quarta-feira, agosto 22, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 5 )

O cigano vinha às quintas-feiras. Percorria as ruas da aldeia com a sua carrinha de pintura debotada, mordida da ferrugem, e ia parando à porta das clientes exibindo os artigos que mercadejava: jogos de toalhas de pano turco, cobertas de cama, pijamas de homem e de mulher, roupa interior, peças decorativas e adereços baratos. Dizia-se que muito do que vendia era material de contrabando, mercadorias que dissimulava sob os bancos do veículo ou que metia num falso compartimento que passava por ser da roda sobressalente. Apresentava-se com um sorriso branco, a pele morena, vestia casaco preto e camisa de fantasia, trazia ouro ao pescoço e anéis fulgentes nos dedos. Não se lhe conhecia o nome ou o apelido de família, sendo suficiente o traço distintivo da sua etnia para uma clara e insofismável identificação pessoal. Não se sabia se tinha mulher ou filhos, de onde vinha e para onde ia. Certo e seguro era que às quintas-feiras chegava a Vilarinho do Rio à primeira hora da tarde, fazendo-se anunciar pela buzina da carrinha através de uma sequência de sons que não deixava dúvidas a ninguém.
O cigano tinha uma forma cantante de falar, repleta de expressões e pronúncias próprias das gentes do outro lado da fronteira. Mostrava uma combinação cor-de-rosa, com finas rendas, que retirava de uma caixa de cartão, e perguntava à cliente:
“Te gusta? Es preciosa!”
As mulheres, se ainda jovens, coravam de desejo perante aquelas peças maravilhosas com que se imaginavam, à noite, no fogo das alcovas, a deslumbrar os seus companheiros. E compravam muito, quase sempre a prestações, que de ninguém desconfiava o mercador, sempre disposto a conceder facilidades de pagamento sem o mínimo receio de ver pairar sobre o seu negócio a sombra odiosa do crédito malparado.
Só Salomé não se entusiasmava com as roupas. A maioria das vezes só tinha olhos para as molduras de estampas religiosas que se misturavam por entre a panóplia de artigos com que o cigano enchia a carrinha. Desejou muito um S. João Baptista representado no meio do rio Jordão, com a água pelos joelhos, dando o baptismo a Nosso Senhor. Quase se apaixonou pela serenidade daquele rosto de onde brotava o fulgor de uma santidade profunda, parecendo-lhe o de Cristo, ao pé do dele, pouco mais que uma vulgaridade. E pensava que quando lhe nascesse um filho – o que ia tardando –, lhe daria o nome daquele santo grandioso e belo que pregava no deserto da Judeia contra fariseus e saduceus, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, vestindo uma rude roupa feita de lã de camelo cingida com uma tira de couro grosseiro. Porém, como não se decidira logo e, entretanto, fora vendida a moldura do baptista, acabou por comprar um quadro com a imagem de um anjo da guarda a proteger duas frágeis crianças que brincavam descuidadamente na margem de um rio. A cabeça do anjo era um novelo assexuado de caracóis de ouro, os lábios entreabertos como se sorrissem ou deixassem passar algum avisado conselho aos incautos infantes – um menino e uma menina – , as asas levantadas e os braços abarcando a iminência do perigo sob o resplendor do dia. Salomé trabalhara seis meses na fábrica de papel, tinha um dinheiro de parte, e pagou a pronto. Isso pareceu impressionar o cigano que se dispôs a entrar em sua casa munido da ferramenta adequada para colocar o quadro no sítio desejado pela cliente. Tanto a boa vontade do cigano, em que poderia ser vista sem maldade uma simples atenção comercial, como o assentimento dado por Salomé a que a ajudasse naquele trabalho, não agradaram às vizinhas que estavam por perto e puderam presenciar a cena. O que se passou lá dentro não lhes foi dado ver, pelo que se limitaram a calcular o tempo em que permaneceu o homem no interior da morada, uma enormidade de minutos