sexta-feira, setembro 15, 2006

"CANÇÕES DA DERROTA"

Fotografia de JOSHUA BENOLIEL (1873-1932)
Embarque de tropas do Corpo Expedicionário Português
para a Flandres,
Cais de Santa Apolónia, Lisboa, 1917


Se uma dor que é nobre vale mais que uma pobre
Estreita ledice,
Quando melhor cair em Alcácer-Quibir
Que vencer em La Lys.
Que se o servo vence, nunca ao servo pertence
A vitória que tem,
É um vão dom divino, uma sorte ou destino
E julga diademas as suas algemas
Porque o que se ergueu bravo em La Lys venceu escravo,
O outro caiu senhor.

FERNANDO PESSOA


O JL acaba de antecipar alguns poemas inéditos de Pessoa ortónimo que sairão dentro de dias em edição da Assírio & Alvim. Canções da Derrota é um deles.
Em La Lys ( 9 de Abril de 1918) não vencemos. Foi aliás o Alcácer-Quibir do CEP (Corpo Expedicionário Português), como Jaime Cortesão deixou escrito nas suas memórias da Grande Guerra. Sob o ímpeto da artilharia e das baionetas alemãs morreram naquele dia cerca de nove centenas de militares portugueses. Tudo tropa desmoralizada, cansada de guerra, cujos efectivos não eram rendidos desde a subida ao poder de Sidónio Pais. No confronto político entre os partidários da guerra e aqueles que a ela se opunham, os soldados portugueses abandonados nas trincheiras da Flandres foram carne para canhão. O comando britânico mandou-os morrer, e eles cumpriram a ordem.
Razão tinha Pessoa: fomos para a guerra como servos. Servos do imperialismo britânico que só nos aceitou no teatro de operações quando muito bem quis, sempre com o olho guloso posto nas nossas colónias de África.
O balanço final foi trágico. Entre 1917 e 1918 foram mobilizados para combater em França 55 165 soldados portugueses, tendo-se registado 2091 mortos em combate, 234 desaparecidos e cerca de 7000 prisioneiros dos quais 233 não resistiram ao cativeiro.

D.E.

domingo, setembro 10, 2006

SETE SOPAS

- Este menino está aguado – disse o barbeiro, o olho clínico examinando, com a ajuda de pente e tesoura, os cabelos arrepiados da criança. Sentava-se o pequeno numa tábua disposta sobre os braços da cadeira giratória, os pés na almofada do assento verdadeiro que o fígaro nunca deixava de virar ao contrário quando um novo cliente sucedia no lugar, poupando-o assim aos incómodos calores que as carnes traseiras sempre derramam nos sítios onde se acomodam. A mãe do menino ouviu o diagnóstico do barbeiro, apertou nervosamente nas mãos a magreza do porta-moedas, e um trejeito percorreu-lhe os lábios descoloridos. Poderá muito bem ter sentido um aperto no peito, impressão muito frequente nas mães quando alguém fala das suas crias de forma tão desanimadora. E corou de vergonha, ou talvez de raiva impotente, pois conhecia perfeitamente o significado de estar aguado, o mesmo que ter água a crescer na boca, desejo de comer, satisfação muito limitada em sua casa e que a rebeldia dos cabelos do menino se encarregara de denunciar.
Bem poderia ter sido ela a dar-lhe umas tesouradas. Não tinha muito jeito, mas poupava o dinheiro do corte e teria evitado aquela denúncia num salão de barbearia repleto de clientes. O que se diria na sua rua no dia seguinte, se calhar até no próprio dia, quando os homens chegassem a casa e comentassem com as mulheres: “O miúdo da nossa vizinha, a do rés-do-chão do prédio de esquina, está aguado. Tem o cabelo que até parece os espinhos de um ouriço-cacheiro, aquilo é só fominha, coitada da criança. É o que faz uma família sem pai. Mas se o pai se foi embora é porque se calhar a mulher não é boa de aturar. Não sabem segurar os maridos e depois as crianças é que pagam.” Ia andar nas bocas do mundo, disso não tinha dúvidas. Só que cortar o cabelo na barbearia tinha uma justificação: a visita da madrinha. Não queria que o menino lhe aparecesse com o cabelo cortado às três pancadas, uma carinha tão perfeita que até dava gosto, e a madrinha ajudava-a tanto, boa mulher, pena que não tivesse mais posses, vivia apenas do seu trabalho na companhia telefónica, viúva e sem filhos, um ordenado certo mas modesto.
- Sete sopas – voltou à carga o barbeiro – sete sopas de panelas diferentes: feijão, canja, grão-de-bico… o que for. Sete sopas misturadas, um pratinho ao almoço e outro ao jantar, repetir no dia seguinte, vai ver que passa.
Sim, já tinha ouvido falar de tal remédio para aquele mal. Sete sopas. Mas se ela tinha tanta dificuldade em confeccionar uma única sopa, onde iria arranjar os géneros para sete? Feijão, canja, grão-de-bico…, custava um dinheirão uma couve, galinha nem falar, o pior era se a madrinha desse conta do estado do cabelo do afilhado, o que iria pensar, o menino aguado, que vergonha!
Tantas vezes andara ela pelo mercado a pedir às vendedeiras as folhas duras dos repolhos, a rama das cenouras, magros ingredientes das suas sopas, e a pobreza envergonhada obrigando-a a dizer que era para dar aos coelhos, uma gaiola cheia de coelhos no quintal de sua casa. Beneficiava também da caridade das senhoras da igreja: leite em pó, nacos de queijo amarelo, até roupa, tudo coisas que vinham da América, grande país que tão desinteressadamente ajudava os pobres de todo o mundo. Com tantas dificuldades, não sabia como é que conseguiria resolver o problema. Sete sopas. Para mais agora que o menino tinha entrado na escola: o livro da primeira classe, os cadernos, a pedra e o lápis de lousa para ensaiar as primeiras letras e os primeiros algarismos, a pasta para acomodar todo o material, a bata branca, tantas despesas. Felizmente que tinha a ajuda da madrinha, mas não chegava. E depois, um novo sobressalto a tomar conta dela: a hora de saída da escola, a rua dos eléctricos. Bem que recomendara ao menino para nunca atravessar sozinho a rua dos eléctricos, que, caso se atrasasse e não estivesse na escola à hora da saída, esperasse sempre por ela. Como era perigosa aquela rua! Ainda não existiam passadeiras para peões, nem semáforos, apenas uns polícias sinaleiros a quem chamavam cabeças de giz por causa do capacete branco, e que só se interessavam pelo trânsito dos carros, cujos condutores, no Natal, lhes ofereciam garrafas de vinho do Porto. Era vê-las dispostas à volta do estrado circular, como quem proclama: “Tragam mais. E é se querem passar logo e evitar as multas…” Desta gente nunca se esperaria ajuda para uma criança atravessar a rua.
Teria de pedir uma concha de sopa a cada uma das senhoras da igreja. Sete. Começaria pela catequista do menino, ela lhe diria a quem se dirigir em seguida. Eram pessoas que conheciam e compreendiam as suas dificuldades, muito diferentes dos vizinhos da rua onde morava que insistiam em vê-la como uma mulher nervosa e azeda que não soubera prender o marido. As senhoras da igreja moravam todas no bairro novo, famílias que podiam pagar rendas de casa de um conto de réis. Levaria uma pequena panela, mentiria, diria que o menino ficara aguado por causa das guloseimas expostas na montra da pastelaria. Não suspeitariam de nada, parecia uma explicação natural. E já o via recuperar a normalidade dos seus cabelos ondulados, o risco impecavelmente direito e uma madeixa caída sobre a testa, os olhos brilhantes, segurando a pasta escolar, recebendo os louvores do senhor professor pela correcção dos trabalhos de casa, os ditados sem erros, as cópias de bonita caligrafia, as operações aritméticas sempre bem feitas, certificadas por indesmentíveis provas dos noves, os cadernos de problemas com os resultados exactos, o senhor professor riscando sobre cada problema do caderno um grande C de certo, nenhum E de errado. E via-o a chegar a casa à hora do lanche, andava agora na quarta classe, era um rapazinho bonito que já olhava com interesse para as rapariguinhas, a beber um grande copo de leite e a comer um pão com manteiga e fiambre, e depois, à noite, após ter estudado as lições de História e de Geografia, a jantar um grande bife com um ovo a cavalo acompanhado de batatas fritas muito louras. Via-o mais adiante, no liceu, aprendendo Francês e Matemática, sempre com boas notas, o senhor reitor a chamá-la e a dizer-lhe que era ele, o seu menino, o melhor estudante do curso, que ia entrar no quadro de honra e receber um diploma numa sessão solene no ginásio. E ela a mandar fazer-lhe um fato apropriado para momento tão importante, o senhor reitor e os senhores professores na mesa onde se ia entregar o prémio, e ele a subir ao palco e a receber os aplausos de todos os colegas e suas famílias, abraçando-a depois e dizendo-lhe: “Mãe, como eu te amo!” Já com dezoito anos via-o a trabalhar num banco, e, mais tarde, profissional experiente, a dar conselhos aos clientes sobre a melhor forma de aplicarem os seus dinheiros, artes que ela não entendia, mas que sabia existirem, por alguma razão havia gente tão rica, poucos, a maioria era constituída por pobres como ela, alguns até nem conseguiam criar os filhos com dignidade.
- Minha senhora – disse o barbeiro – aqui tem o rapazinho com o cabelo cortado. Paga para a próxima, este mês não estou a levar dinheiro a crianças. E passe lá por casa para a patroa lhe dar um bocadinho da sopa do jantar. Lembre-se de que são sete sopas. Sete sopas de panelas diferentes.
Ela encarou aparvalhada a figura que lhe entregava o menino, sentiu que todos a olhavam no salão da barbearia, e teve dificuldade em perceber se tudo aquilo pertencia à realidade ou se ainda fazia parte do sonho.

