Durante quarenta dias e quarenta noites as águas cresceram muito sobre o corpo da terra. Um dilúvio silencioso, nascido do chão, batia no paredão da barragem e, refluindo, estendia-se pelos vastos campos ainda povoados de todas as classes de criaturas: animais puros e impuros, répteis e aves do céu, insectos rastejantes e voadores – humildes seres em cujas narinas havia sido depositado o sopro da vida.
Com as raposas, os texugos, as abetardas e as cegonhas não se tinham preocupado muito os donos do empreendimento, mesmo apesar de todo o assédio que lhes fora movido pelas organizações de defesa do ambiente, ciosas da preservação das espécies e do equilíbrio dos ecossistemas. Foram outros e mais fundos os seus cuidados: os autarcas que não cessavam de reclamar benesses pela propaganda feita em prol da obra, a satisfação das exigências dos que teriam de deixar as suas casas, as pressões do governo para a rápida conclusão da empreitada. Como se estava em ano de eleições, era preciso converter em votos o sucesso do empreendimento, mostrando às populações o número de postos de trabalho que seriam criados na região e a prosperidade induzida que resultaria do regadio e da futura instalação de um pólo agro-industrial. Os animais, portanto, que cuidassem de si. À medida que as águas lhes entrassem nas tocas ou nos ninhos, logo demandariam outros lugares de poiso, que nisso eram bem mais aptos do que os indivíduos do frágil género humano, sempre necessitados de auxílio para responderem a incidentes como os que agora se atravessavam nas suas vidas.
Naquele dia, ao fim da quarentena de água, Josué atravessava sozinho a floresta de estevas, atalhando pelos sinuosos caminhos de pé posto que desciam da nova aldeia para as margens do lago em enchimento. Um vizinho que viera lá de baixo dissera-lhe que as águas estavam a subir de forma inesperadamente rápida. Já lambiam os muros do velho cemitério, não tardaria muito e toda a aldeia seria engolida pela massa líquida.
“É uma diferença enorme de ontem para hoje, até nem dá para acreditar. Só vendo!”
Josué queria ver. Enquanto firmava o pé moído, inseguro, na terra escorregadia do caminho, lembrou-se da frase com que Salomé o acolhera, num fim de tarde, há mais de quarenta anos. Ele tinha acabado de transpor a porta da casa de chão térreo, de uma só divisão. Salomé estava ao lume, mexendo a panela da sopa, os fogachos da lareira atiravam sobre as paredes de adobe reflexos de uma luz bruxuleante. E disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”
Josué sentiu que resvalava no pó do carreiro, agarrando-se, para evitar a queda, à rama pegajosa de um pé de esteva.
“Como foi isso, mulher?”, perguntou.
E ela respondeu sem sequer o fitar:
“Já levamos cinco anos, homem, alguma vez teria de ser.”
Josué levantou-se, sacudiu as calças, cuspiu nas mãos para desfazer o visco que lhe colava os dedos, e perante os seus olhos apareceu, de súbito, como uma epifania tormentosa, a mancha clara do lençol de água. Avançava sobre o dorso dos campos com os seus esteiros tentaculares, rodeando as colinas, preparando-se para submergir tudo o que era obra de Deus e do Homem. Parecia que se tinham aberto as fontes de um grande abismo ou rompido todas as cataratas do céu para formar o grande lago – mas estes não eram os genuínos pensamentos de Josué, homem simples entre os mais simples, habituado desde sempre às palavras chãs com que se escrevem os dias de trabalho, antes o que estava escrito nos livros sagrados desde o princípio dos tempos, agitando-lhe o espírito como se o chamasse para uma grande missão ou lhe enviasse um sinal premonitório.
Josué, por esta altura, ainda não tinha destruído o televisor com o vigor do seu martelo. Recebera a nova casa sem formular nenhuma exigência, limitando-se a aceitar aquilo que lhe queriam dar. O Presidente da Câmara veio à aldeia com os donos do empreendimento para entregar as chaves das casas, em sessão solene, aos deslocados de Vilarinho do Rio. Josué recebera-as com o reconhecimento próprio de quem há muito se habituara a obedecer. Por esta altura, ainda ele não tinha proferido o sinistro vocábulo “retaliação”.
“Como é possível, mulher?”, insistiu.
“Sabes bem que fiz uma promessa à Senhora dos Milagres. Sabes bem que me lavei, por baixo e por cima, durante todo o mês, com água da fonte.”
