No princípio preocupava-se muito com o corte das camisas e o padrão das gravatas. Tinha a certeza de que o verde não condizia com o azul, que umas meias cinzentas caíam bem sobre sapatos pretos e que a bracelete do relógio dialogava com o cinto das calças. Vestia a preceito e raramente comprava roupa em lojas de pronto-a-vestir: tinha alfaiates certos, artesãos escolhidos segundo o seu estilo pessoal ou os ditames da moda que decidia acolher.
Saíam com frequência aos fins-de-semana, estrada fora, a percorrer o país monumental: gótico flamejante, vitrais, arcobotantes e botaréus, arcos de volta perfeita do românico, abóbadas de berço, capitéis historiados. Almoçavam em restaurantes com portentosos cardápios e pernoitavam em pousadas históricas, castelos ou palácios adaptados às exigências da hotelaria moderna, velhos mosteiros com as antigas celas transformadas em agradáveis aposentos, as portas abrindo-se para claustros com jardins e lagos de repuxos, o silêncio da antiga clausura dando lugar à alegria ruidosa dos que viajavam.
Não se deixavam seduzir pelos fins-de-semana românticos em Paris ou Viena que as agências de viagens tentavam vender-lhes. À monumentalidade das grandes cidades ou a esses programas turísticos que chamam “de sonho”, preferiam a sobriedade do “saia para fora cá dentro”, aqueles lugares onde a maravilha se serve em doses equilibradas, sem empanturrar os olhos e a alma, não deixando embotar os corações de deslumbramento. Tinham-se apercebido disto quando passaram uma semana de férias em Roma: Capitólio, Via Veneto, Fonte Trevi, Basílica de Santa Maria Maior, Praça Navona, e quase não tiveram tempo para o amor, faltavam os olhos para si próprios, esbugalhados naquele torvelinho de novidade e beleza que submergia o fulgor dos afectos.
Durou pouco ou muito tempo esta fase das suas vidas? É difícil responder. A partir de certa altura, nas saídas que faziam, começaram a levar livros dos quais apenas liam, à noite, passagens esparsas. Enredavam-se em entretenimentos e jogos de palavras, compondo acrósticos, procurando vocábulos e frases que pudessem ser lidos sem alteração de significado da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, os chamados palíndromos, palavras como “radar”, “osso” e “rir”, frases como “Roma é amor”. Não era fácil. Passavam depois aos lipogramas, arquitectando textos onde nunca entravam determinadas letras, tendo chegado a escrever umas trinta linhas sem um único registo da vogal “a” e da consoante “b”. Chegavam, por fim, aos anagramas, a ver quantas palavras podiam construir com as mesmas letras de outra palavra, e tiravam Natércia de Caterina, fazendo batota, claro, que a invenção era de Camões e a patente estava registada há vários séculos.
Já por essa altura lhes parecia que alguma coisa não estava bem, que as mãos e as bocas tinham deixado de falar os dialectos de antigamente. Aconteceu estarem um fim-de-semana completo numa cidade histórica e não terem visitado a catedral. Uma vez, em Junho, seguiam por uma estrada bordejada de cerejeiras carregadas de frutos e não conseguiram sentir a beleza e o perfume exalados pelas árvores. Quando paravam em alguma zona de descanso, junto de um parque de merendas com uma fonte que bebia a água da serra, mal se lembravam da última igreja que tinham visitado, se era de estilo gótico ou românico, se tinha uma ou três naves, se era de transepto inscrito ou saliente. Sentiam que, cada vez mais, lhes fugia a memória, ficando-lhes uma vaga reminiscência de manhãs carregadas de luz, de palavras e pedras rendilhadas, portais, rosáceas, absides, coruchéus, uma vaga reminiscência, apenas, na planura insondável do tempo presente.