D.E.

quarta-feira, setembro 06, 2006

Há um ano – 6 de Setembro de 2005 – arrancava este blogue com um excerto do discurso filosófico de Xico Futa na Estória do ladrão e do papagaio do livro Luuanda (1964), de Luandino Vieira, português de nascimento, angolano de nacionalidade, escritor revolucionário, vítima da PIDE, dirigente cultural no pós-independência, cenobita de vocação tardia e recusador de prémios literários, um grande vulto da lusofonia, ou da lusofolia, se quisermos usar o vocábulo de Mia Couto.
Reincidimos hoje com a epígrafe de Luuanda, frase extraída de um conto popular de Angola:

Na nossa terra de Luanda passam coisas que envergonham…

Infelizmente, parece que ainda é assim.
D.E

sexta-feira, setembro 01, 2006

MEMÓRIA DA GUERRA PENINSULAR

Goya - Os Fuzilamentos da Moncloa


Domingos António de Sequeira - Junot Protegendo a Cidade de Lisboa

Em 30 de Agosto de 1808 era assinada a Convenção de Sintra entre Jorge Murray, tenente general do quartel mestre general das tropas britânicas, e Kellermann, general de divisão do exército de Junot, pondo fim à primeira invasão francesa. Foi um pacto indigno, que até em Inglaterra suscitou clamores, permitindo a retirada dos franceses com armas e bagagens, incluindo o saque, em navios disponibilizados pelos nossos aliados britânicos.
As ilusões que alguns intelectuais portugueses depositaram no vendaval napoleónico, aniquilador do Antigo Regime e da aliança entre o trono e o altar, cedo se desvaneceram perante a pérfida conduta da soldadesca gaulesa sob o mando de Junot, duque de Abrantes, antigo embaixador no nosso país, que chegou a alimentar o sonho de se tornar rei de Portugal. Veja-se a este propósito a obra El-Rei Junot de Raul Brandão.
Ilusões bem patentes em Domingos António de Sequeira, pintor pré-romântico, criador do célebre quadro Junot Protegendo a Cidade de Lisboa.
Depois de Junot teríamos ainda a protecção de Soult e a de Massena, só ficando livres da praga francesa em 1811. Os ingleses, esses, ainda por cá ficaram mais uns tempos, até 1820, ano da Revolução Liberal.
Em Espanha – onde Napoleão usurpou o trono e colocou como rei, em Madrid, o seu irmão José Bonaparte – Goya também acreditou no vendaval de liberdade que a França prometia. Logo se desenganou, deixando-nos mais tarde, em 1814, no quadro Os Fuzilamentos da Moncloa, o testemunho da trágica noite de 3 de Maio de 1808, o massacre de patriotas espanhóis pelos invasores franceses.

D.E.

