que pudessem ser lidos sem alteração de significado da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, os chamados palíndromos, palavras como “radar”, “osso” e “rir”, frases como “Roma é amor”. Não era fácil. Passavam depois aos lipogramas, arquitectando textos onde nunca entravam determinadas letras, tendo chegado a escrever umas trinta linhas sem um único registo da vogal “a” e da consoante “b”. Chegavam, por fim, aos anagramas, a ver quantas palavras podiam construir com as mesmas letras de outra palavra, e tiravam Natércia de Caterina, fazendo batota, claro, que a invenção era de Camões e a patente estava registada há vários séculos.
Já por essa altura lhes parecia que alguma coisa não estava bem, que as mãos e as bocas tinham deixado de falar os dialectos de antigamente. Aconteceu estarem um fim-de-semana completo numa cidade histórica e não terem visitado a catedral. Uma vez, em Junho, seguiam por uma estrada bordejada de cerejeiras carregadas de frutos e não conseguiram sentir a beleza e o perfume exalados pelas árvores. Quando paravam em alguma zona de descanso, junto de um parque de merendas com uma fonte que bebia a água da serra, mal se lembravam da última igreja que tinham visitado, se era de estilo gótico ou românico, se tinha uma ou três naves, se era de transepto inscrito ou saliente. Sentiam que, cada vez mais, lhes fugia a memória, ficando-lhes uma vaga reminiscência de manhãs carregadas de luz, de palavras e pedras rendilhadas, portais, rosáceas, absides, coruchéus, uma vaga reminiscência, apenas, na planura insondável do tempo presente.
Depois ele passou a preocupar-se cada vez menos com aquilo que vestia. Não ligava às cores e aos padrões, era capaz de pôr uma gravata de riscas sobre uma camisa de quadrados. Já lhe servia qualquer peça de roupa, mesmo dessas que se vendem no hipermercado, penduradas em tristes varões atrás de escaparates de mercearias, garrafas de vinho e detergentes, provadas no silêncio de minúsculos gabinetes com uma cortina de correr, um cabide e um espelho de vidro com a largura de um corpo, o pagamento feito na caixa, à saída, juntamente com o peixe, as hortaliças e o leite. E se, por força do hábito, ainda faziam alguma saída de fim-de-semana, era para voltarem sempre ao fim do dia, como se não fossem capazes de aguentar o peso de uma noite fora de casa ou já não soubessem fugir à sensaboria dos monótonos serões, o sono domando-lhes o corpo à boca da madrugada, até se resolverem a ir para a cama, um de cada vez, para dormirem mais uma noite sem chama, cansados da previsibilidade dos dias e da sua irremediável feição.
Os roteiros das viagens, as brochuras turísticas, os postais ilustrados dos monumentos e paisagens jaziam por esse tempo na mais triste prateleira da estante, como papéis imprestáveis. Já não passavam os olhos sobre eles para fazer perdurar a lembrança de tantas viagens por territórios felizes. Já só se entretinham com leituras ligeiras e jogos de palavras cruzadas, o jornal dobrado no colo, a caneta apontada à malha das quadrículas, única forma de comunicar que ainda lhes restava. Ele perguntava: arco quebrado da arquitectura gótica, cinco letras? Ela perguntava: é fogo que arde sem se ver, quatro letras? Mas por mais voltas que dessem à cabeça, por mais pistas que tentassem cruzar entre verticais e horizontais, nenhum deles era capaz de responder. E com a resignação dos desistentes estupidamente abrigada nos olhos, espreitavam as soluções no fundo da página.

D.E.

domingo, maio 06, 2007

SÉGOLÈNE ROYAL



Confesso que tive pena. A França perdeu a oportunidade de ficar com a Presidente mais bonita do mundo.

domingo, abril 29, 2007

UMA LUZ INDIZÍVEL NOS OLHOS

Nenhuma mulher escapava ao seu olhar de fera desapiedada, de animal insaciado, congeminando lascívias em cada hora do dia por mais trabalho que o prendesse ou maior canseira que lhe morasse no corpo. Chico Gostoso, talhante de profissão, trinta anos de idade, cingia carcaças de borrego e porco, alombava com pesadas pernas de bovino dos frigoríficos para a mesa de desmancha, cortava bifes e costeletas, picava carne, usava a faca e o cutelo com inexcedível mestria – era um amante das carnes, mais das vivas que das mortas.
Trabalhava no mercado. Através da montra aberta sobre os lugares dos vendeiros, procurava com os olhos a Isabel Alface ou a Rita Marmota, peixeira esta, vendedora de frutas e hortaliças aquela, às vezes era alguma freguesa – das mais jovens às mais entradas no abismo da idade, fossem solteiras ou casadas – que lhe despertava a atenção e as libidinosas pulsões. Chico Gostoso ia a todas.
Era voz corrente no mercado que desfrutava, em concomitância, tanto a Rita do peixe como a Isabel das hortaliças, mas nenhuma delas parecia acreditar em tão arrojada deslealdade. Se lhe pediam para jurar, jurava: que era mentira e inveja, nunca fora homem de se comprometer, ao mesmo tempo, com duas mulheres.
Rita era uma mulheraça, trinta e muitos, de boas carnes, desamigada de matrimónios e compromissos estáveis, despachava caixas de carapau e sardinha como quem bebe um copo de água, conhecia à distância as cores de todos os peixes e os cheiros exalados pelas suas entranhas, arrepiava pescadas, escamava abróteas e garoupas como quem limpa o rabo a meninos, era exímia na arte de descongelar e recongelar. Isabel era peça mais delicada e de viçosa idade, uma falsa magra, a cintura fina, as pernas bem torneadas, os seios redondos como meloas, tinha um olhar dengoso que desnorteava e fulgia, a boca era apetecível como um pomo maduro.
Para além destas duas havia a Maria Leiteira, dona de uma venda de queijos e enchidos regionais – morcelas, alheiras de Mirandela, paios e chouriços da Beira Baixa, queijos flamengo, Rabaçal e tipo Serra –, uma rapariga anódina, sem graça, já um pouco atrasada para o sacramento do matrimónio, que a pouca beleza do rosto e as carnes direitas do corpo não puxavam os homens para namoros ou vívidos relacionamentos. Chico Gostoso cortara-lhe uma vez um quilo de fígado de porco, era na hora em que o estabelecimento estava quase a fechar, não havia ninguém por perto, de sorte que, ao entregar-lhe o saco de plástico com o avio, deteve-se a sua mão na da triste feia, de forma tão carinhosa e inesperada que a rapariga subiu aos céus de consolação. A partir desse momento tomou-a um fraquinho pelo oficial das carnes, onde ele estivesse e o pudesse lobrigar lá estavam os seus olhos tristes. Ele é que fez logo marcha atrás com quanta força tinha, arrependendo-se do mau passo : com tanto gado de primeira para lidar, logo havia de ir desinquietar aquela rês famélica e descorçoada.
Os companheiros do mercado – o Zé dos bolos, o Manel dos congelados, o Paulo dos secos – gozavam com Chico Gostoso: É pá!, uma boa posta de peixe há-de ser sempre acompanhada de umas batatas novas e de uns legumes viçosos, só com acompanhamento é que a comida sabe bem; uma fatia de queijo para sobremesa também não vai mal, mas aqui o amigo Chico parece ter medo desse alimento: é que o queijo é magro e mal curado, deve ser por isso.
Durante algum tempo repartiu-se Chico Gostoso entre a dama do peixe e a jovem das frutas e hortaliças. Saía do pé de uma para se encontrar com a outra, lá ia chegando para as encomendas, nenhuma se queixava, que o homem era tão exímio nos volteios do amor como no manejo do cutelo e da faca de desossar.
Quem lhe estragou o arranjinho foi o Joca dos salgados, um sujeito miudinho e invejoso que mercadejava rissóis, chamuças, bolinhos de bacalhau e pastéis de massa tenra, e que, além disso, mau grado as dificuldades do intricado negócio, ainda ficava com tempo para vazar a gula dos olhos sobre as formas deliciosas da Isabel Alface. Despeitado pela má distribuição da riqueza que lavrava naquele mercado – um figurão batendo-se com duas mulheres, quando a ele não lhe tocava nada – resolveu bufar às damas as infidelidades do açougueiro, avançando com dias, horas, sítios em que as mesmas se cometiam, sem margem para dúvidas ou refutações, que para tal andou armado em espia durante um largo período de tempo.
As mulheres conferenciaram entre elas. Se o promíscuo assim agia, gozando com ambas de forma tão leviana, teria de levar uma lição. E em momento azado, quando o Chico Gostoso se fazia a mais um encontro amoroso com uma delas, em vez de encontrar uma encontrou as duas, que logo ali se dispuseram a render-lhe conjuntamente os especiosos favores que antes lhe dispensavam em separado.
Perante o imprevisto triângulo amoroso, vacilou o pinga-amor, aturdido, abalada a sua segurança de macho proficiente, ele que se habituara a conduzir e não a ser conduzido, apavorado com a possibilidade de não dar conta do recado. Ficou gelado, o membro frouxo num grande desconcerto vascular que lhe causou vergonha e medo.
No dia seguinte, todo o mercado comentava o sucedido, rindo de Chico Gostoso e da sua falsa prosápia. Rita Marmota e Isabel Alface, se o viam, chispavam-lhe olhares de escárnio. Alguns, depois dos primeiros momentos de gozo, chegaram a ter pena dele, tão enfiado que o viam, atrás do balcão do talho, lidando a custo com as grossas peças da alcatra e da vazia, levantando a cara, a medo, para as clientes que antes costumava despir com os olhos lúbricos. Chico Gostoso era um animal ferido, parecia que todos lhe tinham perdido o respeito. No entanto, quem passasse pelo lugar da Maria Leiteira e reparasse na triste vendedora de queijos e enchidos, notaria no seu rosto, como coisa nunca vista, uma rara expressão entre a esperança e a felicidade, um desses indefiníveis reflexos da alma que só raramente se fixam no semblante dos mortais, uma luz indizível nos olhos, como se começasse a apreciar a vida ou a acreditar no amor.

