Há que levar ao povo aquilo de que o povo gosta.
quinta-feira, agosto 30, 2012
quarta-feira, agosto 29, 2012
terça-feira, agosto 28, 2012
CIÊNCIAS OCULTAS - OS MAGOS
Os magos das ciências ocultas da Economia estão de novo em
Lisboa. O que é que falhou nas cartas (ou nos búzios?) dos videntes da troika para
que a receita fiscal tenha sido diminuída em 3 mil milhões de euros? O insuspeito Adriano Moreira já veio falar de “fadiga
tributária”, e na universidade de Verão dos jotinhas lembrou as quatro onças de ouro que D. Afonso
Henriques prometeu pagar ao Papa, mas que, na realidade, nunca pagou. Uma
mensagem velada para tão esclarecidos jovens? Se a incompetência governamental e as ilusões neoliberais
pagassem imposto, Gaspar e Coelho seriam políticos bem sucedidos porque o país teria
um saudável superavit orçamental. Assim…
UM SONETO DE ANTERO - "IDEAL"
Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...
Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
D'um corcel e combate satisfeita...
A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...
É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...
Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
D'um corcel e combate satisfeita...
A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...
É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...
segunda-feira, agosto 27, 2012
SONETOS
Café Snack-Bar SONETOS, na mesma rua de Vila do Conde onde Antero de Quental residiu entre 1881 e 1891. A poesia também se escreve nos toldos publicitários dos estabelecimentos.
domingo, agosto 26, 2012
CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (14)
Destapo a
caixa do amor com o sobressalto de quem mexe
no mais
inseguro dos objectos. Não sei o que tem dentro,
nunca soube,
mesmo naquele tempo em que a tua boca
corria o meu
corpo e as noites não prenunciavam
nenhum gume
de sombra. Reinvento, pois, o amor:
caixa de
Pandora com os seus ventos demolidores
e as suas
praias violentas de ternura e cio,
ou sémen de
palavras apetrechadas de asas
com os olhos
glaucos duma deusa ao fundo?
Faço por
acreditar na sua verosímil bondade
com a mesma
força com que se acredita numa pedra
ou num
fruto. Mas não estou seguro de nada. Apenas
sei do corpo
com que me encontro e do cerco de luz
que não ouso
romper.
sábado, agosto 25, 2012
domingo, agosto 19, 2012
sábado, agosto 18, 2012
domingo, agosto 12, 2012
REINALDO FERREIRA (1922-1959)
Se eu nunca disse que os teus dentes |
Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.
(Poemas, 2ª edição, Lisboa, Portugália Editora, 1962, com um estudo de José Régio) |
LUÍSA COSTA GOMES (1954)
Dizem que tem mau feitio e os leitores queixam-se de nem sempre conseguirem compreender aquilo que escreve. Por mim não tenho reclamações a apresentar. Aconselho a leitura de Império do Amor.
MENTINDO
A primeira imagem que dela guardo
é leve como a da ave que inicia o voo: umas sandálias com atilhos que subiam
até meio das pernas, a saia de tecido bordado, uma blusa sob cujo pano apontava,
numa promessa oculta, o relevo de sombra dos bicos dos seios. Tinha dentes,
lábios e olhos que eram apenas dentes, lábios e olhos, e não pérolas, corais e
esmeraldas, porque, como pode ser lido num poema de Reinaldo Ferreira, coisas
não sublimam coisas e não há metáforas que cheguem para exprimir a beleza
daquilo que vemos.
Para mim, foi sempre uma
desconhecida. Nunca consegui saber o género de música de que mais gostava, o
metal das suas paixões. De livros, sim, acho que sei: folheava “Paroles” de
Jacques Prévert e lia interminavelmente as novelas de Camilo. Mais tarde, muito
mais tarde, acolheu-se a uns livrinhos de capa dura sobre rebirthing, uma
disciplina talvez esotérica, e começou a pesquisar na Internet sobre
pompoarismo, tanto quanto julgo saber uma espécie de demanda tântrica do
inverosímil ponto G.
Uma vez descobri num conto de
Luísa Costa Gomes o sentido oculto dos palíndromos, significantes que podem ser
lidos da frente para trás ou de trás para a frente sem que o seu significado se
altere: “Oír ese Río”. Cheguei a vê-la como um palíndromo muito fácil de ler, mas
isso era o que eu julgava. Percebi depois que ela iludia sempre as minhas
espertezas de leitor batido: metia mais umas letras ou umas sílabas no
conformismo lívido dos sintagmas, assim como se fosse o brinde ou a fava do
bolo-rei, e eu treslia.