sábado, agosto 26, 2006

CIÚMES

Inspirado no conto homónimo de GRACILIANO RAMOS (1892-1953)
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
O manancial de epítetos e invectivas jorrava da boca de D. Joanina sobre a pessoa do seu até aí amado esposo João Baltasar Amador, técnico oficial de contas, homem um bocado obeso, com o ácido úrico a vogar em maré alta, pedras nos rins, e, por isso, já com um episódio de cólica renal com direito a urgência hospitalar. Cavalheiro à beira dos sessenta, parecia que não quebrava um prato, mas a fazer fé na informante, D. Capitolina da Conceição, senhora muito dedicada às obras de caridade do centro paroquial, andava a partir a loiça toda com uma tal Sofia dos Prazeres, empregada do seu escritório de contabilidade e assessoria fiscal, mulher de boas carnes e olhos vivos, quarenta e cinco anos de idade, e, julga-se, muito carente de homem e de todos os deleites que a espécie costuma proporcionar. Por isso D. Joanina vituperava:
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
E alternava as expressões insultuosas com ameaças duras, impróprias de quem vive os mistérios da fé e marca presença em todos os retiros de formação cristã:
- Faço-lhe um feitiço, ponho-lhe os cornos, lixo-lhe a vida…
Enfim, coisas que se dizem. Não acreditemos na sinceridade de tudo o que ouvimos, palavras que a cólera debita, humores atrabiliários a que é preciso dar o devido desconto. Será?
Temos então D. Capitolina da Conceição, senhora mais séria não pode haver, a língua a verter o veneno no ouvido de D. Joanina. Soubera-o por uma prima que trabalha no dito escritório, mulher honestíssima, incapaz de uma falsidade, e que a esta lhe dissera a empregada da limpeza, que exerce o seu mester, como todos os oficiais desta arte, a horas em que o pessoal do escritório já saiu, ou ainda não entrou, coisa perfeitamente natural, imagine-se como seria problemático limpar o pó aos computadores em pleno tráfego de dados, com os programas abertos e em laboração.
- Dê-me licença por favor, minimize aí esse programa, fique um bocadinho à espera que tenho de passar o pano no teclado.
Enquanto limpa e não limpa, podia desarranjar-se o trabalho informático: um inadvertido delete, um indesejado enter, e seria preciso começar tudo de novo, voltar ao menu do programa, seleccionar a opção, introduzir os dados, gravá-los, premir teclas e afagar o rato, sabe-se lá os custos de tais complicações, o tempo que se perderia para as superar.
Pois parece que naquele fim de dia nem todo o pessoal tinha saído. O Amador mais a Prazeres estavam enrolados no gabinete da gerência às beijocas e aos apalpanços, maneira de falar da citada empregada da limpeza, desculpemos-lhe a linguagem bárbara pois ninguém lhe paga para falar bem, apenas para limpar o pó e passar o chão a pano.
D. Joanina pensou deixar o marido. Contudo, uma decisão tão drástica não seria tomada sem antes se aconselhar com o senhor prior, com o sacristão, com uma ou outra senhora das obras de caridade. Provavelmente iria para casa da irmã, mulher que nunca casara e agora, com a idade, estava a necessitar de uma companhia. Havia de se governar, não podia era viver com a infâmia, ela que o trazia num brinquinho, as camisas de vasto pano sempre engomadas, impecavelmente brancas, até parecia milagre daqueles detergentes da televisão, as calças limpas e vincadas, os casacos, as gravatas, os sapatos, tudo numa beleza. E os mimos ao jantar?, maionese de pescada de Vigo, bifes com molho de natas, sobremesas de chocolate. Na cama é que era o diabo: não a puxava o desejo para as delícias da carne , devia ser da menopausa e dos afrontamentos, e o homem ainda por cima estava cada vez mais gordo, aquilo não dava jeito nenhum.
D. Joanina vai falar com o senhor prior.
- Minha filha, obedece a teu marido e não contribuas para o desmoronamento do santo matrimónio. Se ele te despreza ama-o ainda mais, a ovelha tresmalhada voltará ao redil, infinita é a bondade do Senhor, insondáveis são os seus desígnios, grandes são os pecados dos homens, maior o perdão de Deus, ámen.
D. Joanina vai falar com uma senhora das obras de caridade do centro paroquial.
- Do que ele precisa sei eu, é que lhe calce uns patins o mais depressa possível, homens não faltam, velhos e mal-agradecidos, não são nada sem nós. Se o meu me fizesse uma coisa dessas ia logo a andar. Mas também não sei quem é que queria pegar naquilo, só se fosse pelo dinheiro, já não dá uma para a caixa.
D. Joanina vai ainda falar com outra senhora.
- Um marido faz muita falta, minha querida. Depois de um pode vir outro pior. Já não estamos em idade de andar a mudar. Vai ver que aquilo passa. Continue a tratá-lo com afecto, tudo se há-de compor. Faça umas orações a Santa Teresinha, a Nossa Senhora, ou melhor ainda a Santo Expedito das causas justas e urgentes, e não se meta em bruxarias, não, não fale com o sacristão, é um atrevido sem vergonha, se soubesse o que ele já tentou comigo… Só que não conseguiu nada, sou uma mulher séria, de um só homem, a mim não me toca nem num cabelo. Estar de bem com o Senhor é uma coisinha muito boa, Deus nos livre do pecado.
Ficou confusa com as palavras dos conselheiros. E se não fosse verdade?, se tudo não passasse de um engano e nada de ofensivo tivesse sido feito pelo esposo? Nunca se queixara dele, sempre parecera pessoa de uma só cara, mas a realidade é que não a procurava há muito tempo, adormeciam de costas voltadas, estava completamente desinteressado. Mesmo um homem na mudança da idade havia de dar algum sinal de si. Só que não dava, andava a governar-se por outro lado. Ultimamente era muito exigente com a roupa interior, tinha mandado comprar cuecas novas, de linha moderna, artigo de primeira qualidade, bem difícil de encontrar em medida tão avantajada como a sua. E enquanto se alongava nestas conjecturas, o ciúme mordia-lhe o estômago como uma úlcera brava. A pouco e pouco dissipavam-se as dúvidas, apagavam-se os ses e os mas. Não há fumo sem fogo. E repetia para si:
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu…
E vai aconselhar-se com o sacristão, homem seco de carnes, cinquenta anos, ainda vigoroso, um sorriso insinuante. Palavra atrás de palavra, a conversa a descair para a desgraça, trocam-se as voltas ao tema. Foi na sacristia, encostada ao arcaz, sob a imagem de Santo Expedito, taumaturgo das causas justas e urgentes, imagem trazida de França por uns peregrinos de Lurdes, ali deixada por não haver nicho vacante na nave da igreja. Era à hora em que devia estar na cozinha a preparar o jantar do marido, que logo chegaria a casa com a costumeira fome, cansado do dia de trabalho no escritório de contabilidade e assessoria fiscal, regurgitando débitos e créditos, retenções na fonte, demonstrações de resultados, descontos de letras, receitas financeiras correntes, estornos, acréscimos e diferimentos, extractos bancários, juros acumulados, amortizações e reintegrações. Mas hoje teria de esperar, paciência, já estavam fechadas as portas da igreja, não passaria daquele dia, causa justa e urgente, ali encostada ao arcaz da sacristia, sob o olhar esbugalhado do santo empunhando a cruz milagreira com a palavra latina hodie, que quer dizer hoje e não amanhã, incrédulo e infinitamente pesaroso com aquilo que via, o distúrbio da alma e a fraqueza da carne, o engano, a traição, tão atormentado como no dia em que se deparou com o corvo maligno a tentar desviá-lo dos caminhos de Deus. E, sacrilégio supremo, o sacristão paramentado como se fosse ajudar à missa, e a pecadora repetindo incessantemente numa litania ímpia aquele cúmulo de palavras contra o legítimo esposo:
- Poço de mentiras, traiçoeiro, falso como Judas, gordo sem vergonha, homem feio, infiel, cão que não conhece o dono, desgraçado, doença ruim, desassossego meu….

D.E.

quinta-feira, agosto 17, 2006

MARGARIDA DE NAVARRA ( Angoulême, 1492 - Tarbes, 1549 )

LEITURA DO HEPTAMERÓN DE MARGARIDA DE NAVARRA, um conjunto de setenta e duas pequenas novelas escritas entre 1540 e 1549 segundo o modelo do Decameròn de Boccaccio. Não é fácil ler em francês do século XVI, mas devo dizer que veio em meu auxílio uma excelente tradução de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, Editorial Estampa, 1976.
Margarida foi uma mulher extraordinária. Irmã de Françisco I, rei de França, desposou em segundas núpcias Henrique d´Albret, rei de Navarra, pequeno território a norte dos Pirinéus ocidentais que se manteve independente depois da anexação do Reino de Navarra por Fernando de Aragão, em 1511, vindo a ser incorporado na Coroa de França em 1589. A formação cultural de Margarida e a grande abertura que demonstrou às correntes de pensamento do Renascimento, fizeram-na simpatizante da Reforma e protectora de poetas e artistas do seu tempo. A sua escrita prenuncia o aparecimento de importantes figuras femininas das letras francesas dos séculos XVII e XVIII, como Madalena Scudery e Madame Lafayette, numa altura em que o romance e a novela eram ainda considerados géneros literários menores.
As setenta e duas novelas do Heptaméron abordam temas sociais e humanos como as relações entre sexos, a virtude e o vício, clérigos lúbricos, maridos enganados e triângulos amorosos.
Escrevia dentro da liteira durante as demoradas viagens que fazia pelo sul de França. Fica-nos assim esta imagem de uma rainha deslocando-se com o seu séquito de cidade em cidade, de castelo em castelo, matando o tédio da viagem não em fúteis entretenimentos de sociedade, mas escrevendo sobre a índole humana, o eterno amor e as paixões da alma.

D.E.

