- Este menino está aguado – disse o barbeiro, o olho clínico examinando, com a ajuda de pente e tesoura, os cabelos arrepiados da criança. Sentava-se o pequeno numa tábua disposta sobre os braços da cadeira giratória, os pés na almofada do assento verdadeiro que o fígaro nunca deixava de virar ao contrário quando um novo cliente sucedia no lugar, poupando-o assim aos incómodos calores que as carnes traseiras sempre derramam nos sítios onde se acomodam. A mãe do menino ouviu o diagnóstico do barbeiro, apertou nervosamente nas mãos a magreza do porta-moedas, e um trejeito percorreu-lhe os lábios descoloridos. Poderá muito bem ter sentido um aperto no peito, impressão muito frequente nas mães quando alguém fala das suas crias de forma tão desanimadora. E corou de vergonha, ou talvez de raiva impotente, pois conhecia perfeitamente o significado de estar aguado, o mesmo que ter água a crescer na boca, desejo de comer, satisfação muito limitada em sua casa e que a rebeldia dos cabelos do menino se encarregara de denunciar.
Bem poderia ter sido ela a dar-lhe umas tesouradas. Não tinha muito jeito, mas poupava o dinheiro do corte e teria evitado aquela denúncia num salão de barbearia repleto de clientes. O que se diria na sua rua no dia seguinte, se calhar até no próprio dia, quando os homens chegassem a casa e comentassem com as mulheres: “O miúdo da nossa vizinha, a do rés-do-chão do prédio de esquina, está aguado. Tem o cabelo que até parece os espinhos de um ouriço-cacheiro, aquilo é só fominha, coitada da criança. É o que faz uma família sem pai. Mas se o pai se foi embora é porque se calhar a mulher não é boa de aturar. Não sabem segurar os maridos e depois as crianças é que pagam.” Ia andar nas bocas do mundo, disso não tinha dúvidas. Só que cortar o cabelo na barbearia tinha uma justificação: a visita da madrinha. Não queria que o menino lhe aparecesse com o cabelo cortado às três pancadas, uma carinha tão perfeita que até dava gosto, e a madrinha ajudava-a tanto, boa mulher, pena que não tivesse mais posses, vivia apenas do seu trabalho na companhia telefónica, viúva e sem filhos, um ordenado certo mas modesto.
- Sete sopas – voltou à carga o barbeiro – sete sopas de panelas diferentes: feijão, canja, grão-de-bico… o que for. Sete sopas misturadas, um pratinho ao almoço e outro ao jantar, repetir no dia seguinte, vai ver que passa.
Sim, já tinha ouvido falar de tal remédio para aquele mal. Sete sopas. Mas se ela tinha tanta dificuldade em confeccionar uma única sopa, onde iria arranjar os géneros para sete? Feijão, canja, grão-de-bico…, custava um dinheirão uma couve, galinha nem falar, o pior era se a madrinha desse conta do estado do cabelo do afilhado, o que iria pensar, o menino aguado, que vergonha!
Tantas vezes andara ela pelo mercado a pedir às vendedeiras as folhas duras dos repolhos, a rama das cenouras, magros ingredientes das suas sopas, e a pobreza envergonhada obrigando-a a dizer que era para dar aos coelhos, uma gaiola cheia de coelhos no quintal de sua casa. Beneficiava também da caridade das senhoras da igreja: leite em pó, nacos de queijo amarelo, até roupa, tudo coisas que vinham da América, grande país que tão desinteressadamente ajudava os pobres de todo o mundo. Com tantas dificuldades, não sabia como é que conseguiria resolver o problema. Sete sopas. Para mais agora que o menino tinha entrado na escola: o livro da primeira classe, os cadernos, a pedra e o lápis de lousa para ensaiar as primeiras letras e os primeiros algarismos, a pasta para acomodar todo o material, a bata branca, tantas despesas. Felizmente que tinha a ajuda da madrinha, mas não chegava. E depois, um novo sobressalto a tomar conta dela: a hora de saída da escola, a rua dos eléctricos. Bem que recomendara ao menino para nunca atravessar sozinho a rua dos eléctricos, que, caso se atrasasse e não estivesse na escola à hora da saída, esperasse sempre por ela. Como era perigosa aquela rua! Ainda não existiam passadeiras para peões, nem semáforos, apenas uns polícias sinaleiros a quem chamavam cabeças de giz por causa do capacete branco, e que só se interessavam pelo trânsito dos carros, cujos condutores, no Natal, lhes ofereciam garrafas de vinho do Porto. Era vê-las dispostas à volta do estrado circular, como quem proclama: “Tragam mais. E é se querem passar logo e evitar as multas…” Desta gente nunca se esperaria ajuda para uma criança atravessar a rua.