D.E.

domingo, abril 15, 2007

PRETEXTOS...

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«O Morto é só um pretexto» - pelo Grupo de Teatro do ISCTE - mISCuTEm

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) 30-03-2007 a 22-04-2007 6ª-Sab: 21h30; Dom: 19h00 Entrada: EUR 3,00 (geral) / EUR 2,00 (estudantes) / EUR 1,00 (sócio) Reservas: 217903000 / 217935000

Grupo de Teatro do ISCTE - mISCuTEm Carla Rodrigues (Coreografia) Ana Isabel Augusto (Encenação)

A peça «O Morto é só um pretexto - Os bivalves andam sempre aos pares e os tremoços são singulares», é uma produção do Grupo de Teatro do ISCTE - mISCuTEm, com encenação de Ana Isabel Augusto

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PARABÉNS À CARLA E A TODOS OS ELEMENTOS DO GRUPO DE TEATRO POR ESTE EXCELENTE PRETEXTO.

CONFESSO QUE O NOME DO MORTO ME PERTURBOU UM POUCO. MAS ACABEI POR ME ENCHER DE CORAGEM: ENTREGUEI O ÓBOLO E ATRAVESSEI O ESTIGE EM COMPANHIA DO BARQUEIRO CARONTE.

ESTAVA LONGE DE IMAGINAR QUE O REINO INFERNAL FICAVA NO BAIRRO ALTO.

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domingo, abril 01, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 4 )