quarta-feira, agosto 16, 2006

A GEOMETRIA DOS AFECTOS

Lídia tem carnes brancas com pequeninos sinais nos braços e no peito. Usa cabelo curto, castanho claro, tem sobrancelhas finas, escassa é a mancha de pêlos no vértice do corpo. As pernas são longas, pinta as unhas dos pés com um verniz arroxeado e prende uma fina corrente de prata no tornozelo. Os seios cabem na concha duma mão. Os olhos emanam uma luz entre o castanho e o verde, as narinas são frementes, sequiosas de ar. Os dentes superiores estão separados à frente por uma fenda de gracioso efeito, dentinhos de mentirosa, digo a brincar, e sob a linha dos lábios dissimula no queixo uma pequena cova visível apenas quando a alegria se expande no rosto. As orelhas estão perfuradas nas cartilagens superiores, atravessadas por argolinhas cintilantes de diferentes tamanhos.
Depois de apaziguado o desejo, Lídia costuma rir como uma criança. Morde-me os dedos dos pés, faz-me cócegas, ou então recita sonetos de Baudelaire e eu fico a ouvi-la até me atordoar de espanto. E beija-me muito, mesmo quando já não está à espera de amor e apenas aguarda que se esgote o tempo do nosso encontro.
Gosto de vê-la vestir-se quando terminamos. A primeira peça que põe é o sutiã. Prende-o com a parte de trás virada para a frente, os olhos orientando a perícia dos dedos, rodando-o depois para a posição correcta, ajustando-o aos seios, passando em seguida as alças pelos ombros, primeiro a alça direita, depois a esquerda, sempre por esta ordem. A roupa íntima que usa é desprovida de rendas e transparências ousadas, roupa despretensiosa, cores vivas, Eva e a serpente no tecido das calcinhas, duas maçãs mordidas nas conchas do sutiã. Enfia os braços e a cabeça na camisa que não chegou a desabotoar, depois a camisola, deixando para último as peças que cobrem a parte do corpo abaixo da linha da cintura. Calça-se, despede-se com um beijo e sai primeiro para não sermos vistos juntos.
Gosto de Lídia e da alegria do seu amor, mas devo dizer que senti alguma inquietação quando a nossa relação começou. Por duas razões: Lídia é a melhor amiga de minha mulher e é casada com um colega meu, por sinal o mais dedicado dos colegas. Mas o tempo, esse velhinho lúbrico, encarregou-se de resolver os meus cuidados. Nunca senti que os nossos amores perturbassem a amizade que continua a existir entre todos. Lídia beija a minha mulher com a mesma naturalidade com que se deita comigo, conversam muito as duas, dizem segredos uma à outra, riem, brincam, como só entre amigas costuma acontecer e é tão bonito de se presenciar. Eu e o marido de Lídia sempre nos estimámos reciprocamente, sendo de completa harmonia a vida de ambos os casais.
Um aspecto, porém, nunca deixou de me intrigar: é quando, a meio da tarde, nem eu sei de minha mulher, nem Lídia parece saber de seu marido, ausentes dos locais de trabalho, os telefones desligados, só dando sinal de vida à hora de jantar, os dois ao mesmo tempo, em enigmática sincronia. À minha inquietação reage Lídia com naturalidade: há-de aparecer, diz-me.
O mesmo se passa com o marido de Lídia quando venho de estar com ela. Há-de aparecer, digo eu, disfarçando o embaraço, confesso.
E é assim que faço por acreditar que tudo está bem entre nós: entre mim e Lídia, entre Lídia e minha mulher, entre mim e minha mulher, entre Lídia e o seu marido. Só ainda não percebi o que está mal nas horas da tarde em que minha mulher e o marido de Lídia desaparecem. Ou talvez perceba, mas não queira admitir. São infinitos os lances do amor, há sempre alguns que nos surpreendem. Talvez eu não esteja preparado para os entender na sua enorme diversidade e me recuse a ver o que está diante dos olhos. É um defeito meu, uma fragilidade, uma inaptidão para lidar com situações complexas, como a que pressinto neste trapézio de que faço parte, quadrilátero convexo, dois ângulos iguais, dois lados paralelos, os elos fortes do polígono, elas, linhas que regem e dissimulam, para deleite de todos, a geometria dos afectos.
 

terça-feira, agosto 08, 2006

A VOLTA


Neste domingo vi-os passar em Alverca. Iam a caminho de Loures, onde tinham uma prova de montanha não sei de que categoria na serra de Montemor – Montemor Delta das cartas topográficas militares, as coisas que descobrimos quando nos pomos a mexer na névoa da memória – e logo se meteram por estradas de Caneças, Amadora e Queluz, da boca do rio ao conjunto monumental da Praça do Império, até à meta. Praça do Império, 1940, Exposição do Mundo Português, foi o meu pai que me ensinou… A memória é como um novelo de lã: é só puxar a ponta do fio. E puxando lembrei-me do Alves Barbosa e do Ribeiro da Silva. Não, não eram do Benfica nem do Sporting; eram do Sangalhos e do Académico, modestas agremiações desportivas que lançavam nas estradas, em competição, o melhor sangue de Portugal. Sim, havia Fátima, havia o fado, havia o futebol – era o país dos três efes! – mas esta era uma festa que não pagava tributo a César. Era o povo unido, muito tempo antes de ser dado como vencido. O povo que hoje se senta nas salas de cinema a mastigar pipocas e agoniza diante dos ecrãs dos televisores em alegrias espúrias. E eu, criança, de calções e boné, vendo-os chegar ao sprint no alcatrão da esperança, bebendo o amarelo da camisola e a luz de todas as cores. Por isso neste domingo não me contive e fui para a estrada assistir à passagem dos ciclistas. Uma paleta de pintor atravessando a canícula da tarde. E, coisa difícil de explicar, dei o flanco à emoção, a vista turva de água, até passarem os carros de apoio, os ciclistas em dificuldade, as ambulâncias, o carro-vassoura, e, por fim, na cauda do sonho, o cortejo sonâmbulo dos que foram obrigados a encostar à berma para dar passagem, aborrecidos com a demora a que os sujeitaram, atrasados para a praia ou para a ronda dos hipermercados, as vidinhas a escoarem-se, céleres, a poucas horas do início das telenovelas, dos concursos, dos espectáculos da vida real nos horários nobres de todas as televisões.
Vinha já a subir no elevador, de regresso a casa, quando me lembrei dos versos de Alexandre O´Neill:

O homem que pedala, que ped´alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas:
tem o por vir na pedaleira.


É O Ciclista. Mas isto são já outras histórias. Ou talvez não.

D.E.

domingo, agosto 06, 2006

6 DE AGOSTO DE 1945



Ele (Eiji Okada): Em Hiroxima tu não viste nada... nada.
Ela (Emmanuelle Riva): Eu vi tudo… tudo.

Defendamos a memória da tragédia recordando Hiroxima meu amor (1959) de Alain Resnais e Marguerite Duras. Podemos não ter visto nada em Hiroxima, mas sabemos que o crime existiu. Uma forma de dizer que vimos tudo.

D.E.

sexta-feira, agosto 04, 2006

4 DE AGOSTO DE 1578

Batalha de Alcácer Quibir (gravura)
Sperai! Caí no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
E O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.
Fernando Pessoa, D. Sebastião, in Mensagem