Na pior das minhas fases escrevi
contos alucinados em que a dava como louca, mitómana e devassa. Noutros, mais
sensatos, ou talvez simplesmente ingénuos, lamentei que chegasse tarde a casa e
não me desse qualquer explicação, que fosse distante e fria, e tivesse amizades
secretas como as adolescentes têm diários e namoros de praia. Enchi então
centenas de páginas a seu respeito, mais sobre o que dela nunca soube do que o
que sabia ou julgava saber. À força de não a conhecer foi para mim uma
prodigiosa fonte de efabulação: todas as minhas ficções passavam por ela, como
um rio passa sempre pelas suas margens.
Agora que me morreu e nada mais
conservo que a sua memória, os retratos e uma urna de cinzas no armário da
sala, sou obrigado a repensar toda a minha forma de escrever. – Menos efabulação e mais detalhes do real são
os caminhos que terei de seguir.
Sei que vou ter outras
oportunidades, pois o tempo dá-nos couraças e levanta-nos sempre do chão.
Poderei então escrever com sinceridade, dando às palavras o significado exacto
do que é pensado e sentido. Até lá, enquanto a crise não passar, vou-me ficando
pelas histórias do costume. Mentindo.
sexta-feira, agosto 10, 2012
DÍSTICOS PARA FUTURAS HISTÓRIAS DE EDIFICAÇÃO MORAL - o quarto e último
Mentia quase sempre por omissão, e raramente por afirmação.
A mentira era nela uma arte suprema e especiosa, assim como
um soneto barroco ou uma pintura de Miró.
quinta-feira, agosto 09, 2012
DÍSTICOS PARA FUTURAS HISTÓRIAS DE EDIFICAÇÃO MORAL - o terceiro
Trocou o
pobre pelo rico, à espera de mesa farta e de lençóis de seda.
Foi
desprezada pelo rico, e agora anda à procura de outro pobre que lhe dê consolo.
DÍSTICOS PARA FUTURAS HISTÓRIAS DE EDIFICAÇÃO MORAL - o segundo
Por
des-graça do corpo ou perfeição da alma, não beneficiara do santo sacramento do
matrimónio.
Como compensação, ungiu-se da missão de casamenteira: favorecer e organizar entre as pessoas do
seu círculo muitas e boas uniões católicas.
quarta-feira, agosto 08, 2012
DÍSTICOS PARA FUTURAS HISTÓRIAS DE EDIFICAÇÃO MORAL - o primeiro
Serviu-se
das relações amorosas para triunfar na vida, o que poderá ser visto como sinal de desonestidade.
Numa coisa,
porém, foi sempre honesta: nunca abriu uma nova relação sem fechar a
anterior.
domingo, agosto 05, 2012
LAOCOONTE
"Laocoonte", pintado por El Greco, c. 1610. National Art Gallery, Washington.
Em vão alertou os troianos para os perigos do cavalo de madeira deixado pelos gregos diante das muralhas de Tróia. Um justo trucidado por um deus cruel.
sábado, agosto 04, 2012
CLÁSSICOS
Grupo escultural - "Laocoonte e seus Filhos" - cuja autoria foi atribuída por Plínio a escultores de Rodes. Segunda metade do século I a.C. Museu do Vaticano.
Laocoonte, a quem a sorte dera
ser então sacerdote de Neptuno,
imolava em altar, o mais sagrado,
um fortíssimo touro. Mas de Ténedo,
pelas extensas águas do mar calmo,
vêm duas serpentes espantosas,
e com que horror te conto o que ali houve,
serpentes que se alongam nos abismos
e parelhas avançam para a margem;
de peito levantado sobre as vagas,
de sangrenta cabeça sobre as ondas,
o corpo lhes desliza pelo mar
numa ondulada força de seus dorsos.
ser então sacerdote de Neptuno,
imolava em altar, o mais sagrado,
um fortíssimo touro. Mas de Ténedo,
pelas extensas águas do mar calmo,
vêm duas serpentes espantosas,
e com que horror te conto o que ali houve,
serpentes que se alongam nos abismos
e parelhas avançam para a margem;
de peito levantado sobre as vagas,
de sangrenta cabeça sobre as ondas,
o corpo lhes desliza pelo mar
numa ondulada força de seus dorsos.