Um perfeito disparate – foi assim que Cláudia classificou a empresa em que eu me metera, deixando a casa e o emprego para ir em demanda de um hipotético manuscrito de Camões, como se o trabalho de investigar sobre tal matéria pudesse ser levado a cabo por alguém destituído de formação e experiência para o fim em causa. Que ela pesquisasse sobre os entrechos da expansão portuguesa no Oriente, nenhuma admiração, pois era labor próprio da sua condição de universitária e doutoranda; agora eu, um zé-ninguém metido dentro da farda de uma empresa de segurança, arrastando as horas de vigília nocturna com os olhos dormentes e a cabeça dolorida de sono, a querer armar-se em descobridor de manuscritos perdidos, era coisa que não lembrava ao diabo. E, com grande frieza, deu-me ordem de regresso, sob pena de o meu dislate conduzir a desentendimento grave e, admiti eu, a uma muito provável separação.
Dei comigo a pensar sobre os sacrifícios que fazemos para conservar a estabilidade dos nossos afectos. Tantos sonhos que abandonamos, tantos momentos da vida em que saímos do nosso caminho para seguir a luz do outro. A vida a dois é feita de cedências e ajustamentos, de renúncias recíprocas em vista da felicidade comum. Só que, no nosso caso, parecia-me ser eu o único a renunciar, aquela metade que tinha sempre de se acomodar à vontade da outra.
E lembrei-me de um episódio da vida de casado do meu tio Gilberto. Tinha-me sido contado por ele há uns bons anos, pois a grande amizade que tinha por mim levava-o sempre a procurar transmitir-me, com exemplos da vida, os ensinamentos de que eu carecia para a minha formação como homem. Apresentando-me esse episódio como uma experiência de onde era possível retirar uma lição, ironizava ao mesmo tempo sobre as peripécias e o desfecho do mesmo, como se, depois de tanto tempo, já não passasse de um incidente menor da sua vida, algo que, apesar da importância que tivera, o tempo se havia encarregado de situar no plano das coisas que já não tinham o poder de o afectar.
Na juventude, a minha tia, mãe daqueles incríveis primos a que me referi, era muito possessiva e assaz exigente na reivindicação dos seus direitos matrimoniais, prendendo o meu tio em casa, ao pé de si, tanto quanto podia. Durante os dias de semana, nas poucas horas que lhe sobravam do seu labor de funcionário público, ela lá ia conseguindo segurá-lo com aquelas artes que as mulheres possuem e já nascem com elas. Ao domingo, porém, tudo lhe saía ao contrário. O meu tio Gilberto tinha o gosto do futebol – uma inclinação que lhe ficara dos tempos de rapaz – e não passava um santo dia do Senhor que não se encontrasse com o seu grupo de amigos para um jogo matutino – uma espécie de partida de solteiros contra casados – seguindo-se o almoço entre camaradas e, durante a tarde, exacerbados entusiasmos de bancada no estádio do clube. Semana sim, semana não, a equipa de futebol do clube ia jogar fora, aos estádios ou aos singelos campos da bola dos adversários, e ele lá seguia em excursão até esses lugares, não sei se como membro de alguma ruidosa claque ou apenas como espectador sereno. Todo o dia de domingo era assim passado em convívios, entretenimentos e práticas desportivas de bancada, enquanto a minha tia ficava em casa, sozinha, sob a custódia dos Lares. Ela aguentou um certo tempo, tentando perceber até onde chegava o atrevimento, sempre à espera de o ver reconsiderar e arrepiar caminho, mas como não houvesse melhoras e muito menos sinais de arrependimento, leu-lhe a cartilha: ou acabava o futebol, ou acabava ela. Foi remédio santo, que aquilo era mesmo um casamento de amor e o meu tio não a queria perder.
Também eu, seguindo o exemplo do meu tio, cedi a Cláudia. Cheguei envergonhado ao pé do representante do sebo e dei o dito por não dito: ele que procurasse sozinho o manuscrito de Camões, bem podia ficar com os louros da descoberta todos para si, que eu, por imperiosos motivos familiares, me via obrigado a regressar a casa. O homem ainda tentou contrariar os meus propósitos de desistência, aduzindo formidáveis convicções e inexpugnáveis certezas, dizendo encontrar-se na pista certa, à beira de encontrar o que tão ansiosamente procurávamos, e lembrando-me os proveitos que daí adviriam para ambos. A minha decisão, no entanto, estava tomada, e isso ele acabou por compreender.
Deixei Salamanca, a cidade que a uns sara e a outros manca, como diz o velho adágio, e meti-me à estrada. Ia meditando na minha vida e no meu casamento, sentindo que a partir daquela experiência falhada já nada voltaria a ser como dantes. Acabara por descobrir em Cláudia uma mulher fria e intransigente, criticando o arrebatamento que me tomara quando eu apenas pretendia sair da sombra e chamar a sua atenção sobre a minha pessoa. Afinal, o que via Cláudia em mim? Que futuro poderia ser o da nossa relação? E comecei a valorizar certos sinais, pequenos incidentes que antes havia encarado com bonomia e desprendimento, como se não tivessem nada a ver com a essência dos nossos afectos e fossem apenas o resultado de desiguais ritmos de vida, de diferentes projectos profissionais que exigiam a um o que não se pedia ao outro, mas que afinal continham o germe de uma união fracassada, que dificilmente iria longe. Por que razão Cláudia nunca me apresentava aos seus colegas da universidade? Como explicar o desinteresse que me dedicava, mal se aproximando de mim dias a fio? E que dizer das vezes em que não vinha dormir a casa, ficando toda a noite, segundo dizia, na universidade, preparando a matéria da sua tese, fazendo directas ou limitando-se a dormir umas escassas horas, sobre a madrugada, encostada a um maple do seu gabinete? Se me fosse possível mudar alguma coisa na minha atitude – como em tempos fizera o tio Gilberto ao deixar o seu grupo de amigos e entregando-se por inteiro ao remanso doméstico em companhia da sua esposa– certamente o faria. Mas eu não tinha nada que, de imediato, pudesse ou devesse mudar. Só queria que Cláudia se sentisse bem ao pé de mim. Não tinha amigos que me afastassem de casa e a única vez que a tinha deixado sozinha fora nessa triste demanda que me levara a Salamanca e de onde regressara de orelha murcha, com o ego desfeito. Nunca poderia alterar de um dia para o outro a pequenez da minha estatura intelectual nem a configuração das minhas limitações. Ou Cláudia me aceitava tal como era, ou não havia nada a fazer. E decidi que teria de me entender com ela logo que chegasse a casa. Estaria disposto a tudo para não a perder, apresentar-lhe-ia um plano de reabilitação da nossa relação. Seria capaz de voltar à universidade para reiniciar os estudos interrompidos, tentando dessa forma superar o desnível de habilitações que existia entre nós. Talvez, quem sabe, terminada a licenciatura, pudesse também fazer um doutoramento. Estava disposto a esquecer tudo, a pôr de parte as dúvidas que me assediavam e a acreditar de novo no nosso amor.
Cheguei a casa e fui recebido por Cláudia com absoluta normalidade. Isso desarmou-me. Nos dias seguintes, retomado o meu trabalho de vigilante nocturno, foi-me faltando a coragem para lhe falar e debater com ela aquilo a que me obrigara em pensamento.
Hoje, passados vários meses sobre a minha ida a Salamanca, a nossa forma de vida não sofreu alteração. Com os horários de trabalho trocados, eu entro em casa, de manhã, quando ela acaba de sair para a universidade. Vejo-a escassamente durante os dias da semana, e aos domingos, à medida que se aproxima a data de apresentação da sua tese, cada vez lhe noto menos disponibilidade e maior dose de impaciência para comigo. Sinto que esta situação não poderá continuar por muito tempo e algum dia teremos de discutir a sério a nossa relação. Poderá ser na próxima semana, poderá ser no próximo mês, quando me sentir capaz de falar com ela. Até lá, faço por acreditar que algum facto inesperado, algum sopro de vida podem ainda surgir e salvar o nosso casamento do coma profundo em que se encontra. Entretanto, hei-de passar um dia destes pelo alfarrabista do Bairro Alto. Pode ser que ele tenha notícias do representante do sebo e que algo se descubra sobre o Parnaso de Luís de Camões. Estou convencido de que isso modificaria muito, para melhor, a opinião de Cláudia a meu respeito.
D.E.

quinta-feira, março 22, 2007

Ainda o DIA MUNDIAL DA POESIA

Para comemorar o Dia, que também se apresentava como sendo da Árvore e, quiçá, da Primavera, estive na Bibiloteca Municipal de Alverca, a partir das 21 horas, onde estava marcado encontro com o poeta Gastão Cruz, nascido em 1941, personalidade ligada ao movimento Poesia 61 (com Casimiro de Brito, Fiama, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta) e autor de vasta obra poética.
Éramos nove, incluindo-se neste singelo número o poeta, a responsável da biblioteca e a senhora vereadora do pelouro da cultura.
Mesa fraca para tão saboroso repasto.

Aqui fica um poema de GASTÃO CRUZ:


OUTRO TEMPO


Ficávamos de tarde com a música
na escuridão dos quartos repassados
de secura
como se a luz atravessasse
sem claridade a casa


O corredor
alargava junto às salas
fechadas a maior acabava num
púlpito debaixo
do torreão em forma de coroa da casa


Durante horas a música lançava
obscuras vagas
o futuro
tão perto já cavava
covas nas salas nunca usadas

quarta-feira, março 21, 2007

DIA MUNDIAL DA POESIA

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.