terça-feira, agosto 01, 2006

CASO Nº 47

CAVALHEIRO DE 38 ANOS, SEXUALMENTE IMPOTENTE, BOA CONDIÇÃO SOCIAL E ECONÓMICA, PROCURA SENHORA FRÍGIDA, AINDA JOVEM, PARA RELAÇÃO DE CONVÍVIO. ASSUNTO SÉRIO. RESPOSTA AO TELEFONE Nº …
Ela acabara de ler o anúncio no jornal da manhã naquela página onde se publicitam serviços de massagens eróticas, vibradores certificados com a marca CE, pomadas cuja aplicação regular faz aumentar o membro fálico em pelo menos dois centímetros e meio, além da oferta pessoal de uma grande variedade de serviços: jovens universitárias que se propõem alegrar a vida monótona de casais, loiras e morenas desinibidas que vão a hotéis, homens dotados que recebem em casa com discrição absoluta. Sorriu. Por uns instantes ficou pensativa, tirando os óculos de ler que poisou sobre a secretária. Depois ergueu os olhos na direcção de um calendário de parede, compulsando a sucessão dos dias da semana: quarta-feira um congresso, quinta um seminário, sexta à tarde aulas na faculdade. E foi então que se pôde ver, com a luz artificial que jorrava do tecto a bater-lhe no rosto, como era bela. Chamou uma assistente de confiança e pediu-lhe para recortar o anúncio. Em seguida levantou-se, dirigiu-se a um móvel de arquivo em cujas gavetas, entre separadores, se guardavam diversos dossiês. Aproveitemos agora que está de pé para lhe apreciarmos a figura: estatura mediana, cabelos curtos, pernas bem torneadas, braços longos, volumes generosos no relevo do busto. Trinta anos, talvez. Vemo-la voltar à secretária com um dossiê na mão. Deixemo-la a ler.
Vamos encontrá-la uns dias mais tarde à mesa dum restaurante rumoroso, à hora do almoço, conversando com um sujeito bem apessoado que parece ser um pouco mais velho. Se não fosse a sobreposição de vozes e o tinido das loiças, os brados que os empregados lançam para a cozinha, poderíamos ouvir melhor a matéria da conversação. Percebe-se no entanto que falam do anúncio, que ele é o cavalheiro de trinta e oito anos impotente e de boa condição social e económica, e que tem lugar ali, naquela hora, o encontro agendado pelo anunciante. É preciso que se conheçam melhor. Deixemo-los falar à vontade, tanto que devem ter para dizer um ao outro, tão delicada que deve ser a substância do diálogo.
Para um casal se conhecer, um fim-de-semana à beira-mar pode ser uma excelente oportunidade. Mesmo em situação tão especial como esta em que ele se assume como sexualmente impotente e ela se dá como declaradamente frígida, pelo menos assim parece, de outra forma não teria respondido ao anúncio. Mas tratando-se em ambos os casos de pessoas sérias, animadas de honestos propósitos, como entretanto se apurou e desde já fica lavrado em acta para que conste, tudo deverá correr da melhor forma. Tenhamos fé.
A reserva no hotel foi feita para duas noites: de sexta para sábado e de sábado para domingo. É a hora de jantar. Um jantar de duas pessoas que, apesar das limitações assumidas ou apenas conjecturadas, parecem já sentir uma certa atracção recíproca pode muito bem começar com uma entrada de ostras acompanhadas de Murganheira bruto branco, vinho espumante natural excelente para deglutir marisco e peixe de todas as espécies. Depois virá um prato de salmão fumado com espargos verdes em molho tártaro. Terminará em beleza com uma sobremesa de manga salpicada de vinho doce malvasia. Tudo escolhido por ela, até parece uma ementa erótica. É então que passearão pela orla da praia. Talvez dêem as mãos, coisa natural entre um homem e uma mulher que começam a estimar-se, e provavelmente subirão para o quarto já depois da meia-noite. Antes ainda tomarão no bar um batido de chocolate gelado.
O que poderá ser dito sobre a noite deste casal? Que nenhuma angústia os assediará no momento em que, despindo as roupas, se prepararem para ir para a cama. Ele não terá de lhe provar nada, nenhum medo de falhar o desempenho sexual lhe toldará, obsidiante, a serenidade da noite. Poderá beijá-la e palpar-lhe os seios, coisa que até um homem impotente, cremos, é capaz de fazer com gosto. E ela não pedirá nada que ele não lhe possa dar. Talvez se comprima de encontro aos músculos do seu corpo e aspirando o perfume de homem adormeça tranquilamente num abraço de estátua. Mas não se insista nestes pormenores íntimos. Respeitemos a privacidade de cada um.
Sabe-se que no dia seguinte, sábado, a manhã ia adiantada e o casal não descia para tomar o pequeno-almoço. Meio-dia, uma hora, duas, duas e tal, e da recepção telefonam para o quarto informando que a sala de refeições ia encerrar dentro de meia hora, perguntando se desciam para almoçar. Mandaram subir o almoço ao quarto. E só de lá saíram já noite fechada, para comerem umas sandes e beberem um sumo, voltando de imediato ao aposento terminada que foi a frugal refeição.
Não se pense ser fácil de entender uma situação como esta. Um homem sexualmente impotente e uma mulher que, segundo parece, é frígida fechados num quarto de hotel há trinta e seis horas, apenas uma curta saída para comerem umas sandes, sem que se conheça motivo especial que ali os detenha. Tanto tempo fechados e um fim-de-semana com tanto sol. Só pensam em cama, Nem põem os pés na praia, Bem boa é ela e tem cara de quem gosta – isto são comentários dos empregados da recepção, triste gente que não sabe o que diz e só pode conjecturar, embora tenha havido quem, para não falar à toa, fosse encostar o ouvido à porta do quarto, colhendo da deselegante investigação confirmações absolutas, certezas inamovíveis, verdades de fazer brilhar os olhos.
É certo que sairão do quarto sobre as quatro da tarde de domingo, depois de a responsável pela limpeza ter telefonado a pedir a desocupação, pois tinha de preparar as instalações para os novos hóspedes que chegariam nessa noite. Peço imensa desculpa mas façam o favor de sair. Era pessoa educada, dá para perceber, não tem nada a ver com os colegas da recepção, trabalhadores de hotelaria sem formação profissional, situação inadmissível num estabelecimento de quatro estrelas, ainda por cima com tantos clientes estrangeiros. Sairão pois um pouco comprometidos, arrastando as bagagens, esgalgados, olheiras como vírgulas no discurso de longas horas. Passarão pela recepção para fazerem o check out sob o olhar ávido dos empregados que irão observá-los minuciosamente, invejando o sortudo, e a ela comendo-a com os olhos, procurando descobrir-lhe as peças da roupa interior sob a transparência do vestido, carregando as baterias das fantasias para uso oportuno, que pode ser já nessa noite quando voltarem a casa e se depararem na cama com a mulher de carnes flácidas ou menos favorecida pela formosura. O que um homem infeliz tem de fazer para cumprir com os deveres conjugais… Vê-los-emos ainda passarem pelo restaurante e pedirem uns bifes, preparando-se para abater a fome do dia, que a outra fome, de meses ou anos, não sabemos ao certo, já houve quem dela encontrasse alívio.
É segunda-feira. Podemos vê-la agora no seu gabinete de trabalho com o fim-de-semana ainda na memória. Está sentada à secretária diante do ecrã do computador. Mexe nas teclas, dá uma ordem de impressão. Extrai da impressora a folha que vai servir de frontispício a um dossiê que acaba de abrir e onde se pode ler:

FACULDADE DE PSICOLOGIA CLÍNICA

DRA. SANDRA CLÁUDIO

DEPARTAMENTO DE INVESTIGAÇÃO APLICADA
EM
IMPOTÊNCIA SEXUAL MASCULINA

TERAPIA
ATRAVÉS DE
ENVOLVIMENTO SEXUAL
COM OS PACIENTES

EXPERIÊNCIAS BEM SUCEDIDAS:

CASO Nº 47


Durante alguns minutos faz algumas anotações nas páginas do dossiê. Passa as mãos pelos cabelos, desenha um sorriso entre a melancolia e a satisfação. Talvez esteja um pouco confusa, com os sentimentos ligeiramente desordenados. Em seguida consulta a agenda de mesa e é quando repara que terá de almoçar mais cedo: tem uma sessão de terapia marcada para as três da tarde.


D.E.

sexta-feira, julho 28, 2006

foto JN
Não sei se ela apenas olha
as ruínas das casas
os sulcos
que se abrem no chão à força
da charrua das bombas
ou se procura
em alguma memória
de outra vida distante
a tranquilidade do mar
as frescas florestas de cedros
os pássaros que em pleno Verão
riscavam a alegria dos dias
no céu da cidade

Talvez da janela
aberta como uma ferida
ela não veja mais
que o reflexo da parede
trespassada de fogo
e ao coração ainda puro
ignorante da raiz dos destroços
não reste senão
para memória futura
a poeira do tempo parado
de onde nascerá o ódio

D.E.


domingo, julho 23, 2006

A ARTE DE BEIJAR

Não sabes beijar, disse-lhe ele, sacudindo-a de cima de si para a borda da cama. Era noite, um feixe de luar atravessava a janela aberta que dava para um pátio onde àquela hora, em pleno Verão, ainda brincavam crianças. Ela deixou-se ficar quieta durante algum tempo, olhando o jorro de luz que lhe iluminava o corpo. Depois levantou-se com muito cuidado para não acordar o companheiro que entretanto adormecera e foi sentar-se na pequena sala de estar a ver televisão. Passava um filme romântico, um casal que se beijava num grande jardim que lhe pareceu o Central Park de Nova Iorque, isto porque acima das copas das árvores erguiam-se, enormes, as colunas de cimento dos edifícios urbanos. Um filme americano. Pôs-se a estudar a forma como os amantes se beijavam: a inclinação dos eixos das cabeças, a abertura dos lábios, a maneira como prendiam as mãos ou como as soltavam em brandas carícias de amor. Beijar sempre se lhe parecera uma coisa natural, uma manifestação de afecto desprovida de qualquer grau de ciência, algo que nos vem da alma como a luz nos entra pelos olhos. Mas agora chegava à conclusão que, em verdade, deveria haver uma maneira certa de beijar, bastava dar conta da forma como o faziam os amantes do filme. Tinha de aprender a beijar, o mais depressa possível.