Depois ele passou a preocupar-se cada vez menos com aquilo que vestia. Não ligava às cores e aos padrões, era capaz de pôr uma gravata de riscas sobre uma camisa de quadrados. Já lhe servia qualquer peça de roupa, mesmo dessas que se vendem no hipermercado, penduradas em tristes varões atrás de escaparates de mercearias, garrafas de vinho e detergentes, provadas no silêncio de minúsculos gabinetes com uma cortina de correr, um cabide e um espelho de vidro com a largura de um corpo, o pagamento feito na caixa, à saída, juntamente com o peixe, as hortaliças e o leite. E se, por força do hábito, ainda faziam alguma saída de fim-de-semana, era para voltarem sempre ao fim do dia, como se não fossem capazes de aguentar o peso de uma noite fora de casa ou já não soubessem fugir à sensaboria dos monótonos serões, o sono domando-lhes o corpo à boca da madrugada, até se resolverem a ir para a cama, um de cada vez, para dormirem mais uma noite sem chama, cansados da previsibilidade dos dias e da sua irremediável feição.
Os roteiros das viagens, as brochuras turísticas, os postais ilustrados dos monumentos e paisagens jaziam por esse tempo na mais triste prateleira da estante, como papéis imprestáveis. Já não passavam os olhos sobre eles para fazer perdurar a lembrança de tantas viagens por territórios felizes. Já só se entretinham com leituras ligeiras e jogos de palavras cruzadas, o jornal dobrado no colo, a caneta apontada à malha das quadrículas, única forma de comunicar que ainda lhes restava. Ele perguntava: arco quebrado da arquitectura gótica, cinco letras? Ela perguntava: é fogo que arde sem se ver, quatro letras? Mas por mais voltas que dessem à cabeça, por mais pistas que tentassem cruzar entre verticais e horizontais, nenhum deles era capaz de responder. E com a resignação dos desistentes estupidamente abrigada nos olhos, espreitavam as soluções no fundo da página.
D.E.
Saíam com frequência aos fins-de-semana, estrada fora, a percorrer o país monumental: gótico flamejante, vitrais, arcobotantes e botaréus, arcos de volta perfeita do românico, abóbadas de berço, capitéis historiados. Almoçavam em restaurantes com portentosos cardápios e pernoitavam em pousadas históricas, castelos ou palácios adaptados às exigências da hotelaria moderna, velhos mosteiros com as antigas celas transformadas em agradáveis aposentos, as portas abrindo-se para claustros com jardins e lagos de repuxos, o silêncio da antiga clausura dando lugar à alegria ruidosa dos que viajavam.
Não se deixavam seduzir pelos fins-de-semana românticos em Paris ou Viena que as agências de viagens tentavam vender-lhes. À monumentalidade das grandes cidades ou a esses programas turísticos que chamam “de sonho”, preferiam a sobriedade do “saia para fora cá dentro”, aqueles lugares onde a maravilha se serve em doses equilibradas, sem empanturrar os olhos e a alma, não deixando embotar os corações de deslumbramento. Tinham-se apercebido disto quando passaram uma semana de férias em Roma: Capitólio, Via Veneto, Fonte Trevi, Basílica de Santa Maria Maior, Praça Navona, e quase não tiveram tempo para o amor, faltavam os olhos para si próprios, esbugalhados naquele torvelinho de novidade e beleza que submergia o fulgor dos afectos.
Durou pouco ou muito tempo esta fase das suas vidas? É difícil responder. A partir de certa altura, nas saídas que faziam, começaram a levar livros dos quais apenas liam, à noite, passagens esparsas. Enredavam-se em entretenimentos e jogos de palavras, compondo acrósticos, procurando vocábulos e frases que pudessem ser lidos sem alteração de significado da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, os chamados palíndromos, palavras como “radar”, “osso” e “rir”, frases como “Roma é amor”. Não era fácil. Passavam depois aos lipogramas, arquitectando textos onde nunca entravam determinadas letras, tendo chegado a escrever umas trinta linhas sem um único registo da vogal “a” e da consoante “b”. Chegavam, por fim, aos anagramas, a ver quantas palavras podiam construir com as mesmas letras de outra palavra, e tiravam Natércia de Caterina, fazendo batota, claro, que a invenção era de Camões e a patente estava registada há vários séculos.