Teria de pedir uma concha de sopa a cada uma das senhoras da igreja. Sete. Começaria pela catequista do menino, ela lhe diria a quem se dirigir em seguida. Eram pessoas que conheciam e compreendiam as suas dificuldades, muito diferentes dos vizinhos da rua onde morava que insistiam em vê-la como uma mulher nervosa e azeda que não soubera prender o marido. As senhoras da igreja moravam todas no bairro novo, famílias que podiam pagar rendas de casa de um conto de réis. Levaria uma pequena panela, mentiria, diria que o menino ficara aguado por causa das guloseimas expostas na montra da pastelaria. Não suspeitariam de nada, parecia uma explicação natural. E já o via recuperar a normalidade dos seus cabelos ondulados, o risco impecavelmente direito e uma madeixa caída sobre a testa, os olhos brilhantes, segurando a pasta escolar, recebendo os louvores do senhor professor pela correcção dos trabalhos de casa, os ditados sem erros, as cópias de bonita caligrafia, as operações aritméticas sempre bem feitas, certificadas por indesmentíveis provas dos noves, os cadernos de problemas com os resultados exactos, o senhor professor riscando sobre cada problema do caderno um grande C de certo, nenhum E de errado. E via-o a chegar a casa à hora do lanche, andava agora na quarta classe, era um rapazinho bonito que já olhava com interesse para as rapariguinhas, a beber um grande copo de leite e a comer um pão com manteiga e fiambre, e depois, à noite, após ter estudado as lições de História e de Geografia, a jantar um grande bife com um ovo a cavalo acompanhado de batatas fritas muito louras. Via-o mais adiante, no liceu, aprendendo Francês e Matemática, sempre com boas notas, o senhor reitor a chamá-la e a dizer-lhe que era ele, o seu menino, o melhor estudante do curso, que ia entrar no quadro de honra e receber um diploma numa sessão solene no ginásio. E ela a mandar fazer-lhe um fato apropriado para momento tão importante, o senhor reitor e os senhores professores na mesa onde se ia entregar o prémio, e ele a subir ao palco e a receber os aplausos de todos os colegas e suas famílias, abraçando-a depois e dizendo-lhe: “Mãe, como eu te amo!” Já com dezoito anos via-o a trabalhar num banco, e, mais tarde, profissional experiente, a dar conselhos aos clientes sobre a melhor forma de aplicarem os seus dinheiros, artes que ela não entendia, mas que sabia existirem, por alguma razão havia gente tão rica, poucos, a maioria era constituída por pobres como ela, alguns até nem conseguiam criar os filhos com dignidade.
- Minha senhora – disse o barbeiro – aqui tem o rapazinho com o cabelo cortado. Paga para a próxima, este mês não estou a levar dinheiro a crianças. E passe lá por casa para a patroa lhe dar um bocadinho da sopa do jantar. Lembre-se de que são sete sopas. Sete sopas de panelas diferentes.
Ela encarou aparvalhada a figura que lhe entregava o menino, sentiu que todos a olhavam no salão da barbearia, e teve dificuldade em perceber se tudo aquilo pertencia à realidade ou se ainda fazia parte do sonho.
D.E.
Bem poderia ter sido ela a dar-lhe umas tesouradas. Não tinha muito jeito, mas poupava o dinheiro do corte e teria evitado aquela denúncia num salão de barbearia repleto de clientes. O que se diria na sua rua no dia seguinte, se calhar até no próprio dia, quando os homens chegassem a casa e comentassem com as mulheres: “O miúdo da nossa vizinha, a do rés-do-chão do prédio de esquina, está aguado. Tem o cabelo que até parece os espinhos de um ouriço-cacheiro, aquilo é só fominha, coitada da criança. É o que faz uma família sem pai. Mas se o pai se foi embora é porque se calhar a mulher não é boa de aturar. Não sabem segurar os maridos e depois as crianças é que pagam.” Ia andar nas bocas do mundo, disso não tinha dúvidas. Só que cortar o cabelo na barbearia tinha uma justificação: a visita da madrinha. Não queria que o menino lhe aparecesse com o cabelo cortado às três pancadas, uma carinha tão perfeita que até dava gosto, e a madrinha ajudava-a tanto, boa mulher, pena que não tivesse mais posses, vivia apenas do seu trabalho na companhia telefónica, viúva e sem filhos, um ordenado certo mas modesto.
- Sete sopas – voltou à carga o barbeiro – sete sopas de panelas diferentes: feijão, canja, grão-de-bico… o que for. Sete sopas misturadas, um pratinho ao almoço e outro ao jantar, repetir no dia seguinte, vai ver que passa.
Sim, já tinha ouvido falar de tal remédio para aquele mal. Sete sopas. Mas se ela tinha tanta dificuldade em confeccionar uma única sopa, onde iria arranjar os géneros para sete? Feijão, canja, grão-de-bico…, custava um dinheirão uma couve, galinha nem falar, o pior era se a madrinha desse conta do estado do cabelo do afilhado, o que iria pensar, o menino aguado, que vergonha!
