sábado, julho 21, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 2 )

Quando correu a notícia de que iam fechar as comportas, os homens precipitaram-se para a aldeia abandonada com uma urgência que não sabiam explicar. Desceram por carreiros escorregadios entre matagais de estevas, como se lhes deparasse a última oportunidade de reverem as suas casas, não ignorando eles, por tudo o que tinham ouvido nas sessões de esclarecimento e pelos folhetos copiosamente distribuídos entre a população, que seria lenta a subida das águas, demorando várias semanas, talvez meses, até atingirem a cota em que se firmava a aldeia.
Chegaram, e puseram-se a andar pelas ruas, detendo-se nos lugares onde costumavam marcar encontro, o mercado, o largo da taberna, a sociedade recreativa, descobrindo nas antigas residências objectos e pertences de que se haviam esquecido durante a mudança, ou aos quais, ao carregarem as camionetas, não haviam dado o devido valor: um vaso com uma planta, um cesto de verga, a lâmina de uma enxada.
No vale, o rio continuava a correr com a sua língua estreita de água, gorgolejando por entre rochas escalvadas, carregado de espuma e limos. Os homens perguntavam-se como seria possível fazer nascer um grande lago daquele caudal tão frouxo. Mas esta interrogação interior, a que nenhum deles ousava dar voz, batia-lhes na alma como um pensamento sem sentido, uma ilusão que só podia ser alimentada por quem perdera o direito à esperança e buscava nos mais ínfimos indícios, fora de toda a racionalidade, uma fantasia ou uma crença a que se arrimar. No fundo, eles sabiam que os técnicos ao serviço do empreendimento nunca poderiam ter-se enganado. Tinham feito laboriosos cálculos, conheciam bem as potencialidades do projecto, a energia eléctrica que seria possível produzir, os hectares de terra que esperavam poder irrigar. Sempre falaram de um lago enorme, de uma mancha azul que, pela sua extensão, poderia ser vista da Lua.
Impressionou-os muito o lixo. Em todas as ruas se acumulavam detritos, peças de roupa sem préstimo, restos de móveis que haviam sido abandonados quando da saída dos moradores, sem que o pessoal do empreendimento, assoberbado de trabalho, tivesse tido tempo de os recolher. Falava-se que para preservar a qualidade da água todos aqueles despojos seriam levados, em tempo útil, para uma lixeira. Pela mesma razão tratariam de arrancar e remover as árvores, para que os seus corpos mortos não ficassem a apodrecer no fundo do lago, inquinando de matéria orgânica em decomposição a vigorosa claridade da grande massa líquida.
Entretanto, estavam sobre a hora do almoço. O sol estendia-lhes sobre os ombros o calor de um abraço, os estômagos começavam a pedir sustento. De vez em quando, um pássaro nervoso, saído da copa de uma árvore ou do beiral de um telhado, batia asas sobre as suas cabeças. Gatos famélicos, atordoados com a passagem do inesperado grupo, saltavam de cima dos muros para o refúgio seguro dos quintais, no vazio da sombra. Então, cada um dos homens puxou de uma bucha e bebeu de uma garrafa que um deles trazia num saco de plástico, mas nem pararam para merendar, que grande era a pressa de percorrerem todos os lugares, de gravarem nos olhos as perecíveis imagens do dia.
Foi quando saíam da rua principal, estrada fora, que repararam nas oliveiras. Tinham sido arrancadas do solo à custa de poderosas máquinas, as pás escavadoras rodeando os antiquíssimos troncos, desprendendo as raízes. Estas haviam sido metidas dentro de grandes sacos de terra para conservarem a lentura da vida até ao momento da transplantação. As árvores estendiam-se, jacentes, ao longo da estrada, aguardando transporte que as levasse para as suas novas moradas. Era sabido que fora uma exigência das organizações de defesa do ambiente que, com proficiente actuação, tinham pressionado os donos do empreendimento para não deixarem morrer uma única oliveira. A mesma sorte não calharia às árvores de outras espécies, condenadas à fogueira ou às lâminas das serrações. A mesma sorte não teriam as casas, que sendo feitas de pedra, tijolo e cal, matérias praticamente incorruptíveis, nenhum perigo representavam para a saúde das águas. Por isso lá iriam ficar no fundo do lago, como uma cidade perdida, qual Atlântida, assim se chamava, sepultada sob o mar oceano. Se algum dia, por qualquer razão, as águas viessem a descer, emergiriam as casas com as suas paredes verdes escorrendo lodo, as telhas desalinhadas pelas correntes do fundo, restos de uma civilização riscada do mapa pela ambição dos homens.
Carregados de pensamentos, nem deram conta de que se dirigiam para o velho cemitério. Pararam diante dos portões de ferro, como quem faz uma pausa numa caminhada grande. Moldados na chapa escura, num baixo-relevo ingénuo, dois prodigiosos esqueletos pareciam sorrir, segurando gadanhas de longas e curvas lâminas. Um arco que sobrepujava os portões mostrava em filactério a seguinte inscrição:

ESTE É O LUGAR DESTINADO AOS MÍZEROS MORTAES

FEITO À CUSTA DO POVO DA FREGUEZIA

ANNO DE 1879

Olharam assombrados o sorriso da morte. E viram, por entre a profusão de campas revolvidas e lápides quebradas, os sete palmos de terra de Salomé, intactos, desafiando o abismo das águas que vinha a caminho. Josué voltou a cabeça a tempo de evitar os olhares de reprovação que os companheiros lhe lançavam.

D.E.

3 comentários:

João António disse...

Este enredo tem sumo, o ambiente está delineado.
Quero mais acção, gostava que o narrador me levasse ao âmago dessa comunidade.

Maria Carvalhosa disse...

Fantástico. Descrição fabulosa, envolvente... tens aqui tudo para escrever um romance. Não há razões claras para isso mas, ao ler este segundo texto, ocorreu-me a descrição de Macondo, do "Cem anos de Solidão", de G.G. Marquez...

Continua, amigo, faz desta história não apenas um conto, mas um romance. Até personagens a quem dar corpo e espírito tu já criaste!

Beijos.

Manuel Nunes disse...

Querida Maria:
Um romance não direi. Talvez uma pequena novela.