REINALDO FERREIRA

(Barcelona, 1922 - Lourenço Marques, 1959)

domingo, março 11, 2007

NOVA E SURPREENDENTE HISTÓRIA DO LETRADO LUSCIÉNIO, PROCURADOR DO COUTO MINEIRO DE VIPASCA NO TEMPO DE AUGUSTO

Quem conta um conto, acrescenta um ponto.
(Adágio popular)

Lusciénio, letrado romano, filho dum liberto que enriquecera com um negócio de azeites rançosos e vinhos adulterados, cumpria desterro por crime que adiante se conhecerá no mais inóspito confim do Império, a remota Lusitânia, explorando uma concessão de cinco poços de cobre no couto mineiro de Vipasca. Chegou acompanhado da escrava Gláucida, prestadora de serviços tão apreciados pelo seu dono e senhor que até se colocou a hipótese de lhe conceder a carta de alforria. Sendo um letrado, Lusciénio foi entretanto requisitado pelo governo de Emérita Augusta para exercer as funções de jurisconsulto da civitas de Pax Iulia, lugar que lhe rendeu honra e acrescentamento, integrando-o na nata da sociedade local e permitindo-lhe firmar os seus créditos para se lançar a mais altos voos.
Apesar do travo do exílio, tudo estaria bem na vida de Lusciénio se este não se debatesse com um persistente distúrbio que lhe causava desgosto e vergonha. Moles como lesmas, não se lhe endureciam as carnes da genitália por maior carga de excitação que lhe habitasse o corpo. A razão deste desarranjo de ordem sexual – disfunção eréctil lhe chamará mais tarde a ciência – atribuía-a Lusciénio a um feitiço obrado pela lasciva Semprónia, mulher maligna que nas noites de Roma lhe secava as fontes seminais em imoderados festins de prazer, sempre insatisfeita, desejosa e despeitada com o afecto que ele dedicava à escrava Gláucida. Sendo Semprónia uma das concubinas de Augusto, sofreu Lusciénio a ira do Pater Patriae, que o enviou para o desterro lusitano no mesmo ano em que, provavelmente por análogas razões, despachou Ovídio para o exílio de Tomos.
Lusciénio não era parvo. De triclínio em triclínio, em luxuosos banquetes, foi consolidando as suas amizades com os poderosos e influentes até chegar a procurador do couto mineiro de Vipasca. Ascendeu ao posto por mérito próprio, mas uma boa ajuda lhe foi dada por uma arca de sestércios com que pagou, a quem de direito, o reconhecimento da sua aptidão para o provimento de tão rendoso cargo.
Estava Lusciénio já investido nas sua funções de procurador, fazendo vida de rico e tendo começado a construir uma villa com peristilo, jardim, lago de repuxos, triclínio, mosaicos pavimentares, banhos quentes e frios e outros cómodos, quando um legionário chegado de Roma para render um companheiro de armas que terminara a comissão de serviço, lhe entregou uma carta de seu pai:

