Perguntei no Hotel Ceylan pelo representante do sebo, tendo-me sido indicada uma esplanada da Plaza Mayor onde ele costumava almoçar sempre que vinha a Salamanca. Pela descrição feita, não tive dificuldade em descobri-lo. Comia, quando o encontrei, uma tortilha e uma salada mista – refeição frugal para tão vastas carnes – acompanhando o repasto de um tinto Rioja Campo Viejo. Apresentei-me, pedi licença para uma breve conversa, dando como referência o alfarrabista de Lisboa. O homem acabou de deglutir a fritura de ovos, sorveu a última folha de alface, pediu uma taça ao empregado e encheu-ma de vinho. Depois, escarafunchou com um palito as recônditas fendas da região dental, limpou o bigode com um guardanapo de pano branco, abanou-se com um jornal dobrado ao meio como se fosse um leque, e, enquanto me ouvia, passava a mão pela aridez da calva e espraiava os olhos pelas fachadas dos edifícios setecentistas, refulgentes de arcadas e varandas, como se eu não estivesse ali e as minhas palavras viessem de uma instalação sonora em algum ponto ignorado da praça.
Terminada a exposição das minhas razões, fiquei longos segundos à espera que me dirigisse a palavra. Foi quando me lembrei de que não voltara a falar com Cláudia desde o dia anterior, quando saí de Lisboa, nem tão-pouco ela me respondera à mensagem que lhe deixei no telemóvel. Completamente absorvido pelo motivo que me levara a Salamanca, nunca mais me tinha lembrado de lhe telefonar.
O homem, como uma dádiva do céu, deixou cair os olhos, finalmente, sobre a minha humilde pessoa, reiterando tudo o que o alfarrabista me havia dito. Que não havia nenhum manuscrito de Camões entre os livros e documentos por ele adquiridos, e que tudo aquilo, livralhada e demais papéis, eram peças de lana-caprina, coisas sem interesse, havendo, no entanto, algo merecedor de registo: um fragmento de um códice datado do século dezasseis – mas, na verdade, uma descarada falsificação feita uns trezentos anos mais tarde – onde se aludia a uma cópia do Parnaso de Luís de Camões feita por um monge salmantino por encomenda de uma família da alta nobreza castelhana, cujo nome, infelizmente, se apresentava ilegível. Fora essa a razão que o trouxera a Salamanca e não o desconchavo da edição apócrifa do Quixote, notícia que deixara espalhar em Lisboa para despistar a concorrência. E aproveitou, uma vez que estava necessitado de um ajudante de campo e eu, por razões sentimentais e curiosidade pessoal, me interessava pelo assunto, para pedir a minha colaboração no sentido de o ajudar a atingir os seus objectivos: identificar a ancestral família e tentar encontrar a preciosa cópia. Quanto aos livros e papéis que estavam na arca do meu tio, já tinham sido enviados para São Paulo, por via aérea, para o sebo que lhe pagava o ordenado, a fim de que, por descargo de consciência, fossem avaliados através de processos científicos, embora isso não o preocupasse muito, pois certamente não se enganara no juízo que deles fizera, além de que, nas Américas, esses papéis bafientos da velha Europa, verdadeiros ou falsos, eram sempre dinheiro em caixa.
Emocionei-me de alegria ao ouvir as suas palavras. Por duas razões: a primeira, por ser para mim uma espécie de reabilitação da boa imagem do meu tio – um pouco abalada desde que comecei a dar conta do fiasco da arca -, pois era uma prova de que havia um fundo de verdade quando falava no manuscrito de Camões, mesmo não existindo tal manuscrito ou existindo apenas pela referência que lhe era feita no fragmento do falso códice; a segunda, por me permitir continuar a sonhar com uma descoberta de enorme significado histórico e cultural, algo que, a verificar-se, iria lançar sobre a minha pessoa a admiração de todos os amantes da cultura. Dei comigo a pensar no orgulho que Cláudia iria sentir por mim - eu que não passava de uma figura apagada, exercendo uma desqualificada profissão, enquanto ela brilhava na sua carreira académica – e antecipei o gozo de ouvir os seus elogios, imaginando-a a contar aos colegas da universidade o papel desempenhado pelo marido em tão importante achado.
Terminada a exposição das minhas razões, fiquei longos segundos à espera que me dirigisse a palavra. Foi quando me lembrei de que não voltara a falar com Cláudia desde o dia anterior, quando saí de Lisboa, nem tão-pouco ela me respondera à mensagem que lhe deixei no telemóvel. Completamente absorvido pelo motivo que me levara a Salamanca, nunca mais me tinha lembrado de lhe telefonar.
O homem, como uma dádiva do céu, deixou cair os olhos, finalmente, sobre a minha humilde pessoa, reiterando tudo o que o alfarrabista me havia dito. Que não havia nenhum manuscrito de Camões entre os livros e documentos por ele adquiridos, e que tudo aquilo, livralhada e demais papéis, eram peças de lana-caprina, coisas sem interesse, havendo, no entanto, algo merecedor de registo: um fragmento de um códice datado do século dezasseis – mas, na verdade, uma descarada falsificação feita uns trezentos anos mais tarde – onde se aludia a uma cópia do Parnaso de Luís de Camões feita por um monge salmantino por encomenda de uma família da alta nobreza castelhana, cujo nome, infelizmente, se apresentava ilegível. Fora essa a razão que o trouxera a Salamanca e não o desconchavo da edição apócrifa do Quixote, notícia que deixara espalhar em Lisboa para despistar a concorrência. E aproveitou, uma vez que estava necessitado de um ajudante de campo e eu, por razões sentimentais e curiosidade pessoal, me interessava pelo assunto, para pedir a minha colaboração no sentido de o ajudar a atingir os seus objectivos: identificar a ancestral família e tentar encontrar a preciosa cópia. Quanto aos livros e papéis que estavam na arca do meu tio, já tinham sido enviados para São Paulo, por via aérea, para o sebo que lhe pagava o ordenado, a fim de que, por descargo de consciência, fossem avaliados através de processos científicos, embora isso não o preocupasse muito, pois certamente não se enganara no juízo que deles fizera, além de que, nas Américas, esses papéis bafientos da velha Europa, verdadeiros ou falsos, eram sempre dinheiro em caixa.
Emocionei-me de alegria ao ouvir as suas palavras. Por duas razões: a primeira, por ser para mim uma espécie de reabilitação da boa imagem do meu tio – um pouco abalada desde que comecei a dar conta do fiasco da arca -, pois era uma prova de que havia um fundo de verdade quando falava no manuscrito de Camões, mesmo não existindo tal manuscrito ou existindo apenas pela referência que lhe era feita no fragmento do falso códice; a segunda, por me permitir continuar a sonhar com uma descoberta de enorme significado histórico e cultural, algo que, a verificar-se, iria lançar sobre a minha pessoa a admiração de todos os amantes da cultura. Dei comigo a pensar no orgulho que Cláudia iria sentir por mim - eu que não passava de uma figura apagada, exercendo uma desqualificada profissão, enquanto ela brilhava na sua carreira académica – e antecipei o gozo de ouvir os seus elogios, imaginando-a a contar aos colegas da universidade o papel desempenhado pelo marido em tão importante achado.
Aceitei a proposta de colaboração do representante do sebo e telefonei a Cláudia. Esperava encontrá-la ansiosa pelo meu telefonema, feliz por saber de mim, por me poder ouvir, mas a conversa foi fria, como as águas do Tormes em pleno Inverno.
(Continua)
D.E.
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