Josué deu conta de que a Fonte Santa, assim chamada pelas curas extraordinárias que as suas águas sempre fizeram, já tinha sido completamente engolida pelo crescendo do lago. O povo ainda quis levar as pedras para a nova aldeia, reconstruí-la com as suas bicas de mármore por onde escorria saúde em estado puro e aquela lápide tosca onde quatro algarismos, 1918, atestavam o tempo prodigioso da sua construção. Nenhum habitante da aldeia morrera naquele ano com a terrível epidemia de gripe que assolara o país, e isso só poderia ser o resultado do poder salutífero das águas. Por isso o povo a queria levar, mesmo sabendo que, apartada do manancial que lhe dava a vida, mais nenhuma cura milagrosa sairia das suas bicas, e que, para continuar a ser uma fonte, teriam de lhe canalizar a água dos serviços públicos de abastecimento, essa mesma água carregada de metais, proveniente de humildes represas espalhadas pela região mas que, muito em breve, segundo se dizia, jorraria directamente do grande lago, em quantidade e em qualidade, bastaria abrir as torneiras a qualquer hora e em qualquer época do ano. Só que os donos do empreendimento não estiveram pelos ajustes. Já tinham aceitado o encargo de levar as pedras da igreja matriz e da capela, as lajes sepulcrais do cemitério, um antiquíssimo monumento funerário que desde tempos imemoriais estava cravado no chão a uns cem metros da aldeia. A fonte seria sacrificada numa escala de valores para cuja definição pouco contara a vontade do povo.
Quando Josué, seguindo pela borda do lago em formação, se aproximou do velho cemitério, um veio de água, brilhante como metal, já tinha atravessado os melancólicos portões e começava a espalhar-se por cima do chão das antigas sepulturas.
Poderá não ter passado de um ilusório reflexo do sol sobre o espelho das águas, uma falsa aparência induzida pelo seu sentido da visão já bastante senil, mas pareceu-lhe perceber, por cima do lugar onde jaziam os restos mortais de Salomé, uma nuvem branca que vogava na claridade do dia como uma chama extinta ou uma alma desabrigada. E saiu dali tão depressa quanto pôde.
D.E.
Com as raposas, os texugos, as abetardas e as cegonhas não se tinham preocupado muito os donos do empreendimento, mesmo apesar de todo o assédio que lhes fora movido pelas organizações de defesa do ambiente, ciosas da preservação das espécies e do equilíbrio dos ecossistemas. Foram outros e mais fundos os seus cuidados: os autarcas que não cessavam de reclamar benesses pela propaganda feita em prol da obra, a satisfação das exigências dos que teriam de deixar as suas casas, as pressões do governo para a rápida conclusão da empreitada. Como se estava em ano de eleições, era preciso converter em votos o sucesso do empreendimento, mostrando às populações o número de postos de trabalho que seriam criados na região e a prosperidade induzida que resultaria do regadio e da futura instalação de um pólo agro-industrial. Os animais, portanto, que cuidassem de si. À medida que as águas lhes entrassem nas tocas ou nos ninhos, logo demandariam outros lugares de poiso, que nisso eram bem mais aptos do que os indivíduos do frágil género humano, sempre necessitados de auxílio para responderem a incidentes como os que agora se atravessavam nas suas vidas.
Naquele dia, ao fim da quarentena de água, Josué atravessava sozinho a floresta de estevas, atalhando pelos sinuosos caminhos de pé posto que desciam da nova aldeia para as margens do lago em enchimento. Um vizinho que viera lá de baixo dissera-lhe que as águas estavam a subir de forma inesperadamente rápida. Já lambiam os muros do velho cemitério, não tardaria muito e toda a aldeia seria engolida pela massa líquida.
“É uma diferença enorme de ontem para hoje, até nem dá para acreditar. Só vendo!”
Josué queria ver. Enquanto firmava o pé moído, inseguro, na terra escorregadia do caminho, lembrou-se da frase com que Salomé o acolhera, num fim de tarde, há mais de quarenta anos. Ele tinha acabado de transpor a porta da casa de chão térreo, de uma só divisão. Salomé estava ao lume, mexendo a panela da sopa, os fogachos da lareira atiravam sobre as paredes de adobe reflexos de uma luz bruxuleante. E disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”
Josué sentiu que resvalava no pó do carreiro, agarrando-se, para evitar a queda, à rama pegajosa de um pé de esteva.
“Como foi isso, mulher?”, perguntou.
E ela respondeu sem sequer o fitar:
“Já levamos cinco anos, homem, alguma vez teria de ser.”