que por pouco não faziam uma hora, um tempo desajustado ao fim em vista, para o qual, segundo elas, uns cinco minutos teriam sido suficientes. Isto foi o que disseram e depois correu por toda a aldeia, chegando aos ouvidos de Josué, embora não pareça de justiça acreditar em tudo o que se diz e se ouve. Se o cigano demorou dentro de casa mais do que os cinco minutos que pareciam bastar para a operação, foi porque alguma coisa deverá ter corrido mal, reclamando cuidados adicionais: um prego que se entortou, impedindo a imediata suspensão do quadro na parede, a necessidade de improvisar uma bucha para uma mais sólida fixação, enfim, quem lança as mãos à obra é que sabe as dificuldades com que se depara.
“Santo Deus, meter o cigano em casa com o marido fora.”
Josué afastava-se da aldeia que ia submergindo e galgava o aclive do monte por entre o odor poderoso e inebriante das estevas em flor. Quando ali voltasse não estaria nenhuma pedra à vista, estava seguro disso. E, de súbito, como uma frecha lançada de um passado distante, irrompeu-lhe na memória a visão daquele quadro que um certo dia, ao chegar a casa, quando regressava da pesca no rio, vira pendurado na parede fronteira à porta de entrada.
“Comprei-o ao cigano. É um anjo da guarda”, disse-lhe a mulher.
Salomé andava estranha, em frequentes visitas à igreja, a lavar-se de manhã e à noite com água da Fonte Santa, dizendo ter pedido uma graça à Senhora dos Milagres, e a razão, sabia-a ele, era essa dificuldade em emprenhar, cinco anos de matrimónio e nenhum resultado à vista. Josué também se sentia mal com a união maninha, mas que fazer? De um ou outro membro do casal teria de ser o problema, se calhar dos dois, ainda que fosse menos provável esta última hipótese. Sempre se deram casos destes em que a semente do macho, por defeito seu ou da fêmea que a recebe, não dá o fruto desejado. Não iria acabar o mundo por causa disso. E respondeu-lhe:
“Melhor gastasses o dinheiro em coisas de utilidade.”
E foi só isto que ele falou, nada mais, pois sabia que se se alongasse em outras considerações, Salomé aproveitaria para tentar discutir a questão da união infértil, e sempre que isso acontecia ele era acometido por um grande embaraço de macho ferido nas suas capacidades de reprodutor, um embaraço que o remetia para um persistente silêncio sobre tal assunto, como se soubesse de antemão que o mal era dele e só dele, sentindo-se diminuído perante a mulher e todos os que o rodeavam.
Então foi passar as mãos por água no lavatório. Sentou-se à mesa a sorver a sopa e a comer o pão do jantar. Tinha pressa de terminar. Acabou, e foi para a sociedade recreativa jogar dominó com os camaradas.
Quando voltou, perto da meia-noite, Salomé já dormia, enrolada sobre si como um feto. Nem se mexeu quando ele avançou por entre os lençóis e a enlaçou pela cintura, passando-lhe uma perna sobre as coxas. Ela contraiu-se um pouco, como se, inconscientemente, quisesse dar um sinal de algo que não deveria acontecer, e a sua respiração ganhou volumes de um silvo agreste e inesperado. Nenhum perfume de desejo emanava daquele corpo desgastado de desilusão e mágoa.
Josué lembrava-se bem: foi no dia seguinte que partiu para a faina das vindimas, para ganhar um dinheiro suplementar, uma oportunidade que lhe surgira da parte de um antigo patrão dos seus tempos de solteiro. Esteve fora de casa duas semanas. Foi quando regressou, ao fim desse tempo, que Salomé lhe disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”

D.E.

1 comentário:

João António disse...

Magnífico. Quando na escrita cada palavra tem o peso certo, provoca no leitor a evocação do drama em sincronia com a acção que é descrita, o tempo torna-se uno, um tempo sem tempo, que é aquilo que eu como leitor gosto de usufruir, no fundo participar da imortalidade das obras.
É aquilo que senti ao ler este trecho.