Na manhã do dia seguinte, mal saí do turno de vigilância nocturna na sede do banco, encaminhei-me para os lados do Bairro Alto. Tomando o Cais do Sodré, subi a Rua do Alecrim, passei pelo Largo de Camões – olhando com enternecimento a estátua de bronze do Poeta – e metendo-me pela Rua da Misericórdia comecei a indagar junto de lojas de antiguidades e alfarrabistas sobre quem poderia ter comprado a arca. Os comerciantes que abordei, declarando-se desolados por não lhes ter calhado em sorte um tal negócio, iam-me citando nomes e locais de outras lojas, procurando ajudar-me na minha busca. Cheguei a um estabelecimento da Rua da Trindade cujo proprietário, conhecedor como ninguém do mercado em que se movia, me remeteu para casa de um alfarrabista descendente de uma velha família de judeus sefarditas, fugida para Itália nos tempos do rei D. Manuel I, mas regressada, cem anos mais tarde, por graça régia de um dos Filipes, na qualidade de administradores do erário público e colectores de impostos – o que dá para perceber como já nessa época a administração central tinha de esquecer inimizades e abrir os cordões à bolsa para contratar no sector privado gestores competentes em matéria fiscal. Os membros desta família acabaram por fazer carreira, através de sucessivas gerações, em diversos serviços dependentes do Conselho da Fazenda do Reino, e embora alguns deles tivessem sido sujeitos a tratos de polé pela Inquisição do senhor D. João V, a verdade é que lograram permanecer no país até aos nossos dias em situação económica sempre muito desafogada.
Cheguei à fala com o dito alfarrabista, um velho miudinho e enfezado – resultado, talvez, dos antiquíssimos genes desenvolvidos na frugalidade alimentar do maná do deserto – e por ele vim a saber que tinha de facto adquirido a arca aos herdeiros do meu tio, convencido de que estava a comprar ouro de lei, mas que, analisado o seu conteúdo com mais detalhe, chegara à conclusão de que havia feito um mau negócio. E foi-me contando: a arca era de pau carunchoso, qual sândalo, qual carapuça; os livros, de reduzido interesse, eram rendilhados de folhas que se desfaziam mal se lhes tocava; os manuscritos não passavam de falsificações, tão grosseiras que até pareciam ter sido feitas com canetas de tinta permanente; os pergaminhos não tinham pergaminhos; o astrolábio não era astrolábio; forais e cartas régias só na Torre do Tombo; o punhal matador da bela Inês era de uma cutelaria de Toledo, sim senhor, mas não ultrapassava a idade do mais novo dos seus netos. Resumindo: um fiasco. Pagara por tudo aquilo dez réis de mel coado, garantiu-me, mas mesmo assim ficara-lhe atravessado na garganta o desastrado negócio, algo que nunca lhe tinha sucedido em muitos anos de actividade mercantil. Perguntei-lhe então pelo manuscrito de Camões, o célebre Parnaso de que fala Diogo do Couto na Oitava Década da Ásia, e o olhos miudinhos do aliado de Javé faiscaram de gozo, despejando-me na cara uma gargalhada bíblica. Que também lhe tinham falado nisso os que lhe levaram a arca, mas que nem por um só momento havia acreditado em semelhante dislate.
Quis ver a arca para me certificar de que falava verdade, mas o meu interlocutor tirou-me daí o sentido. O lenho carunchoso ainda estava em seu poder, à espera da avaliação de um restaurador de móveis, mas o recheio tinha sido vendido pelo preço de aquisição ao representante de um sebo brasileiro de São Paulo que andava pela Ibéria em demanda de uma edição apócrifa do Quixote de Cervantes, encontrando-se hospedado no Hotel Borges, no Chiado. Explicou-me que sebo é o nome dado pelos brasileiros a um estabelecimento que compra e vende livros antigos e que o dito representante do sebo paulistano era um cavalheiro de meia-idade, calvo e gordo, que usava bigode e palitava os dentes, um pouco mais alucinado que o profissional típico do ramo. Mostrou-me o cartão que lhe deixara: fulano tal, consultor bibliográfico.
Hotel Borges comigo, um groom quase infantil que me abriu a porta, um recepcionista ensonado por detrás do balcão.
- Esse senhor saiu esta manhã – disse-me o empregado – mas volta para a semana. Já deixou a reserva feita, pois teve de ir a um leilão de livros antigos em Salamanca. Vai ficar instalado no Hotel Ceylan, fui eu mesmo que lhe fiz a marcação.