Na manhã seguinte, no escritório, recordou-se das dificuldades profissionais que inicialmente tivera. Dissera-lhe o chefe, um dia, Você se não aprende a trabalhar com o computador não vai ver o seu contrato de trabalho renovado. E ela metera-se a estudar à noite naquela escola de informática do bairro, um curso de cem horas, dez semanas – Windows, Excel, Internet. Salvou o emprego. O que agora precisava para salvar a relação amorosa era de aprender a beijar. Mas escolas para aprender a beijar não conhecia. Uma colega tinha andado a frequentar um curso de etiqueta, outra aprendera dança do ventre, sabia de quem tivesse cursado arte de dizer, decoração de mesas, como receber visitas e organizar recepções, mas sobre a arte de beijar não conhecia nenhum curso em cujas aulas pudesse inscrever-se. Passou a ver os filmes da televisão e as telenovelas com maior atenção, e parecia-lhe que alguma coisa ia aprendendo com eles. Só que na prática não via confirmados os progressos que pensava estar a fazer. O companheiro continuava a achar uma sensaboria os beijos que ela desentranhava para o fazer feliz, negando-lhe a boca que ela tanto procurava.

Lembrou-se então daquele seu grande amigo de infância com quem tinha vivido as inocentes brincadeiras de criança. Perdera-lhe o rasto na adolescência, quando a família dele se mudara para outra cidade, mas viera a reencontrá-lo mais tarde, acabado de sair de um divórcio muito traumático. Decidiu telefonar-lhe. Da mesma forma que, na altura, o encorajara a superar o difícil transe que ele atravessava, podia agora esperar a ajuda que só um amigo pode dar, o conselho, a orientação, tanto mais que se tratava de pessoa com experiência adquirida no domínio dos desacertos amorosos. Encontraram-se. O amigo ouviu-a com interesse, os olhos brilhantes. Segurou-lhe uma das mãos como quem transmite uma força, e passando-lhe um dedo no recorte da boca, disse: Vou ajudar-te. Como?, perguntou ela, pressentindo uma resposta que não podia conhecer antecipadamente mas que depois de dada compreendeu ser a única possível: Vou ensinar-te a beijar.

Começaram em casa dele, ao fim da tarde, seguindo um programa de formação minuciosamente estabelecido, com uma clara definição dos objectivos a atingir. Primeira sessão, só beijos de lábios. Depois, nas sessões seguintes, as aulas práticas progrediram em exercícios de dificuldade acrescida, trabalhando com a língua e os dentes, misturando secreções salivares, beijos sôfregos e de cortar a respiração. Por hoje chega, dizia ela, preparando-se para retocar os lábios com um batom que tirava da mala de dentro dum estojo de que fazia parte um pequeno espelho. Era sempre ela a pedir o fim da sessão. Ele, por sua vontade, continuaria. Voltavam no dia seguinte. Como fazia muito calor começaram a aliviar-se das roupas para uma execução menos penosa do trabalho: ele tirava a camisa, ficando nu da cintura para cima, e ela despia a blusa deixando apenas o sutiã. Os teus beijos são já tecnicamente perfeitos, disse-lhe ele de certa vez, É a altura própria para passarmos a práticas pedagógicas mais exigentes. E começaram a combinar beijos com carícias: enquanto as bocas sorviam ou mordiam furiosamente, as mãos soltavam-se sobre os corpos, tocavam as zonas erógenas, metiam-se sob o pano das roupas à procura de ocultas delícias. As sessões tinham lugar muitas vezes sobre o tapete da sala, na horizontal.

Não é possível saber quando terminaram exactamente as sessões, o momento em que o formador deu por concluída a formação ou mesmo a altura certa em que formanda sentiu já estar formada em arte de beijar. Também não é possível determinar se ele se limitou a ensinar-lhe a matéria inicialmente proposta ou se se terá alongado por artes e conteúdos extra-curriculares. Sabe-se sim que ela se tornou outra mulher, mais segura, mais ardente e confiante nas suas capacidades.

Sabe-se ainda que em certa noite, já no fim do Verão, estando ela deitada com o companheiro naquele mesmo quarto onde havia uma janela que dava para um pátio, ele se aproximou, tendo começado a beijá-la. Coisa estranha, talvez se tratasse dum apetite passageiro originado por algum estímulo inesperado. Ela não disse nada, mas pensou, enquanto se abandonava quase indiferente àquela surpreendente manifestação de afecto, que afinal era ele que não sabia beijar.

A noite estava fresca, já não se ouvia a algazarra das crianças brincando, só lhe apetecia dormir. E nenhum raio de luar atravessava a janela do quarto para iluminar o seu corpo.

D.E.

sexta-feira, julho 21, 2006

LER NA AREIA

O Leitor, de Bernhard Schlink.

Um romance sobre a descoberta do amor, o fascínio dos livros e a vergonha dos campos de extermínio do nazismo. Uma leitura densa de emoções e prazer. Um olhar sobre a História e o Direito. Um romance para se ler agora, no momento em que o fundamentalismo islâmico procede à revisão em baixa do número de vítimas do Holocausto – como se a diferença, por maior que fosse, pudesse alterar a expressão da monstruosidade. Um romance para se ler neste tempo, quando a Palestina e o Líbano estão a ferro e fogo e não é fácil compreender de que lado está a razão, se é que ela está em algum dos lados.
D.E.

sábado, julho 15, 2006

VOLTANDO AO MESMO




LYGIA!





ISTO COMEÇA A TORNAR-SE FIXAÇÃO DOENTIA.






VER AQUI:
www.gargantadaserpente.com/450/poemas/246.shtml

Sobre LYGIA FAGUNDES TELLES - "AS HORAS NUAS"

SEI APENAS AQUILO QUE UM GATO PODE SABER. Mas digo que para entender a alma duma mulher não chega às vezes a vida dum homem. Nisso terei eu algumas vantagens com as minhas vidas múltiplas: compreender uma mulher como esta, dona de mim mesmo, que me mandou castrar para que fosse só seu e de mais ninguém – Rosa, Rosa Ambrósio, Rosana, actriz que pisou os palcos da glória, agora um pouco envelhecida, ainda por cima alcoólatra, ou alcoólica, nem a terapia lhe tem valido. Rosana perdeu homens: Miguel, o primeiro amor, chamado na juventude ao convívio dos deuses; Gregório, o legítimo, embora já dormissem em camas separadas, levado por um enfarte que foi um suicídio; Diogo, o secretário, muito mais novo do que ela, saído da sua vida pelo próprio pé. Por isso vive quase só, comigo e com uma empregada, a Diú, já que com Cordélia, a filha, não pode contar. Cordélia, uma jovem com uma singular atracção por homens velhos, todos na casa dos sessenta, velhos perversos a quem falta o vigor e a honestidade do amor juvenil. Minha filha, coitadinha, não deixe que eles se babem sobre as suas carnes, não permita que façam porcarias consigo – mas isto não sou eu que digo, é uma dor que Rosana tem dentro de si, é um grito dela. De todos os amantes só Diogo sabia declinar-lhe o nome: ROSA ROSAE. Talvez por isso tenha sido tão custosa a separação.

Rahul. Rahul é o meu nome. Já tive vidas de gente, já fui menino numa moradia de venezianas verdes, ou de persianas verdes, vivi um singular episódio de amor numa casa com átrio, peristilo e um jardim florido onde havia uma mesa com tampo de mármore e pés de bronze imitando patas de leão. Outras eras. Vestia uma túnica e era jovem. Hoje sou uma bola de pêlo com patas almofadadas, língua rugosa, um sexo inexistente e estes olhos da alma atravessando os tempos.

Ananta Medrado, trinta e um anos, virgem, é a psicanalista que assiste Rosana. O cavalo do desejo à desfilada no corpo, ou no andar de cima onde habita um misterioso vizinho, ou dentro da alma, lugar onde acontecem tantas coisas que não sabemos explicar. Quem poderia imaginar ao vê-la assim com a sua bata de médica, sentada no consultório à cabeceira do divã, tratando a minha dona – uma diva no divã – fazendo correr o rio das palavras na memória dos afectos perdidos? Ananta desapareceu e nunca mais foi encontrada, o assunto está na Delegacia das Pessoas Desaparecidas. Um problema. Não, um teorema. Um teorema é um problema onde metemos Deus: teo + rema. Isto dizia Gregório, o meu dono, um ataque cardíaco que foi suicídio. Ananta desapareceu para se refugiar em algum lugar a domar o cavalo bravo do desejo, trinta e um anos, ninguém a castrou, isto é o que pensa Rosana, a minha dona.