Virgílio, Eneida, Livro II, tradução do latim de Agostinho da Silva.
sexta-feira, agosto 03, 2012
quarta-feira, agosto 01, 2012
ÁRCADES
Os Gregos e
os Latinos, que dia e noite não devemos largar das mãos, estes soberbos
originais, são a única fonte de que manam boa odes, boas tragédias e excelentes
epopeias.
Correia
Garção - nome arcádico: Córidon Erimanteu - (Lisboa, 1724 - ib., 1772), Dissertação Terceira.
segunda-feira, julho 30, 2012
"FEDRA" de Racine, um palimpsesto
Palimpsesto é, segundo o dicionário
Houaiss, um “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado para dar
lugar a outro.”
O conceito liga-se em literatura ao
de intertextualidade, a possibilidade infinita de os textos dialogarem com
outros textos. Escreveu Fernando Pessoa/Ricardo Reis: “Deve haver, no mais
pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.”
Fedra de
Racine é um desses pergaminhos em
que se escreveu sobre textos “raspados” de Eurípedes, Sófocles, Séneca e de
toda a vasta tradição oral dos antiquíssimos mitos.
Se Thomas de Quincey via o cérebro
humano como um palimpsesto (sobreposição de inumeráveis camadas de ideias,
imagens e sentimentos), Baudelaire apontava nos Paraísos Artificiais a diferença entre este palimpsesto da criação
divina e o literário: o caos fantástico e grotesco do primeiro face à
fatalidade artística e harmoniosa do segundo.
quinta-feira, julho 26, 2012
quarta-feira, julho 25, 2012
A DEUS O QUE É DE CÉSAR
"Este governo é profundamente corrupto" - D. Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas.
Diabinhos negros... Vade retro Satana!
terça-feira, julho 24, 2012
"QUE SE LIXEM AS ELEIÇÕES"
A declaração de Passos Coelho é
surpreendente e definidora da conta em que tem o povo português. Surpreendente
porque introduz no discurso político mais uma bastardia lexical (longe vai o
tempo em que os chefes da Nação se guiavam por padrões rigorosos de linguagem,
quando saíam formados por Coimbra e outras universidades prestigiadas e não por
escolas de vão de escada como as Lusíadas, as Lusófonas e outras que tais);
definidora da conta em que tem o povo que o elegeu porque admite que esse mesmo
povo possa ser capaz, naturalmente por estupidez, de não reconhecer o seu bom
trabalho ao serviço da causa pública.
Se Passos e a sua trupe estão a fazer (e
continuarão a fazer) um bom trabalho para salvar o País, se o povo o não reconhece
e vai dar os votos aos Seguros, aos Jerónimos e aos Loucãs, então é porque o povo
é estúpido ou não age como gente de bem. Pérolas a porcos, é o que Passos quer
dizer.
Só que Passos não desiste. As forças de
bloqueio em tempos invocadas pelo pior
presidente da república que Portugal já teve não o demoverão da sua missão! E
essa missão é: pagar rapidamente e até ao último cêntimo os empréstimos e juros que são
devidos à banca internacional – nem que para isso tenha de reduzir o povo à
miséria e perder as próximas eleições. De facto, que interesse pode ter uma
mísera vitória eleitoral num país pobre e atrasado se é possível aspirar a uma mais
alta carreira fora da choldra? No FMI, no BCE, em Berlim, Frankfurt ou Nova
Iorque há lugares que esperam pelos serventuários do capital financeiro
internacional. Aqueles que, com as suas políticas, mandam o povo para o
desemprego, nunca conhecerão em si semelhante flagelo. Portanto, QUE SE LIXEM AS
ELEIÇÕES!
domingo, julho 22, 2012
SÃO PAULO, 22 DE JULHO DE 2010 - HÁ DOIS ANOS, NO OUTRO TEMPO
Museu da Língua Portuguesa
No mercado: o peixe
O almoço do bandeirante
Pessoa no Museu da Língua Portuguesa
A catedral e o apóstolo
Autobiografices
sábado, julho 21, 2012
ENQUANTO NÃO CHEGAM OS JOGOS OLÍMPICOS...
A atleta australiana Michelle Jenneke - 100 m. barreiras - nos Mundiais de Juniores em Barcelona.