Tantas vezes andara ela pelo mercado a pedir às vendedeiras as folhas duras dos repolhos, a rama das cenouras, magros ingredientes das suas sopas, e a pobreza envergonhada obrigando-a a dizer que era para dar aos coelhos, uma gaiola cheia de coelhos no quintal de sua casa. Beneficiava também da caridade das senhoras da igreja: leite em pó, nacos de queijo amarelo, até roupa, tudo coisas que vinham da América, grande país que tão desinteressadamente ajudava os pobres de todo o mundo. Com tantas dificuldades, não sabia como é que conseguiria resolver o problema. Sete sopas. Para mais agora que o menino tinha entrado na escola: o livro da primeira classe, os cadernos, a pedra e o lápis de lousa para ensaiar as primeiras letras e os primeiros algarismos, a pasta para acomodar todo o material, a bata branca, tantas despesas. Felizmente que tinha a ajuda da madrinha, mas não chegava. E depois, um novo sobressalto a tomar conta dela: a hora de saída da escola, a rua dos eléctricos. Bem que recomendara ao menino para nunca atravessar sozinho a rua dos eléctricos, que, caso se atrasasse e não estivesse na escola à hora da saída, esperasse sempre por ela. Como era perigosa aquela rua! Ainda não existiam passadeiras para peões, nem semáforos, apenas uns polícias sinaleiros a quem chamavam cabeças de giz por causa do capacete branco, e que só se interessavam pelo trânsito dos carros, cujos condutores, no Natal, lhes ofereciam garrafas de vinho do Porto. Era vê-las dispostas à volta do estrado circular, como quem proclama: “Tragam mais. E é se querem passar logo e evitar as multas…” Desta gente nunca se esperaria ajuda para uma criança atravessar a rua.
Teria de pedir uma concha de sopa a cada uma das senhoras da igreja. Sete. Começaria pela catequista do menino, ela lhe diria a quem se dirigir em seguida. Eram pessoas que conheciam e compreendiam as suas dificuldades, muito diferentes dos vizinhos da rua onde morava que insistiam em vê-la como uma mulher nervosa e azeda que não soubera prender o marido. As senhoras da igreja moravam todas no bairro novo, famílias que podiam pagar rendas de casa de um conto de réis. Levaria uma pequena panela, mentiria, diria que o menino ficara aguado por causa das guloseimas expostas na montra da pastelaria. Não suspeitariam de nada, parecia uma explicação natural. E já o via recuperar a normalidade dos seus cabelos ondulados, o risco impecavelmente direito e uma madeixa caída sobre a testa, os olhos brilhantes, segurando a pasta escolar, recebendo os louvores do senhor professor pela correcção dos trabalhos de casa, os ditados sem erros, as cópias de bonita caligrafia, as operações aritméticas sempre bem feitas, certificadas por indesmentíveis provas dos noves, os cadernos de problemas com os resultados exactos, o senhor professor riscando sobre cada problema do caderno um grande C de certo, nenhum E de errado. E via-o a chegar a casa à hora do lanche, andava agora na quarta classe, era um rapazinho bonito que já olhava com interesse para as rapariguinhas, a beber um grande copo de leite e a comer um pão com manteiga e fiambre, e depois, à noite, após ter estudado as lições de História e de Geografia, a jantar um grande bife com um ovo a cavalo acompanhado de batatas fritas muito louras. Via-o mais adiante, no liceu, aprendendo Francês e Matemática, sempre com boas notas, o senhor reitor a chamá-la e a dizer-lhe que era ele, o seu menino, o melhor estudante do curso, que ia entrar no quadro de honra e receber um diploma numa sessão solene no ginásio. E ela a mandar fazer-lhe um fato apropriado para momento tão importante, o senhor reitor e os senhores professores na mesa onde se ia entregar o prémio, e ele a subir ao palco e a receber os aplausos de todos os colegas e suas famílias, abraçando-a depois e dizendo-lhe: “Mãe, como eu te amo!” Já com dezoito anos via-o a trabalhar num banco, e, mais tarde, profissional experiente, a dar conselhos aos clientes sobre a melhor forma de aplicarem os seus dinheiros, artes que ela não entendia, mas que sabia existirem, por alguma razão havia gente tão rica, poucos, a maioria era constituída por pobres como ela, alguns até nem conseguiam criar os filhos com dignidade.
- Minha senhora – disse o barbeiro – aqui tem o rapazinho com o cabelo cortado. Paga para a próxima, este mês não estou a levar dinheiro a crianças. E passe lá por casa para a patroa lhe dar um bocadinho da sopa do jantar. Lembre-se de que são sete sopas. Sete sopas de panelas diferentes.
Ela encarou aparvalhada a figura que lhe entregava o menino, sentiu que todos a olhavam no salão da barbearia, e teve dificuldade em perceber se tudo aquilo pertencia à realidade ou se ainda fazia parte do sonho.
D.E.
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