Meu querido filho, muito tempo passou desde aquele dia em que de ti me apartei no cais do porto de Óstia, muita água correu sob as pontes do Tibre, muito sol queimou os telhados da nossa urbe e as copas das árvores que bordejam a via Ápia. Não voltei a receber notícias tuas dessa Hispânia onde te encontras, perguntando-me se sempre te fixaste na Lusitânia, como estava determinado e para onde te remeto a presente carta, ou se não te terás quedado pela Bética ou pela Tarraconense, províncias bem mais progressivas do que esse fim do mundo de bárbaros a que te condenaste. Meu filho do coração, quando providenciei para que tivesses os melhores mestres de Roma e zelei para que cumprisses dois anos de estágio em Atenas entre sábios e filósofos epicuristas, sempre pensei que, com tão robusto currículo, se abririam para ti as portas de uma rendosa carreira no foro, o que redundaria em teu proveito e em grande orgulho meu. Erros da juventude, meu filho, desviaram-te do caminho justo. Não é impunemente que se desafiam os desígnios do grande Pai da Pátria, o Imperador Augusto. Pagaste os errores cometidos, mas é chegada a hora de te dizer que, finalmente, há boas notícias. Poderás voltar a Roma, livre do opróbrio do exílio, logo que queiras. Vou explicar-te como consegui esta graça, mas antes, para que o possas entender, fica a saber que abandonei em definitivo as actividades mercantis ilícitas. Bom dinheiro me renderam, é verdade, mas mais cedo ou mais tarde, por evolução natural, teriam de ficar para trás. Hoje só trabalho com produtos alimentares de qualidade certificada: azeites da Hispânia e vinhos da Gália, tâmaras de Alexandria, ovas de esturjão do Cáspio, preparados de peixe de Gades, carne de vaca da Numídia. Tornei-me fornecedor da domus imperial e dos grandes patrícios de Roma, disponho de agentes comerciais nas grandes praças do mercado único do nosso Império. Foi assim que consegui, agora te explico, através das influências adquiridas no negócio, demover o Imperador. Em breve seguirá o decreto que te torna livre para regressares à Pátria. Meu adorado filho, vê se voltas depressa para tomares conta dos nossos negócios, pois a minha idade, bem o sabes, é já avançada. Nada receies, meu amado filho. Poderás casar, constituir família com uma matrona que te respeite e dê filhos, nada poderá perturbar a tua felicidade e dedicação ao trabalho. O Imperador perdoou a tua ousadia, e Semprónia, a lasciva, causa da tua perdição, acaba de ser desterrada para a Trácia por ter sido apanhada em orgias com mulheres de condição livre e escravas. Augusto, o Pai da Pátria, não perdoa imoralidades. Que os deuses te instruam, meu filho. Saúda-te o pai que muito te ama e deseja ver.
Foi por entre um remoinho de sentimentos contraditórios que Lusciénio leu a carta do pai. Era já noite. Afastou-se das lucernas que iluminavam o escrito e pôs-se a pensar. Desejava muito voltar a Roma, mas a verdade era que estava a consolidar a sua vida naquelas paragens lusitanas onde ganhava bom dinheiro e via correr os dias sem tribulações. Habituara-se à índole pachorrenta dos povos que habitavam as grandes planícies do Sul, debruçados sobre as searas com todos os vagares do mundo, sempre em dolentes cantes, pedindo licença a uma perna para mexer a outra, apascentando rebanhos de ovelhas e vigiando com os olhos dormentes as varas de porcos pretos focinhando a nutriente bolota sob os ramos dos chaparros. Habituara-se a apreciar a flora e a fauna locais, o olor e a luz das estevas em flor, o voo da abetarda e da cegonha. O sul da Lusitânia era uma terra de horizontes largos, de estranhos monumentos de pedra que se recortavam na paisagem clara, uns apontando os céus como dedos hirtos, outros em forma de templo na sua massa tosca, erguidos por antiquíssimos povos, muito anteriores aos celtas e cónios que a civilização de Roma ali viera encontrar. Partir era bom, ficar também. E depois, de que lhe serviria casar se não seria capaz de cumprir as obrigações exigidas a um pater familias? Mantinha-se o distúrbio sexual que o acometera, e Lusciénio rememorou todas as tentativas feitas para o superar: a medicina convencional e as terapias alternativas não resultaram; não resultou igualmente a poção receitada por um druida gaulês que Fortuna da roda alada e da cornucópia colocara no seu caminho, penando três dias com as tripas doridas e o ânus assado, os ingredientes bárbaros a revolverem-lhe as entranhas, e as carnes penianas permanecendo, teimosamente, sem vida; depois foi a peregrinação ao santuário do deus Endovélico, as ofertas votivas, as preces a Iupiter Optimus Maximus e os rogos a Prosérpina, deusa infernal, esposa de Plutão, para que contrariasse a maldição que sobre si se abatera; frequentou bruxos, visitou mulheres de virtude, tentou excitar-se em lupanares e orgias. Tudo fizera Lusciénio para tentar recuperar a virilidade perdida, e nada conseguira. Chegava a casa, aninhava-se nos braços da escrava Gláucida, e não ia além de umas carícias, de uns beijos ternos.
Algum tempo depois de haver recebido a carta do pai, teve Lusciénio de enfrentar uma grave contrariedade, a primeira que lhe surgia na sua carreira de funcionário do Império. Vindos da margem esquerda do grande rio que banhava Myrtilis, porto de embarque de todo o minério, hordas de bandoleiros descendentes dos antigos turdetanos da Bética assaltavam as caravanas que saíam de Vipasca e desviavam o produto metalífero para fundições ilegais. O estado e os concessionários que exploravam os poços de minério começaram a perder muito dinheiro, a braços com aqueles díscolos que assolavam as rotas de escoamento e ameaçavam levar o couto mineiro à falência. O minério que saía pelo porto fluvial de Myrtilis era baldeado para embarcações de longo curso nos portos de Ossonoba ou Lacobriga, as quais logo seguiam as rotas do mar em direcção às colunas de Hércules, engolfando-se no grande mar interior em cujas margens se situavam os centros consumidores. Lusciénio largou a pena, desvestiu o trajo togado, e, empunhando o gládio, cavalgou os caminhos de pó da planície ao lado dos legionários, dando caça à malandragem, perseguindo-os muitas milhas além de Vipasca. No Castelo da Lousa, na margem esquerda do grande rio, pernoitava Lusciénio com os legionários durante as expedições punitivas, não podendo saber que, vinte séculos mais tarde, barrado o curso do rio com um grosso paredão, toda aquela vasta área ficaria sepultada sob as águas de um lago, tão grande e profundo que nenhum homem da sua era poderia imaginar. Lusciénio chegou a pensar em alterar as rotas do minério, já conhecidas dos bandoleiros, fazendo-o seguir para um porto seguro naquele rio que subindo de sul para norte, ao contrário de todos os outros rios da Lusitânia, dirigia o seu curso para a próspera Salácia das cegonhas e das pinhoadas e se entregava ao mar, entre golfinhos e viveiros de ostras, numa baía azul onde se erguia a promissora Cetóbriga. Daí poderiam partir os barcos de mercadorias para o grande mar interior, onde encontrariam todos os ventos que Ulisses conhecera no caminho de Ítaca: o Bóreas, o Noto, o Zéfiro, o Euro. Mas logo concluía pela dificuldade do projecto, pelos custos de transporte que acresceriam em tal empresa: uma longa viagem atlântica de enormes riscos, a necessidade de contornar o Promotorium Sacrum com o seu mar alteroso, antes de se poder navegar à vista daquela costa amena, virada a sul, com as suas arribas rendilhadas e as praias de areias de ouro.
Foi numa dessas noites em que pernoitava com os legionários no Castelo da Lousa que Lusciénio, excitado das correrias da jornada, deu em reparar, com um inusitado interesse, nos grossos chumaços das genitálias sob as tangas dos militares. Retirados os uniformes, pernas e troncos ao léu, os corpos abandonados em repouso à luz dos archotes da caserna, arregalavam-se os olhos de Lusciénio para os generosos volumes entre coxas, uma singular atracção que começava a sentir e que não sabia bem aonde o poderia levar. Tal era a insistência com que o fazia que logo suscitou motejos da parte dos castrenses, uns claramente assumidos como machos, outros, se calhar, nem tanto, pois é sabido que a diferença de orientação sexual não era impeditiva, na sociedade romana daquele tempo, de se empunhar o gládio e a lança em defesa da Pátria.
A partir de aqui não voltaria a ser o mesmo o letrado Lusciénio. Detinha-se frequentemente a avaliar a musculatura dos trabalhadores braçais do couto mineiro, como se, na qualidade de procurador, quisesse certificar-se de que os homens ao seu serviço estavam em perfeitas condições físicas para o rude labor da extracção metalífera. Nos banhos, deixava o recato do reservado que as suas altas funções lhe haviam outorgado e misturava-se com militares e cidadãos comuns, com capatazes e homens de ofício, buscando a proximidade dos corpos, tocando e deixando-se tocar, em públicos deleites a que já não sabia resistir. Gláucida deixou de ser chamada para a sua cama, passando de escrava para todo o serviço a uma singela prestadora de trabalhos domésticos, completamente desqualificada perante o novo escravismo com que entretanto se adornara a casa. O preferido de Lusciénio, nesta nova fase da sua vida, era um rapagão de procedência norte-africana, de nariz esborrachado e músculos lustrosos, adquirido a um mercador de Olisipo especializado no fornecimento de escravos de prazer. E começou a correr, célere como o cavalo de Fama, a notícia da condição de effeminatus do procurador de Vipasca. Bem pensado, que outra saída poderia haver para um homem a quem os deuses, impiedosos, haviam roubado a virilidade?
Quando, por um dia quente já muito próximo das calendas de Julho, chegou a Vipasca o decreto imperial que abolia a pena de desterro do letrado Lusciénio, este mandou expedir um agradecimento ao Imperador, Pai da Pátria, mas invocando conveniência de serviço e os superiores interesses do Império, pediu licença para se manter em funções, não abandonando o couto mineiro.
Diz-se que viveu feliz o resto da vida na remota Lusitânia. E isso é afinal o mais importante. Seja onde for, seja como for.