Um aquecimento perfeito e uma grande prova.
quinta-feira, julho 19, 2012
NA ENCRUZILHADA
Álvaro Cunhal (1913-2005)
A humanidade chegou a uma
encruzilhada. O momento não é favorável a longas hesitações. Cada qual tem que
escolher um caminho: para um lado ou para o outro.
(…)
Aos homens cabe escolher e decidir.
(…)
Alguns desses homens afastam-se
prudentemente, monologando acerca dos horrores da luta travada.
(…)
Afinal, essa fuga traduz uma escolha
em frente da encruzilhada. Porque esses homens não se calam; antes aconselham
os outros a irem ter com eles. São os cansados que pregam o cansaço. Os
desalentados que pregam o desalento. Os solitários que pregam a solidão.
(…)
e ajeitam-se na incómoda posição de
José Régio:
“Vergo a cabeça sobre o peito
Concentro os olhos sobre o umbigo”
(Encruzilhadas
de Deus, Mitologia)
(…)
Entretanto esses solitários vão
cantando o próprio umbigo, esquecendo que, assim, se servem do canto para
servir os seus fins. Pois
… “bem sei que sou o meu único fim”
(José Régio – id., Poema do Silêncio)
(…)
Precisamente porque se está numa
encruzilhada; precisamente porque a sorte de milhares de homens depende do
caminho que será seguido; as atenções de todos aqueles que sentem a gravidade e
importância (…) dos momentos presentes,
se concentram na possível saída do embaraço. Homens que assim sintam, apreciam
e julgam as “obras do espírito” (e em particular as obras de arte) pelo que
elas podem influir na direcção futura da humanidade. Da mesma forma, artistas
que assim sintam, fazem naturalmente reflectir nas suas produções artísticas as
preocupações que os obcecam. A única diferença entre estes artistas e os
artistas solitários é que, enquanto a obcecação destes é o próprio umbigo, a
daqueles é a sorte da humanidade.
(…)
--- ÁLVARO CUNHAL, Seara Nova, nº 615 de 27-5-1939, pp.
285-287.
quarta-feira, julho 11, 2012
JOSÉ RÉGIO (1901-1969) E O SEU REGATO DE NARCISO
... Não porque não viajasse! O mundo
é vasto
Mas repete-se, e é fácil esgotá-lo…
Se uma vez viste o céu com olhar
casto,
Que outro céu poderá ultrapassá-lo?
(…)
E em tudo, o que vi eu? Um homem!:
eu;
Eu…, – que alonguei meu metro e tal
de altura
Às infinitas amplidões do céu
E ao ventre a arder da Madre Terra obscura
;
(…)
Que o nada do meu nada é que me é
tudo!
(…)
Na voz do mar só me ouço a mim, que
choro;
Nos lamentos do vento, a mim me
escuto;
Sei ver o luto e a dor…, mas que
deploro
Na alheia dor senão meu próprio luto?
(…)
Eis-me…!... Mas quando, como, onde,
buscando
No meu regato de Narciso (…)
(…)
Nesta ora adoração do próprio umbigo
(…)
Do poema "Sarça Ardente", último livro de As Encruzilhadas de Deus
segunda-feira, julho 09, 2012
AS GORDURAS DO ESTADO E O DÉFICE
Se os
economistas e outros mestres do oculto não conseguem resolver o problema,
recorram a nutricionistas ou comprem as pastilhas na farmácia. Aspirem as
gorduras, e não venham morder mais no músculo de quem trabalha.
domingo, julho 08, 2012
sexta-feira, julho 06, 2012
PALÁCIO RATTON - Uma jóia arquitectónica
Construído entre 1816 e 1822, o Palácio Ratton deve o nome a Diogo Ratton (1765-1822), seu primeiro proprietário, um importante
industrial descendente de empreendedores que vieram para Portugal a coberto da
política activa de desenvolvimento económico prosseguida pelo Marquês de
Pombal.
Em estilo neoclássico de influência francesa, constitui um belo
exemplar da arquitectura lisboeta.
Alberga hoje o Tribunal Constitucional, instituição que, segundo
se diz, a troika pretende
avaliar numa das suas próximas deslocações a Lisboa.
quarta-feira, junho 27, 2012
"Quizás Quizás Quizás", Nat King Cole
Roubado a "O Último Abencerragem". Uma canção muito filosófica.
quinta-feira, junho 21, 2012
MULHER NA PRAIA
Por que
marés de algas chegas até mim
à flor da
praia? De que ilhas vens, por correntes e ventos
que desconheço? Estendo a mão
para te apanhar, como a uma concha
estriada de luz sobre a areia húmida.