Tenho saudades de Gregório. Antes de Rosana desfazer as estantes e dar sumiço nos livros ainda vinha pela noite visitar o refúgio da biblioteca. Eu deitava-me na transparência das suas pernas, ronronando a minha asma como uma chaleira fervente, e mesmo assim parecia que me sentia e afagava-me o dorso peludo com a nuvem da mão. Depois desapareceu de vez. Tenho saudades de Gregório, tenho saudades de tudo o que fui. Hoje sou um simples gato saído de um livro para falar de uma história.

Uma história? Nem tenho a certeza.

D.E.

domingo, julho 09, 2006

FUTEBOL E "RAPARIGA COM BRINCO DE PÉROLA"


A princípio não quis levar aquilo a sério: era um jogo a feijões, para um prémio de consolação… Mas depois vi que estavam lá o Presidente da República, uma primeira dama de circunstância, o Chefe do Governo – estes os que mereciam maior visibilidade mediática – e, na penumbra, creio, ministros e ajudantes de ministros, deputados e directores-gerais, tudo gente que se senta à mesa do orçamento e está acostumada a lidar com a vertigem do transporte aéreo com a mesma naturalidade de quem apanha o autocarro para a Buraca. E todos, pelo menos os que eu via, cantavam o hino nacional a plenos pulmões. Foi então que dei importância ao assunto. Mandei vir uma imperial e uma embalagem de amendoins e dispus-me a assistir ao confronto – havia um magnífico ecrã na zona de restaurantes do centro comercial, sempre era melhor do que ver em casa.

Atravessei estoicamente a primeira parte do jogo. Meditei, ao intervalo, nos feitos heróicos dos filhos de Luso. Desisti aos sessenta minutos, quando aquele jogador português com nome gálico confundiu a nossa baliza com a do adversário.

Disse-me depois o empregado de um café, na Avenida de Roma, que ainda tínhamos levado mais uma estocada, mas que um valoroso patriota de nome Nuno tinha aberto um rombo no último reduto do adversário. O Nuno, perguntei, o que tem sido sistematicamente preterido em favor de aquele açoriano que costuma correr atrás de bolas de queijo flamengo? Esse mesmo, respondeu-me o profissional de hotelaria e serviços similares, jogou apenas meia dúzia de minutos mas fez tanto quanto o outro que andou horas e horas a arrastar o canastro pelos relvados luxuosos da Alemanha.

E lembrando-me dos altos magistrados da Nação, todos de hino na boca e patriotismo a transbordar do peito, suspensos das duras tarefas da governação, vendo cair os nossos naquela jornada inglória, vieram-me as lágrimas aos olhos e aos lábios aquelas palavras do grande Luís de Camões sobre a austera, apagada e vil tristeza em que se metera a Pátria. A sua Pátria, a nossa.

Dei comigo numa sala do Quarteto, na sessão das dez, a espairecer. Na plateia éramos só dois, imagine-se o prejuízo daqueles pobres empresários… Mas para mim foi o melhor da noite: Rapariga com brinco de pérola, de Peter Webber, com a esplendorosa Scarlett Johansson e, em fundo, a pintura de assombro de Johannes Vermeer.


D.E.

sexta-feira, junho 30, 2006





Jorge Luís Borges está sentado num banco de jardim no Alto de Santa Catarina, diante da estátua do Adamastor, naquela posição que lhe é bem conhecida: o tronco erguido, a cabeça levantada, as mãos apoiadas no cabo da bengala. Tem do seu lado esquerdo Ricardo Reis, que segura a maleta de médico, desconhecendo-se se guarda nela as ferramentas da arte de Hipócrates ou se a usa para acomodar os seus escritos de poeta: odes sáficas e alcaicas, que o mesmo é dizer feitas à maneira de Safo e de Alceu, génios gregos, inspiradas nas musas Lídia, Cloe e Neera; Marcenda, outra musa, viria mais tarde. À direita do argentino senta-se uma figura menos conhecida: Herbert Quain, irlandês, autor, entre outros, do livro The god of the labyrinth, edição de 1933, um romance policial no género dos de Agatha Cristhie.

Por que razão ou desígnio se juntaram naquele local tão distintas personagens, é matéria que o narrador não sabe explicar. Sabe que, embora mortos, vieram os três por caminhos de vivos, por estradas e aeroportos, andando nas ruas, apanhando transportes públicos, pois não são fantasmas de atravessar paredes ou de esvoaçar em lençóis, muito menos de arrastar correntes. São espectros civilizados, que se movem pacificamente entre os viventes, sem nenhum estrépito, poupando-os a todo o assombro ou tribulação. Borges, veio de Genebra, do cemitério de Plainpalais; Reis, do claustro do Mosteiro dos Jerónimos, em cujo túmulo lhe dá guarida Fernando Pessoa; Quain, de Roscommon, na Irlanda. O banco onde se sentam ostenta um letreiro com um prudente aviso: PINTADO DE FRESCO. Ainda bem, assim não se sentará nenhum passante onde já estão acomodados estes viajantes do tempo. E depois, não consta que se agarre a tinta das pinturas à roupa dos que já não são, como se neste lugar o Ontem pudesse ser o Hoje, o Ainda, o Todavia, tudo segundo o que pode ser lido e relido no citado Borges, poema O Tango.

- Ó Fernando António – disse Borges – alegro-me que tenha vindo. É sempre bom poder falar consigo.

- Por favor não me chame Fernando António – replicou Ricardo Reis vivamente incomodado – não tenho nome de santo da Cristandade…

- Você é um cómico, meu caro Fernando – insistiu Borges – essa sua mania de se mascarar, essa sua ideia peregrina de nos fazer crer que é sempre o outro e nenhum… Homem, assuma-se. Agora que está morto e bem morto, liberte-se de vez do labirinto em que se meteu em vida.

Ricardo Reis remexeu-se nervosamente na tábua do assento.

- Labirinto deve ser consigo. Não foi você que inventou essa figura de papel que está aí desse lado? O pretenso autor do livro The god of the labyrinth? Olhe que cheguei a pensar que a obra tinha existência real…

- Meu caro Fernando, veja bem o que diz, olhe que o Herbert é muito sensível. Ainda bem que ele não compreende o português…

- Volto a dizer-lhe que não me chamo Fernando. O meu nome é Ricardo Reis, nasci no Porto em 1887, estudei medicina, estive exilado no Brasil, morri em Lisboa em 1936…

- Ó Fernando, que eu saiba o único heterónimo que você matou foi o Alberto Caeiro, em 1915, coitado, ainda tão novo, apenas com vinte e seis anos… Não me consta que tenha dado um fim ao Reis ou mesmo ao Campos.

Proferira estas palavras em tom de grande ironia, deixando exasperado o poeta das Odes.

- Leia Saramago, o meu último biógrafo, e verá. Se calhar não leu, não podemos ler tudo… Ou será despeito seu por nunca ter recebido o Nobel? Ah! já me esquecia, você é cego. Os cegos não lêem, embora, caso curioso, possam ser directores de bibliotecas… De bibliotecas cegas, foi você que o disse… No entanto, pelo que sei, não lhe faltaram os olhos dos outros para fazer as suas leituras.

Borges acolheu com bonomia as alfinetadas de Ricardo Reis. Dirigiu o rosto na direcção da estátua do Adamastor, pensativo, como se escrutinasse nas gavetas do tempo uma memória antiga. Trocou umas palavras incompreensíveis com Herbert Quain, possivelmente em algum dialecto celta, e virando-se para Ricardo Reis falou assim:

- Uma coisa acho extraordinária em si, meu caro Fernando. Bem, não será a única, mas é uma delas, e muito importante, que sempre me deu que pensar. É que você tenha tido a pretensão de se constituir em émulo de Luís de Camoens…

- Luís de Camões – emendou Ricardo Reis, já conformado com a maneira como sistematicamente era nomeado por Borges.