Não quis saber de mais nada e fui para casa com o objectivo de fazer a mala e rumar a Salamanca. Dei conta, quando cheguei, que Cláudia não tinha dormido em casa nessa noite, pois a cama estava feita como eu a deixara de véspera depois do meu sono diurno. Achei estranho, porque quando saí para o banco, antes da meia-noite, estava ela sentada ao computador, trabalhando na sua tese. Procurei saber o que teria acontecido, ligando-lhe para o telefone móvel, mas não respondeu. Telefonei para o seu departamento na universidade: que sim, que estava ao serviço nesse dia, nenhum problema. Avisei então o meu chefe sobre a impossibilidade de comparecer ao trabalho durante o resto da semana. Meti-me no carro e pus-me a caminho de Espanha.
(Continua)
Cheguei à fala com o dito alfarrabista, um velho miudinho e enfezado – resultado, talvez, dos antiquíssimos genes desenvolvidos na frugalidade alimentar do maná do deserto – e por ele vim a saber que tinha de facto adquirido a arca aos herdeiros do meu tio, convencido de que estava a comprar ouro de lei, mas que, analisado o seu conteúdo com mais detalhe, chegara à conclusão de que havia feito um mau negócio. E foi-me contando: a arca era de pau carunchoso, qual sândalo, qual carapuça; os livros, de reduzido interesse, eram rendilhados de folhas que se desfaziam mal se lhes tocava; os manuscritos não passavam de falsificações, tão grosseiras que até pareciam ter sido feitas com canetas de tinta permanente; os pergaminhos não tinham pergaminhos; o astrolábio não era astrolábio; forais e cartas régias só na Torre do Tombo; o punhal matador da bela Inês era de uma cutelaria de Toledo, sim senhor, mas não ultrapassava a idade do mais novo dos seus netos. Resumindo: um fiasco. Pagara por tudo aquilo dez réis de mel coado, garantiu-me, mas mesmo assim ficara-lhe atravessado na garganta o desastrado negócio, algo que nunca lhe tinha sucedido em muitos anos de actividade mercantil. Perguntei-lhe então pelo manuscrito de Camões, o célebre Parnaso de que fala Diogo do Couto na Oitava Década da Ásia, e o olhos miudinhos do aliado de Javé faiscaram de gozo, despejando-me na cara uma gargalhada bíblica. Que também lhe tinham falado nisso os que lhe levaram a arca, mas que nem por um só momento havia acreditado em semelhante dislate.
Quis ver a arca para me certificar de que falava verdade, mas o meu interlocutor tirou-me daí o sentido. O lenho carunchoso ainda estava em seu poder, à espera da avaliação de um restaurador de móveis, mas o recheio tinha sido vendido pelo preço de aquisição ao representante de um sebo brasileiro de São Paulo que andava pela Ibéria em demanda de uma edição apócrifa do Quixote de Cervantes, encontrando-se hospedado no Hotel Borges, no Chiado. Explicou-me que sebo é o nome dado pelos brasileiros a um estabelecimento que compra e vende livros antigos e que o dito representante do sebo paulistano era um cavalheiro de meia-idade, calvo e gordo, que usava bigode e palitava os dentes, um pouco mais alucinado que o profissional típico do ramo. Mostrou-me o cartão que lhe deixara: fulano tal, consultor bibliográfico.
Hotel Borges comigo, um groom quase infantil que me abriu a porta, um recepcionista ensonado por detrás do balcão.
- Esse senhor saiu esta manhã – disse-me o empregado – mas volta para a semana. Já deixou a reserva feita, pois teve de ir a um leilão de livros antigos em Salamanca. Vai ficar instalado no Hotel Ceylan, fui eu mesmo que lhe fiz a marcação.
Não quis saber de mais nada e fui para casa com o objectivo de fazer a mala e rumar a Salamanca. Dei conta, quando cheguei, que Cláudia não tinha dormido em casa nessa noite, pois a cama estava feita como eu a deixara de véspera depois do meu sono diurno. Achei estranho, porque quando saí para o banco, antes da meia-noite, estava ela sentada ao computador, trabalhando na sua tese. Procurei saber o que teria acontecido, ligando-lhe para o telefone móvel, mas não respondeu. Telefonei para o seu departamento na universidade: que sim, que estava ao serviço nesse dia, nenhum problema. Avisei então o meu chefe sobre a impossibilidade de comparecer ao trabalho durante o resto da semana. Meti-me no carro e pus-me a caminho de Espanha.
(Continua)
D.E.
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