domingo, fevereiro 25, 2007

UM PARECER DESFAVORÁVEL

Pela boca do rio entraram, em outros tempos, corsários normandos e norte-africanos, homens de barba ruiva, de pele tisnada, os olhos inchados de cólera e as mãos prolongando-se em aceradas lâminas, sequiosos de sangue e de saque. Desembarcavam nas praias, incendiavam o sossego e as casas das gentes, não poupavam a honra das mulheres nem o espaço venerável dos templos. O povo sofria, resignado, as agruras impostas por estas hordas que chegavam do mar, pois não havia forças capazes de lhes fazer frente.
Pouco a pouco, porém, foi-se organizando a defesa dos povos. Construíram-se atalaias, mobilizaram-se guarnições militares. Mais tarde, com o advento da artilharia pirobalística, converteram-se as torres de vigia em sólidos baluartes, corpos de pedra que protegiam com as suas peças de fogo a vida laboriosa das populações. Assim apareceram a Torre de Cascais e a Fortaleza de São Vicente a Par de Belém, albergando esta, sob o rendilhado manuelino de pedra, um poder de artilharia dissuasor das investidas de corsários e beligerantes.
Vieram depois, entre os séculos dezasseis e dezoito, as outras fortalezas: Nossa Senhora da Luz de Cascais, o Forte de São Julião da Barra – testemunha do odioso martírio de Gomes Freire de Andrade – , a Fortaleza de São Lourenço da Cabeça Seca ou Torre do Bugio, o Forte de Nossa Senhora das Mercês de Catalazete, S. Bruno de Caxias, São João das Maias, Santo Amaro, Santo António do Estoril – onde um vetusto ditador se despenhou de uma cadeira, alterando de forma irreversível o curso frouxo da História.
No século vinte, apesar da penúria do erário e da fraqueza do corpo militar, a defesa da entrada do rio não foi descurada. Subiu às colinas, estabeleceu-se em postos de observação dotados de holofotes que atravessavam a espessura das noites, em baterias de artilharia de costa bem acima do nível do mar, locais privilegiados para vigiar e fazer fogo, pois outras eram, nesses tempos já modernos, as ameaças esperadas: poderosos navios de guerra, massas de aço avassaladoras, rasgando os céus com o poder fulminante das suas peças.
É a partir da década de sessenta que o aumento populacional dá lugar a um grande crescimento da construção civil na orla do mar. As casas, edificadas em urbanizações servidas pelo caminho de ferro da Sociedade Estoril, alastravam como manchas na paisagem da costa: Laveiras, Espargal, Nova Oeiras, Lombos, Rana, Galiza, Alapraia, Monte Estoril e tantas outras localidades. Multiplicavam-se os edifícios de cimento com os seus alvéolos habitacionais, enquanto as baterias de artilharia, estrategicamente implantadas nas varandas dos montes, viam surgir diante de si a ameaça dessas edificações que lhes roubavam o campo de visão sobre o leito do mar, tolhendo-lhes os exercícios de tiro tenso e tiro curvo ensaiados em laboriosas manobras militares. O perigo já não vinha da superfície marítima, mas de terra firme.
Foi então que a unidade de artilharia de costa passou a ter maior atenção aos processos de licenciamento das novas urbanizações. Os oficiais analisavam os dossiês, informavam o comando, e este, no desempenho dos seus poderes, ditava a sorte dos projectos. Perguntavam os construtores para que serviam aquelas canhoneiras mal dissimuladas nas encostas dos montes, atrapalhando-lhes os negócios e atrasando o progresso das terras, se, em caso de guerra, logo seriam aniquiladas pela aviação inimiga? Ninguém sabia ou queria responder, e eles lá se iam conformando, aparentemente, com as determinações que vinham de cima.
Só que esta raça de gente que se mete a levantar casas, a ligar cimento com ferro em especulativos empreendimentos, nunca descansa quando se trata de levar a sua avante. Havia, num lugar da freguesia da Parede, uma urbanização que crescia a olhos vistos, ameaçando acabar com a operacionalidade das unidades de artilharia. Já os prédios iam adiantados, altos como palmeiras, quando o processo chegou à mesa de trabalho do oficial encarregado de o apreciar. Aquilo era uma espécie de facto consumado. O militar folheou o vasto dossiê pejado de desenhos à escala, memória descritiva e justificativa, projectos de arquitectura, plantas de ruas, praças e pracetas. Cada milímetro de solo era avidamente aproveitado, construindo-se em altura o mais possível, pois o preço do metro quadrado estava pela horas da morte e os apartamentos eram tão necessários como pão para a boca. Consultou as cartas topográficas, compulsou o relevo pelas curvas de nível, apurou a altura dos edifícios, foi para o terreno armado de teodolito e telémetro. Fez contas, lidou com senos e cosenos, entregou-se a cálculos logarítmicos, e tudo apontava para a inviabilização daquelas construções. Informação ao comandante: Excelentíssimo Senhor Comandante, Coronel da Arma de Artilharia, por estas e estas razões, atentos os superiores interesses da defesa militar, tendo em conta as posições dos postos de observação e das baterias tais e tais, com vista a garantir as condições operacionais das mesmas não é de autorizar o levantamento da urbanização no volume e altura constantes do projecto, pelo que se deverá notificar de imediato o construtor a fim de interromper a obra – Vossa Excelência, no entanto, no seu alto critério, decidirá como melhor entender. Assinado: fulano de tal, capitão.
Nunca mais se soube que despacho merecera o parecer desfavorável do diligente oficial, mas estranhou-se que, passado algum tempo, o crescimento dos prédios continuasse a desenrolar-se numa orgia frenética de betoneiras e guinchos de içar, de camionetas a chegarem com novos materiais, de andaimes que singravam na direcção astral como se quisessem acometer os céus com os seus postes e tábuas sebentos de tinta e restos de argamassa. Pediu o oficial para ser recebido pelo comandante. Sim senhor, tinha lido o parecer, um texto fundamentado, preciso, correcto, tecnicamente bem elaborado, mas nada a fazer: outros interesses mais altos se levantavam. O país não podia parar, as fábricas de cimento tinham de continuar a produzir cimento, a siderurgia não podia abrandar a sua produção de ferro e aço, a indústria vidreira, as cerâmicas, as empresas de cabos eléctricos tinham de continuar a fabricar e a vender para não fecharem as portas. A construção civil era o motor da economia – lá diziam os entendidos – e as pessoas precisavam de casas para morarem. Para mais, tratava-se de uma urbanização muito bem projectada, próxima da praia, onde seria gostoso viver, fruindo os saudáveis ares do mar.
Foi talvez por esta afeição manifestada a respeito da nova urbanização, ou por qualquer outra causa não determinada, que se mudou a família do comandante para um dos melhores apartamentos lá construídos. A este propósito houve logo quem insinuasse, quem emitisse juízos de sentido dúbio, e houve também – gente mais ousada! – quem chegasse a proferir afirmações inequívocas, a verberar condutas, falando de interesses ocultos e compadrios. Sempre tivemos muita inveja por esse país fora! A verdade, porém, é que o comandante vive hoje naquele esplêndido apartamento construído na urbanização que lhe entaipou postos de observação e baterias, enquanto o oficial autor do parecer desfavorável continua a morar na sua modesta casa de sempre.
D.E.

domingo, fevereiro 11, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 3 )