- Eu digo Camoens. Nunca assimilei convenientemente o vosso vocalismo nasal. Sabe bem que a minha língua materna é o inglês, o castelhano veio mais tarde… Mas adiante: você escreveu a Mensagem como quem escreve Os Lusíadas do século XX. Falou do Bandarra, não esqueceu o Conde D. Henrique nem D. Tareja, mas sobre Luís de Camoens nem uma palavra. A isso chamo eu uma omissão histórica. E voluntária. Além disso, há uma diferença entre as duas obras: o grande épico recebeu por Os Lusíadas uma tença anual de quinze mil réis, atribuída pelo rei de Portugal, e você com a sua Mensagem não foi além de um segundo prémio do Secretariado de Propaganda Nacional do António Ferro, um intelectual que era funcionário do regime, o maior admirador de Salazar. Depois, lembrei-me disto há pouco, você nem fala do Adamastor. Camoens dedica-lhe vinte e quatro oitavas no Canto V, tanto como cento e noventa e dois versos; você na Mensagem alude a um Mostrengo, e resolve o assunto de uma penada, em três estrofes de nove versos… Ora o seu Mostrengo não tem nada a ver com o Adamastor do nosso grande épico. Digo nosso, repare bem, porque me correu nas veias o sangue português. Não sei se sabe, mas sou descendente dos Borges de Torre de Moncorvo. Até tenho uns versos feitos aos meus antepassados,

Nada o muy poco sé de mis mayores
Portugueses, los Borges: vaga gente
Que prosigue em mi carne, oscuramente,
Sus hábitos, rigores y temores…

- Já conheço, escusa de se dar ao trabalho de continuar – atalhou Ricardo Reis.

Borges levantou-se, e um pouco inseguro, batendo com a bengala como se procurasse orientação, foi até junto da estátua do Adamastor. Deteve-se ali durante uns minutos – se é que é possível falar de minutos, ou mesmo de outra unidade de medida, para exprimir o tempo dos que não existem –, a boca entreaberta de admiração, os olhos vagos postos na massa de pedra do Gigante. Era essa a visão do estatuário: o Adamastor apaixonado, sofredor, que revelara a Vasco da Gama o seu amor por Tétis, o sentimento não correspondido. Não serve ao amor de uma ninfa a fealdade de um gigante – verdade tardiamente entendida pelo titã. E foi assim que tendo surgido assustador sobre a minúscula nau, figura robusta e válida, pressagiando naufrágios e perdições de toda a sorte, se apartou de ante os olhos do Gama em medonho choro, esmagado pelo sofrimento de quem não é servido pelo amor.

Quando voltou para o seu lugar no banco, junto dos companheiros, estes conversavam em inglês sobre o modelo de desenvolvimento da Irlanda, país pobre que se tornou rico, e que bem poderia ser um exemplo para Portugal…

- Só quem amou poderia falar assim do Adamastor – disse Borges. Mas nem Reis nem Quain, enredados na sua conversa, compreenderam o que queria dizer.

Calaram-se finalmente quando o ouviram recitar um poema.

A LUIS DE CAMOENS

Sin lástima y sin ira el tiempo mella
Las heroicas espadas: Pobre y triste
A tu patria nostálgica volviste,
Oh capitán, para morir en ella
Y con ella. En el mágico desierto
La flor de Portugal se habia perdido
Y el áspero español, antes vencido,
Amenazaba su costado abierto.
Quiero saber si aquen de la ribera
Última comprendiste humildemente
Que todo lo perdido, el Occidente
Y el Oriente, el acero y la bandera,
Perduraria (ajeno a toda humana
Mutación) en tu Eneida lusitana.

Foi então que um vento inopinado tomou conta das copas das árvores. No banco em frente foram pelo ar as folhas de um jornal que era lido por dois idosos. Saltou o boné da cabeça de uma criança. Brilharam as coxas de uma rapariga debaixo da saia esvoaçante. Um sem-abrigo que fumava uma beata engasgou-se com o fumo e teve um ataque de tosse. Dois namorados que se beijavam junto à grade do miradouro vieram abrigar-se no pequeno bar do jardim. Num automóvel estacionado no largo disparou-se o sistema de alarme.

E houve quem visse dois grandes rectângulos de papel elevarem-se no céu sobre as casas que descem para o rio.

Borges está agora sozinho no banco.

Um dos idosos a quem o vento arrebatara o jornal, tocou no braço do companheiro e disse:

- Está ali um tipo que parece cego. Olha, vai levantar-se… Vamos perguntar-lhe se precisa de ajuda para atravessar a rua.

Diga-se porém que nada do que o idoso viu pode ser considerado seguro. De resto, nem é seguro que ali tivessem estado os dois idosos, e que o vento lhes tivesse levado o jornal, e que houvesse um banco de jardim com um letreiro a avisar que estava pintado de fresco.

D.E.

sábado, junho 03, 2006

O DESCONCERTO DOS AMANTES

Serena está deitada de costas na cama, a cabeça sobre as mãos numa nudez irrepreensível que me magoa os sentidos. Recorta-se a linha do corpo contra o cetim da colcha, o prodígio dos seios, a pele muito branca, o tufo de sombra dos pêlos púbicos. Faz-me mal vê-la assim, como um nu deitado de Modigliani fora do tempo e do espaço, sorrindo e entreabrindo as coxas como se se preparasse para os delírios do amor. Pela persiana que não está completamente fechada entra no quarto uma fresta da luz da tarde… Mas nada disto que vejo tem existência real. Serena não está comigo, deixou-me há muito tempo. Saiu de casa dominada por um inesperado desencantamento, e dela conservo na memória estas imagens que projecto como holograma no espaço vazio do meu quarto. Vejo-a sempre assim desde o dia da sua partida. Todos os dias.

Não foi paixão, disse-me, não passou tudo de uma grande admiração que me tomou, uma errada percepção de sentimentos, um turbilhão de ideias desordenadas. Pensava ser amor, mas afinal era apenas deslumbramento. Cegou-me a tua luz, fragilizei-me, mas agora que habituei os olhos a esse fulgor já sou capaz de compreender a verdadeira expressão do que sinto.

Subo a persiana e encho o espaço do quarto de claridade. Serena volta-se de bruços, como se a luz e o ar quente da tarde lhe causassem incómodo ou apenas quisesse subtrair o rosto à observação dos meus olhos. Vejo-lhe as ancas e o anel da cintura, os ombros estreitos, o torneado das nádegas e das pernas.

Já não te sinto, disse-me, não consigo viver com este afecto mudo, como se me bastasse o teu olhar para saber que me amas.

Senta-se na borda da cama e faz tenção de começar a vestir-se. Toma as roupas que jazem em desalinho sobre o cadeirão. Enfia os braços nas mangas da camisa, veste as calças. Está agora de pé, virada para mim, a camisa desabotoada, os cabelos soltos caindo sobre os ombros. Apetece-me tocar-lhe nos seios… Mas não adianta pensar nisso. Serena não está aqui e o que vejo não passa de uma ilusão amarga que se meteu no meu quarto e me faz sofrer.

Só me desejas pela minha beleza, disse-me, nunca foste capaz de me ler a alma. Para ti não passo de um corpo e de um sexo.

É verdade que te desejo pela tua beleza, sim, a beleza é o pão dos olhos, não sei viver sem ela. Mas não me peças que te fale de amor. São redundantes todos os discursos amorosos, são frágeis as palavras quando nos propomos explicar os sentimentos. As palavras são sons, apenas sons, signos inconsequentes que não suplantam a eloquência dos olhos, o toque das mãos.

Serena acaba de se vestir. Passa a escova pelos cabelos olhando-se no espelho. Sai do quarto, e eu oiço bater a porta que dá para a escada. Sinto-me asfixiar dentro do espaço fechado. Chego à janela que se abre para o precipício da rua e vejo-a sair. Olho-a, sigo os seus passos pela calçada. Sinto-me cansado. Respiro profundamente bebendo a grandes sorvos a aragem quente. E encho-me da luz da tarde até cegar, como um pássaro doido voando no abismo.


D.E.