Já por essa altura lhes parecia que alguma coisa não estava bem, que as mãos e as bocas tinham deixado de falar os dialectos de antigamente. Aconteceu estarem um fim-de-semana completo numa cidade histórica e não terem visitado a catedral. Uma vez, em Junho, seguiam por uma estrada bordejada de cerejeiras carregadas de frutos e não conseguiram sentir a beleza e o perfume exalados pelas árvores. Quando paravam em alguma zona de descanso, junto de um parque de merendas com uma fonte que bebia a água da serra, mal se lembravam da última igreja que tinham visitado, se era de estilo gótico ou românico, se tinha uma ou três naves, se era de transepto inscrito ou saliente. Sentiam que, cada vez mais, lhes fugia a memória, ficando-lhes uma vaga reminiscência de manhãs carregadas de luz, de palavras e pedras rendilhadas, portais, rosáceas, absides, coruchéus, uma vaga reminiscência, apenas, na planura insondável do tempo presente.
Depois ele passou a preocupar-se cada vez menos com aquilo que vestia. Não ligava às cores e aos padrões, era capaz de pôr uma gravata de riscas sobre uma camisa de quadrados. Já lhe servia qualquer peça de roupa, mesmo dessas que se vendem no hipermercado, penduradas em tristes varões atrás de escaparates de mercearias, garrafas de vinho e detergentes, provadas no silêncio de minúsculos gabinetes com uma cortina de correr, um cabide e um espelho de vidro com a largura de um corpo, o pagamento feito na caixa, à saída, juntamente com o peixe, as hortaliças e o leite. E se, por força do hábito, ainda faziam alguma saída de fim-de-semana, era para voltarem sempre ao fim do dia, como se não fossem capazes de aguentar o peso de uma noite fora de casa ou já não soubessem fugir à sensaboria dos monótonos serões, o sono domando-lhes o corpo à boca da madrugada, até se resolverem a ir para a cama, um de cada vez, para dormirem mais uma noite sem chama, cansados da previsibilidade dos dias e da sua irremediável feição.
Os roteiros das viagens, as brochuras turísticas, os postais ilustrados dos monumentos e paisagens jaziam por esse tempo na mais triste prateleira da estante, como papéis imprestáveis. Já não passavam os olhos sobre eles para fazer perdurar a lembrança de tantas viagens por territórios felizes. Já só se entretinham com leituras ligeiras e jogos de palavras cruzadas, o jornal dobrado no colo, a caneta apontada à malha das quadrículas, única forma de comunicar que ainda lhes restava. Ele perguntava: arco quebrado da arquitectura gótica, cinco letras? Ela perguntava: é fogo que arde sem se ver, quatro letras? Mas por mais voltas que dessem à cabeça, por mais pistas que tentassem cruzar entre verticais e horizontais, nenhum deles era capaz de responder. E com a resignação dos desistentes estupidamente abrigada nos olhos, espreitavam as soluções no fundo da página.
D.E.
7 comentários:
História triste de uma realidade mais que comum.Fica, no fim, aquele amargo de boca inevitável nos fins tristes (e haverá os que o não são?).
Escreves muitíssimo bem, mas isso já eu sabia... conclusão: continuo a gostar muito de te ler.
Um beijo.
Olá D.E.
Costumo visitá-lo e lê-lo. Em silêncio. Gosto muito do que escreve mas tem-me faltado a coragem para me mostrar. Hoje mudou tudo: decidi começar a comentar nos blogues que aprecio e arrancar com o meu próprio cantinho: "vento agreste", que espera a sua visita, para que, pelo menos na inauguração, se faça sentir algum calor.
Até logo e um beijo.
Amigo Manuel,
Designei-te para dares continuidade à corrente do "meme". Se aceitares, passa lá por casa.
Um beijo.
D.E.,
Desculpe mas parece que já somos duas... não sabia da nomeação anterior e indigitei-o lá no meu cantinho para esta "mememania". Apareça por lá.
Um beijnho.
Podemos desistir de um certo estilo de vida, desde que não desistamos de viver... julgo eu.
Incrível, lindíssimo... besteira, né? Aonde é que a gente pode chegar, se deixarmos o tempo passar... apenas...
Meu caro amigo,
Parece-me que o meu comentário nem seria necessário, não fosse pelo facto de eu nunca fazer nada só porque é necessário... também gosto de fazer as coisas só pelo prazer de as fazer!
Esta é uma belíssima história (com h porque tão, tão verdadeira!).
Posso dizer a parte de que gostei mais? Daquela em que conhecemos tão bem a nossa lingua que ela passa a ser para nós uma forma de brincar, de jogar, mais do que de comunicar!
O final é previsivel mas pode sempre ser alterado... ou não?
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