Josué levantou-se, sacudiu as calças, cuspiu nas mãos para desfazer o visco que lhe colava os dedos, e perante os seus olhos apareceu, de súbito, como uma epifania tormentosa, a mancha clara do lençol de água. Avançava sobre o dorso dos campos com os seus esteiros tentaculares, rodeando as colinas, preparando-se para submergir tudo o que era obra de Deus e do Homem. Parecia que se tinham aberto as fontes de um grande abismo ou rompido todas as cataratas do céu para formar o grande lago – mas estes não eram os genuínos pensamentos de Josué, homem simples entre os mais simples, habituado desde sempre às palavras chãs com que se escrevem os dias de trabalho, antes o que estava escrito nos livros sagrados desde o princípio dos tempos, agitando-lhe o espírito como se o chamasse para uma grande missão ou lhe enviasse um sinal premonitório.
Josué, por esta altura, ainda não tinha destruído o televisor com o vigor do seu martelo. Recebera a nova casa sem formular nenhuma exigência, limitando-se a aceitar aquilo que lhe queriam dar. O Presidente da Câmara veio à aldeia com os donos do empreendimento para entregar as chaves das casas, em sessão solene, aos deslocados de Vilarinho do Rio. Josué recebera-as com o reconhecimento próprio de quem há muito se habituara a obedecer. Por esta altura, ainda ele não tinha proferido o sinistro vocábulo “retaliação”.
“Como é possível, mulher?”, insistiu.
“Sabes bem que fiz uma promessa à Senhora dos Milagres. Sabes bem que me lavei, por baixo e por cima, durante todo o mês, com água da fonte.”
Josué deu conta de que a Fonte Santa, assim chamada pelas curas extraordinárias que as suas águas sempre fizeram, já tinha sido completamente engolida pelo crescendo do lago. O povo ainda quis levar as pedras para a nova aldeia, reconstruí-la com as suas bicas de mármore por onde escorria saúde em estado puro e aquela lápide tosca onde quatro algarismos, 1918, atestavam o tempo prodigioso da sua construção. Nenhum habitante da aldeia morrera naquele ano com a terrível epidemia de gripe que assolara o país, e isso só poderia ser o resultado do poder salutífero das águas. Por isso o povo a queria levar, mesmo sabendo que, apartada do manancial que lhe dava a vida, mais nenhuma cura milagrosa sairia das suas bicas, e que, para continuar a ser uma fonte, teriam de lhe canalizar a água dos serviços públicos de abastecimento, essa mesma água carregada de metais, proveniente de humildes represas espalhadas pela região mas que, muito em breve, segundo se dizia, jorraria directamente do grande lago, em quantidade e em qualidade, bastaria abrir as torneiras a qualquer hora e em qualquer época do ano. Só que os donos do empreendimento não estiveram pelos ajustes. Já tinham aceitado o encargo de levar as pedras da igreja matriz e da capela, as lajes sepulcrais do cemitério, um antiquíssimo monumento funerário que desde tempos imemoriais estava cravado no chão a uns cem metros da aldeia. A fonte seria sacrificada numa escala de valores para cuja definição pouco contara a vontade do povo.
Quando Josué, seguindo pela borda do lago em formação, se aproximou do velho cemitério, um veio de água, brilhante como metal, já tinha atravessado os melancólicos portões e começava a espalhar-se por cima do chão das antigas sepulturas.
Poderá não ter passado de um ilusório reflexo do sol sobre o espelho das águas, uma falsa aparência induzida pelo seu sentido da visão já bastante senil, mas pareceu-lhe perceber, por cima do lugar onde jaziam os restos mortais de Salomé, uma nuvem branca que vogava na claridade do dia como uma chama extinta ou uma alma desabrigada. E saiu dali tão depressa quanto pôde.
D.E.
3 comentários:
Tenho de ler melhor a tua subida das águas mas assim na diagonal sempre te digo que dá um excelente conto!
Tens mesmo de pensar em publicar para te lermos com toda a atenção.
;)
Sim, senhor! Que magnífica escrita! Li as quatro partes da Subida até agora quase tão depressa quanto as águas estão a subir. Meu sapato até molhou um pouco, mas corri a tempo de salvá-lo... Agora, de um lugar ligeiramente mais alto, espero ansiosamente pelo capítulo 5!
Maurette
A saga do Homem através dos tempos, na luta pela conquista e defesa daquilo que o Hominiza.
Sobem as águas, sobe o interesse.
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