domingo, fevereiro 25, 2007

UM PARECER DESFAVORÁVEL

Pela boca do rio entraram, em outros tempos, corsários normandos e norte-africanos, homens de barba ruiva, de pele tisnada, os olhos inchados de cólera e as mãos prolongando-se em aceradas lâminas, sequiosos de sangue e de saque. Desembarcavam nas praias, incendiavam o sossego e as casas das gentes, não poupavam a honra das mulheres nem o espaço venerável dos templos. O povo sofria, resignado, as agruras impostas por estas hordas que chegavam do mar, pois não havia forças capazes de lhes fazer frente.
Pouco a pouco, porém, foi-se organizando a defesa dos povos. Construíram-se atalaias, mobilizaram-se guarnições militares. Mais tarde, com o advento da artilharia pirobalística, converteram-se as torres de vigia em sólidos baluartes, corpos de pedra que protegiam com as suas peças de fogo a vida laboriosa das populações. Assim apareceram a Torre de Cascais e a Fortaleza de São Vicente a Par de Belém, albergando esta, sob o rendilhado manuelino de pedra, um poder de artilharia dissuasor das investidas de corsários e beligerantes.
Vieram depois, entre os séculos dezasseis e dezoito, as outras fortalezas: Nossa Senhora da Luz de Cascais, o Forte de São Julião da Barra – testemunha do odioso martírio de Gomes Freire de Andrade – , a Fortaleza de São Lourenço da Cabeça Seca ou Torre do Bugio, o Forte de Nossa Senhora das Mercês de Catalazete, S. Bruno de Caxias, São João das Maias, Santo Amaro, Santo António do Estoril – onde um vetusto ditador se despenhou de uma cadeira, alterando de forma irreversível o curso frouxo da História.
No século vinte, apesar da penúria do erário e da fraqueza do corpo militar, a defesa da entrada do rio não foi descurada. Subiu às colinas, estabeleceu-se em postos de observação dotados de holofotes que atravessavam a espessura das noites, em baterias de artilharia de costa bem acima do nível do mar, locais privilegiados para vigiar e fazer fogo, pois outras eram, nesses tempos já modernos, as ameaças esperadas: poderosos navios de guerra, massas de aço avassaladoras, rasgando os céus com o poder fulminante das suas peças.
É a partir da década de sessenta que o aumento populacional dá lugar a um grande crescimento da construção civil na orla do mar. As casas, edificadas em urbanizações servidas pelo caminho de ferro da Sociedade Estoril, alastravam como manchas na paisagem da costa: Laveiras, Espargal, Nova Oeiras, Lombos, Rana, Galiza, Alapraia, Monte Estoril e tantas outras localidades. Multiplicavam-se os edifícios de cimento com os seus alvéolos habitacionais, enquanto as baterias de artilharia, estrategicamente implantadas nas varandas dos montes, viam surgir diante de si a ameaça dessas edificações que lhes roubavam o campo de visão sobre o leito do mar, tolhendo-lhes os exercícios de tiro tenso e tiro curvo ensaiados em laboriosas manobras militares. O perigo já não vinha da superfície marítima, mas de terra firme.
Foi então que a unidade de artilharia de costa passou a ter maior atenção aos processos de licenciamento das novas urbanizações. Os oficiais analisavam os dossiês, informavam o comando, e este, no desempenho dos seus poderes, ditava a sorte dos projectos. Perguntavam os construtores para que serviam aquelas canhoneiras mal dissimuladas nas encostas dos montes, atrapalhando-lhes os negócios e atrasando o progresso das terras, se, em caso de guerra, logo seriam aniquiladas pela aviação inimiga? Ninguém sabia ou queria responder, e eles lá se iam conformando, aparentemente, com as determinações que vinham de cima.
Só que esta raça de gente que se mete a levantar casas, a ligar cimento com ferro em especulativos empreendimentos, nunca descansa quando se trata de levar a sua avante. Havia, num lugar da freguesia da Parede, uma urbanização que crescia a olhos vistos, ameaçando acabar com a operacionalidade das unidades de artilharia. Já os prédios iam adiantados, altos como palmeiras, quando o processo chegou à mesa de trabalho do oficial encarregado de o apreciar. Aquilo era uma espécie de facto consumado. O militar folheou o vasto dossiê pejado de desenhos à escala, memória descritiva e justificativa, projectos de arquitectura, plantas de ruas, praças e pracetas. Cada milímetro de solo era avidamente aproveitado, construindo-se em altura o mais possível, pois o preço do metro quadrado estava pela horas da morte e os apartamentos eram tão necessários como pão para a boca. Consultou as cartas topográficas, compulsou o relevo pelas curvas de nível, apurou a altura dos edifícios, foi para o terreno armado de teodolito e telémetro. Fez contas, lidou com senos e cosenos, entregou-se a cálculos logarítmicos, e tudo apontava para a inviabilização daquelas construções. Informação ao comandante: Excelentíssimo Senhor Comandante, Coronel da Arma de Artilharia, por estas e estas razões, atentos os superiores interesses da defesa militar, tendo em conta as posições dos postos de observação e das baterias tais e tais, com vista a garantir as condições operacionais das mesmas não é de autorizar o levantamento da urbanização no volume e altura constantes do projecto, pelo que se deverá notificar de imediato o construtor a fim de interromper a obra – Vossa Excelência, no entanto, no seu alto critério, decidirá como melhor entender. Assinado: fulano de tal, capitão.
Nunca mais se soube que despacho merecera o parecer desfavorável do diligente oficial, mas estranhou-se que, passado algum tempo, o crescimento dos prédios continuasse a desenrolar-se numa orgia frenética de betoneiras e guinchos de içar, de camionetas a chegarem com novos materiais, de andaimes que singravam na direcção astral como se quisessem acometer os céus com os seus postes e tábuas sebentos de tinta e restos de argamassa. Pediu o oficial para ser recebido pelo comandante. Sim senhor, tinha lido o parecer, um texto fundamentado, preciso, correcto, tecnicamente bem elaborado, mas nada a fazer: outros interesses mais altos se levantavam. O país não podia parar, as fábricas de cimento tinham de continuar a produzir cimento, a siderurgia não podia abrandar a sua produção de ferro e aço, a indústria vidreira, as cerâmicas, as empresas de cabos eléctricos tinham de continuar a fabricar e a vender para não fecharem as portas. A construção civil era o motor da economia – lá diziam os entendidos – e as pessoas precisavam de casas para morarem. Para mais, tratava-se de uma urbanização muito bem projectada, próxima da praia, onde seria gostoso viver, fruindo os saudáveis ares do mar.
Foi talvez por esta afeição manifestada a respeito da nova urbanização, ou por qualquer outra causa não determinada, que se mudou a família do comandante para um dos melhores apartamentos lá construídos. A este propósito houve logo quem insinuasse, quem emitisse juízos de sentido dúbio, e houve também – gente mais ousada! – quem chegasse a proferir afirmações inequívocas, a verberar condutas, falando de interesses ocultos e compadrios. Sempre tivemos muita inveja por esse país fora! A verdade, porém, é que o comandante vive hoje naquele esplêndido apartamento construído na urbanização que lhe entaipou postos de observação e baterias, enquanto o oficial autor do parecer desfavorável continua a morar na sua modesta casa de sempre.
D.E.

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