Mas não chego lá.
segunda-feira, junho 18, 2012
LUZ COADA POR FERROS
Leio o “Discurso Preliminar” que precede as Memórias do Cárcere. São cerca de trinta
páginas que revelam, para além da reconhecida imaginação novelística, o pendor
autobiográfico e memorialista da escrita de Camilo.
“O criminoso é fácil de conhecer, porque tem buracos na cara.” – Assim rezava uma carta, saída de fonte da Justiça, que intimava os aguazis a deterem o adúltero nas Caldas das Taipas.
Em Amarante, por onde passara o fugitivo, são-lhe pedidos versos para as festas do Coração de Maria da irmandade de S. Gonçalo.
“– Queríamos uns versinhos para as cavalhadas do Coração de Maria.”
“ – Pois o Coração de Maria é festejado com cavalhadas em Amarante!? Conte-me isso, mestre. Como é que a irmandade mete cavalos e poetas na sua devoção?”
Pinto de Magalhães e Fanny Owen não são esquecidos: “Vi agora os retratos de ambos. Sempre que os contemplo, creio que me falam e dizem: ‘E tu vives ainda! (…)’.”
As Memórias do Cárcere foram escritas por Camilo “na convalescença duma grande enfermidade moral” (prefácio da segunda edição). Foram 384 dias que o escritor romântico passou na cadeia da Relação do Porto (em regime de prisão não muito severo, diga-se), conhecendo homicidas, ladrões, moedeiros falsos e outras castas de delinquentes. Escreveu sobre eles talvez com mais imaginação que preocupação realista. E também sobre si, memórias de si mesmo, autobiografia: no capítulo XII evoca os amigos que o não esqueceram durante o longo tempo de provação; e no seguinte refere o encontro fortuito com a guerrilha miguelista do tenente Milhundres, quando regressava de Coimbra a Vila Real, na companhia de um colega, por a universidade ter sido encerrada devido à revolta da Patuleia.
A luz que entrava da cadeia da Relação do Porto era uma “Luz Coada por Ferros”, titulo do livro de Ana Plácido, também ela sujeita aos rigores da reclusão. Uma frase em tudo camiliana.
“O criminoso é fácil de conhecer, porque tem buracos na cara.” – Assim rezava uma carta, saída de fonte da Justiça, que intimava os aguazis a deterem o adúltero nas Caldas das Taipas.
Em Amarante, por onde passara o fugitivo, são-lhe pedidos versos para as festas do Coração de Maria da irmandade de S. Gonçalo.
“– Queríamos uns versinhos para as cavalhadas do Coração de Maria.”
“ – Pois o Coração de Maria é festejado com cavalhadas em Amarante!? Conte-me isso, mestre. Como é que a irmandade mete cavalos e poetas na sua devoção?”
Pinto de Magalhães e Fanny Owen não são esquecidos: “Vi agora os retratos de ambos. Sempre que os contemplo, creio que me falam e dizem: ‘E tu vives ainda! (…)’.”
As Memórias do Cárcere foram escritas por Camilo “na convalescença duma grande enfermidade moral” (prefácio da segunda edição). Foram 384 dias que o escritor romântico passou na cadeia da Relação do Porto (em regime de prisão não muito severo, diga-se), conhecendo homicidas, ladrões, moedeiros falsos e outras castas de delinquentes. Escreveu sobre eles talvez com mais imaginação que preocupação realista. E também sobre si, memórias de si mesmo, autobiografia: no capítulo XII evoca os amigos que o não esqueceram durante o longo tempo de provação; e no seguinte refere o encontro fortuito com a guerrilha miguelista do tenente Milhundres, quando regressava de Coimbra a Vila Real, na companhia de um colega, por a universidade ter sido encerrada devido à revolta da Patuleia.
A luz que entrava da cadeia da Relação do Porto era uma “Luz Coada por Ferros”, titulo do livro de Ana Plácido, também ela sujeita aos rigores da reclusão. Uma frase em tudo camiliana.
CAMILO
CASTELO BRANCO, Mémórias do Cárcere,
fixação do texto e prefácio de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 2001.
sábado, junho 16, 2012
BREVE APONTAMENTO SOBRE ARTE POÉTICA
Há
contentamentos nas minhas noites que se riem
da claridade
dos dias.