Perguntei no Hotel Ceylan pelo representante do sebo, tendo-me sido indicada uma esplanada da Plaza Mayor onde ele costumava almoçar sempre que vinha a Salamanca. Pela descrição feita, não tive dificuldade em descobri-lo. Comia, quando o encontrei, uma tortilha e uma salada mista – refeição frugal para tão vastas carnes – acompanhando o repasto de um tinto Rioja Campo Viejo. Apresentei-me, pedi licença para uma breve conversa, dando como referência o alfarrabista de Lisboa. O homem acabou de deglutir a fritura de ovos, sorveu a última folha de alface, pediu uma taça ao empregado e encheu-ma de vinho. Depois, escarafunchou com um palito as recônditas fendas da região dental, limpou o bigode com um guardanapo de pano branco, abanou-se com um jornal dobrado ao meio como se fosse um leque, e, enquanto me ouvia, passava a mão pela aridez da calva e espraiava os olhos pelas fachadas dos edifícios setecentistas, refulgentes de arcadas e varandas, como se eu não estivesse ali e as minhas palavras viessem de uma instalação sonora em algum ponto ignorado da praça.
Terminada a exposição das minhas razões, fiquei longos segundos à espera que me dirigisse a palavra. Foi quando me lembrei de que não voltara a falar com Cláudia desde o dia anterior, quando saí de Lisboa, nem tão-pouco ela me respondera à mensagem que lhe deixei no telemóvel. Completamente absorvido pelo motivo que me levara a Salamanca, nunca mais me tinha lembrado de lhe telefonar.
O homem, como uma dádiva do céu, deixou cair os olhos, finalmente, sobre a minha humilde pessoa, reiterando tudo o que o alfarrabista me havia dito. Que não havia nenhum manuscrito de Camões entre os livros e documentos por ele adquiridos, e que tudo aquilo, livralhada e demais papéis, eram peças de lana-caprina, coisas sem interesse, havendo, no entanto, algo merecedor de registo: um fragmento de um códice datado do século dezasseis – mas, na verdade, uma descarada falsificação feita uns trezentos anos mais tarde – onde se aludia a uma cópia do Parnaso de Luís de Camões feita por um monge salmantino por encomenda de uma família da alta nobreza castelhana, cujo nome, infelizmente, se apresentava ilegível. Fora essa a razão que o trouxera a Salamanca e não o desconchavo da edição apócrifa do Quixote, notícia que deixara espalhar em Lisboa para despistar a concorrência. E aproveitou, uma vez que estava necessitado de um ajudante de campo e eu, por razões sentimentais e curiosidade pessoal, me interessava pelo assunto, para pedir a minha colaboração no sentido de o ajudar a atingir os seus objectivos: identificar a ancestral família e tentar encontrar a preciosa cópia. Quanto aos livros e papéis que estavam na arca do meu tio, já tinham sido enviados para São Paulo, por via aérea, para o sebo que lhe pagava o ordenado, a fim de que, por descargo de consciência, fossem avaliados através de processos científicos, embora isso não o preocupasse muito, pois certamente não se enganara no juízo que deles fizera, além de que, nas Américas, esses papéis bafientos da velha Europa, verdadeiros ou falsos, eram sempre dinheiro em caixa.
Emocionei-me de alegria ao ouvir as suas palavras. Por duas razões: a primeira, por ser para mim uma espécie de reabilitação da boa imagem do meu tio – um pouco abalada desde que comecei a dar conta do fiasco da arca -, pois era uma prova de que havia um fundo de verdade quando falava no manuscrito de Camões, mesmo não existindo tal manuscrito ou existindo apenas pela referência que lhe era feita no fragmento do falso códice; a segunda, por me permitir continuar a sonhar com uma descoberta de enorme significado histórico e cultural, algo que, a verificar-se, iria lançar sobre a minha pessoa a admiração de todos os amantes da cultura. Dei comigo a pensar no orgulho que Cláudia iria sentir por mim - eu que não passava de uma figura apagada, exercendo uma desqualificada profissão, enquanto ela brilhava na sua carreira académica – e antecipei o gozo de ouvir os seus elogios, imaginando-a a contar aos colegas da universidade o papel desempenhado pelo marido em tão importante achado.
Aceitei a proposta de colaboração do representante do sebo e telefonei a Cláudia. Esperava encontrá-la ansiosa pelo meu telefonema, feliz por saber de mim, por me poder ouvir, mas a conversa foi fria, como as águas do Tormes em pleno Inverno.
(Continua)
D.E.

domingo, fevereiro 04, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 2 )

Na manhã do dia seguinte, mal saí do turno de vigilância nocturna na sede do banco, encaminhei-me para os lados do Bairro Alto. Tomando o Cais do Sodré, subi a Rua do Alecrim, passei pelo Largo de Camões – olhando com enternecimento a estátua de bronze do Poeta – e metendo-me pela Rua da Misericórdia comecei a indagar junto de lojas de antiguidades e alfarrabistas sobre quem poderia ter comprado a arca. Os comerciantes que abordei, declarando-se desolados por não lhes ter calhado em sorte um tal negócio, iam-me citando nomes e locais de outras lojas, procurando ajudar-me na minha busca. Cheguei a um estabelecimento da Rua da Trindade cujo proprietário, conhecedor como ninguém do mercado em que se movia, me remeteu para casa de um alfarrabista descendente de uma velha família de judeus sefarditas, fugida para Itália nos tempos do rei D. Manuel I, mas regressada, cem anos mais tarde, por graça régia de um dos Filipes, na qualidade de administradores do erário público e colectores de impostos – o que dá para perceber como já nessa época a administração central tinha de esquecer inimizades e abrir os cordões à bolsa para contratar no sector privado gestores competentes em matéria fiscal. Os membros desta família acabaram por fazer carreira, através de sucessivas gerações, em diversos serviços dependentes do Conselho da Fazenda do Reino, e embora alguns deles tivessem sido sujeitos a tratos de polé pela Inquisição do senhor D. João V, a verdade é que lograram permanecer no país até aos nossos dias em situação económica sempre muito desafogada.
Cheguei à fala com o dito alfarrabista, um velho miudinho e enfezado – resultado, talvez, dos antiquíssimos genes desenvolvidos na frugalidade alimentar do maná do deserto – e por ele vim a saber que tinha de facto adquirido a arca aos herdeiros do meu tio, convencido de que estava a comprar ouro de lei, mas que, analisado o seu conteúdo com mais detalhe, chegara à conclusão de que havia feito um mau negócio. E foi-me contando: a arca era de pau carunchoso, qual sândalo, qual carapuça; os livros, de reduzido interesse, eram rendilhados de folhas que se desfaziam mal se lhes tocava; os manuscritos não passavam de falsificações, tão grosseiras que até pareciam ter sido feitas com canetas de tinta permanente; os pergaminhos não tinham pergaminhos; o astrolábio não era astrolábio; forais e cartas régias só na Torre do Tombo; o punhal matador da bela Inês era de uma cutelaria de Toledo, sim senhor, mas não ultrapassava a idade do mais novo dos seus netos. Resumindo: um fiasco. Pagara por tudo aquilo dez réis de mel coado, garantiu-me, mas mesmo assim ficara-lhe atravessado na garganta o desastrado negócio, algo que nunca lhe tinha sucedido em muitos anos de actividade mercantil. Perguntei-lhe então pelo manuscrito de Camões, o célebre Parnaso de que fala Diogo do Couto na Oitava Década da Ásia, e o olhos miudinhos do aliado de Javé faiscaram de gozo, despejando-me na cara uma gargalhada bíblica. Que também lhe tinham falado nisso os que lhe levaram a arca, mas que nem por um só momento havia acreditado em semelhante dislate.
Quis ver a arca para me certificar de que falava verdade, mas o meu interlocutor tirou-me daí o sentido. O lenho carunchoso ainda estava em seu poder, à espera da avaliação de um restaurador de móveis, mas o recheio tinha sido vendido pelo preço de aquisição ao representante de um sebo brasileiro de São Paulo que andava pela Ibéria em demanda de uma edição apócrifa do Quixote de Cervantes, encontrando-se hospedado no Hotel Borges, no Chiado. Explicou-me que sebo é o nome dado pelos brasileiros a um estabelecimento que compra e vende livros antigos e que o dito representante do sebo paulistano era um cavalheiro de meia-idade, calvo e gordo, que usava bigode e palitava os dentes, um pouco mais alucinado que o profissional típico do ramo. Mostrou-me o cartão que lhe deixara: fulano tal, consultor bibliográfico.
Hotel Borges comigo, um groom quase infantil que me abriu a porta, um recepcionista ensonado por detrás do balcão.
- Esse senhor saiu esta manhã – disse-me o empregado – mas volta para a semana. Já deixou a reserva feita, pois teve de ir a um leilão de livros antigos em Salamanca. Vai ficar instalado no Hotel Ceylan, fui eu mesmo que lhe fiz a marcação.
Não quis saber de mais nada e fui para casa com o objectivo de fazer a mala e rumar a Salamanca. Dei conta, quando cheguei, que Cláudia não tinha dormido em casa nessa noite, pois a cama estava feita como eu a deixara de véspera depois do meu sono diurno. Achei estranho, porque quando saí para o banco, antes da meia-noite, estava ela sentada ao computador, trabalhando na sua tese. Procurei saber o que teria acontecido, ligando-lhe para o telefone móvel, mas não respondeu. Telefonei para o seu departamento na universidade: que sim, que estava ao serviço nesse dia, nenhum problema. Avisei então o meu chefe sobre a impossibilidade de comparecer ao trabalho durante o resto da semana. Meti-me no carro e pus-me a caminho de Espanha.

(Continua)
D.E.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 1 )

Gilberto, meu tio, dizia ter no sótão, dentro de uma arca, uma vasta colecção de livros e códices antiquíssimos, rolos de pergaminho grafados em latim, cópias de forais e cartas régias, um astrolábio que se salvara do naufrágio da nau S. Bento no Cabo da Boa Esperança, além de duas peças que designava como as mais valiosas de todo o acervo: a lâmina com que o verdugo Pacheco degolou D. Inês de Castro, e um manuscrito inédito de Camões – com grande número de elegias, odes, éclogas e canções – que lhe fora furtado em Lisboa quando se preparava para o entregar na oficina do impressor. Isto era o que dizia o tio Gilberto, pois a arca, com o seu valioso recheio, nunca ninguém a viu. Vivia escondida nos desvãos do sótão, inacessível a olhos de estranhos, embora fosse usada muitas vezes como argumento de autoridade nas dissertações com que o velho tio deslumbrava as visitas de casa. Tinha como tema predilecto nessas dissertações a história do ignominioso atentado dos Távoras contra a augusta pessoa do rei D. José I, embora também costumasse perorar sobre jesuítas e outros parasitas clericais. E sempre que algum assombrado ouvinte, embora esmagado pela erudição, deixava transparecer qualquer dúvida sobre a matéria expendida, o meu tio Gilberto invocava a arca e os seus arcanos – que estavam lá, dizia ele, todos os documentos em que se baseava para a defesa das suas teses.
Não foi feliz este meu tio. Nem com os filhos que a sorte lhe destinou – refractários aos interesses e saberes do pai – nem com os anos de velhice, que poderiam ter sido longos e cheios de interessantes conversas aos serões se não lhe tivesse sobrevindo, mal entrado na reforma, umas dessas doenças que nos habituámos a qualificar de prolongadas, mas que sem detença e grandes prolongamentos o lançou no forno crematório do cemitério do Alto de S. João.
Morto o tio Gilberto, lançadas ao vento as suas cinzas, soube vagamente que a arca e o seu recheio tinham sido vendidos por bom dinheiro a um antiquário do Bairro Alto, informação que acabei por dar como certa e confirmada, visto que os meus primos apareceram logo com uns BMW novos, acabados de sair do stand, e, nesse ano, tiraram duas semanas de férias nas praias do nordeste brasileiro, eles que não tinham por hábito alargar os seus destinos balneares além de Carcavelos ou da Costa da Caparica. Afinal, concluí, a arca continha mesmo as valiosas peças de que falava o tio Gilberto. De outra forma, não teria proporcionado o encaixe financeiro que parecia fazer as delícias dos meus primos. E eu senti vergonha de algumas vezes não só ter duvidado da importância que ele lhe atribuía, como até da sua elementar existência.
Acontece que pela altura do passamento do tio Gilberto, Cláudia, a minha mulher, fazia um fulgurante doutoramento cuja tese – A Expansão Portuguesa no Oriente Durante o Século XVI - lhe levava arrastadas horas de trabalho entre a universidade e a biblioteca, trazendo para casa, nas dissimuladas gavetas do seu portátil, grande quantidade de informação que trabalhava pela noite fora. Concedia-me nesse difícil transe a benesse de um simples encontro semanal nas delícias do tálamo, oportunidade que eu saboreava como escassa, mas que aceitava e compreendia, dado o carácter absorvente do seu trabalho e a reconhecida dedicação com que se lhe entregava.
Diga-se que existia entre mim e Cláudia, não obstante nos amarmos muito, um grande desnível de habilitações académicas e de estatuto profissional. Enquanto ela dava aulas na universidade e preparava o seu doutoramento em História, eu tinha fracassado no curso universitário, ocupando-me em trabalhos precários, inadequados à minha formação, como, por exemplo, vigilante nocturno de uma empresa de segurança ou vendedor de soluções de informática em mercado residencial. Foi numa manhã em que regressado a casa após uma noite de vigília na sede de uma instituição bancária, a horas em que Cláudia já havia saído para a universidade, abeirando-me da sua mesa de trabalho vi aberto o grosso volume da Oitava Década da Ásia, de Diogo do Couto, em cujo livro quinto, capítulo nono, ela tinha sublinhado a seguinte passagem:

Neste Inverno começou Luis de Camões a compor hum livro muito docto de muita erudição que intitulou Parnaso de Luis de Camões, porque continha muita poesia, filosofia, e outras ciencias, o qual lhe desapareceo, e nunqua pude em Portugal saber delle.


Estas linhas do continuador de João de Barros nas Décadas da Ásia fizeram-me pensar de imediato na arca do tio Gilberto e no manuscrito do Épico que ele dizia estar lá guardado. Será que se tratava desse precioso livro que, segundo o historiador, Luís de Camões ia compondo em Moçambique enquanto não encontrava meios para pagar a viagem de regresso à Pátria? Se assim fosse, por mais dinheiro que os meus primos tivessem recebido do antiquário a quem venderam a arca, tratar-se-ia sempre de uma soma insignificante, face à importância daquele manuscrito. Um livro perdido de Camões, uma preciosa obra lírica, entregue dentro de uma arca a um obscuro comerciante de antiguidades por dois BMW de último modelo e umas semanas de férias no Brasil. Fiquei indignado com semelhante atentado à cultura, estarrecido perante a possibilidade de aquele tesouro poder cair em mãos erradas. E resolvi agir.

(Continua)

D.E.