Eu sei que
não devia dizer isto no poema,
a voz tão
próxima do eu que escreve, designadanos compêndios como sujeito lírico, e tentar,
segundo o cânone da poética moderna, a despersonalização
ou o fingimento adequados aos fins em vista, pois o poeta
deve falar de si, sim, mas com a máscara de outro.
Porém, como
renunciar ao nítido perfil do sonho?
Como não
falar das mulheres que todas as noitespassam pela minha cama,
algumas que mal conheço, outras que conheço bem de mais:
um nu deitado de Modigliani, a Ester que vejo entrar no banho
no quadro luminoso de Chassériau,
o mármore branco de corpo feminino
com que me deparei em certa tarde numa sala do museu de Orsay?
Sigo ao
contrário da norma e pelo voo do sonho.
No cume da
noite
abraço-me ao corpo que dorme comigo, abro-lhea nuvem lúcida do seio
e respiro-o doridamente
até que a manhã desfaça o encanto.
sexta-feira, junho 15, 2012
QUASE EPIGRAMA
Tudo podia
ter acontecido de outra maneira, dizes
com o desencanto
de quem chega ao fim dum romancee não se conforma com o desfecho da história.
Não sei se
sabes, mas os romancistas lidam arduamente
com as
personagens que criam. Muitas vezes, contra
tudo o que esperam, são elas que galopam os corcéis da fábula,
que tomam conta dos fios da trama.
Que podias
tu fazer, na tua ingénua simplicidade,
para
segurares o curso da história que te meteste a escrever? Onde tinhas o tear para urdir as ficções?
Onde estava o modelo que devias seguir?
Fizeste-te personagem
trágica dum romance fechado
e nenhum deus ex machina veio em teu auxílio.
quinta-feira, junho 14, 2012
quarta-feira, junho 13, 2012
domingo, junho 03, 2012
CAROLINA E A RAZÃO
Florival Aureliano tinha um
caderno de argolas, assim do tamanho de um livro grande, em que ia anotando
poemas, impressões de leituras, ditos pitorescos que ouvia nas ruas e nos
transportes públicos. Tive o privilégio de ver esse caderno ao fim da tarde do
dia 6 de Junho de 2010, sentado com o seu detentor num café da Avenida de
Berna, ali mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, enquanto fazia
horas para o jantar de aniversário duma amiga de infância, Maria Carolina, por
quem sempre tive um certo fraquinho e que a rapaziada brava costumava arreliar
com aquela conhecida canção:
A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem.
Tem um lagarto pintado
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem.
O dono do caderno de argolas era
um tipo um bocado estranho, de idiossincrasias raras. Nunca saía à noite, mesmo
no Verão, sem enfiar pela cabeça um grosso pulôver; só bebia cerveja morna e
preferia o vinho tinto ao branco; gostava de mulheres inacessíveis; e se algum
homem lhe punha a mão afectuosa sobre o ombro tomava-o um arrepio de nervos
capaz de produzir um efeito trágico. Sabia-se que tinha medo de adoecer e que era
vagamente homofóbico.
Uma nota curiosa, logo nas primeiras
páginas do caderno, referia as perseguições de Diocleciano na
civitas de Olisipo (anos 303 a 305) e os mártires Máximo, Severo e Júlia, o que demonstra o
interesse do anotador por assuntos históricos e religiosos. Seguia-se a
transcrição duma passagem da alegoria da Caverna, extraída de Platão, um poema
do próprio Florival a uma sua amada que simplesmente o ignorava, e uma conversa
entre duas comadres ouvida no eléctrico da Graça:
“- Pois nem queira saber ao que
aquilo chegou.
- Alguma coisa má, comadre?
- Má? Se o é! Uma pouca vergonha! Descobri que ele é homem-sexual.”
Para além destes apontamentos
esparsos, frutos da poliédrica inquietação de Florival Aureliano, o
que mais me entusiasmou foi um conjunto
de páginas preenchidas com quadros de dupla entrada, uma espécie de fichas para
um estudo sociológico inédito. Na horizontal, indicação de
lugares, datas e horas correspondentes a observações realizadas; na vertical,
duas simples colunas: “loiras falsas” e “loiras verdadeiras”.
Apresento um exemplo:
Data,
local e hora da observação
|
Loiras falsas
|
Loiras verdadeiras
|
15 de Maio, Café Bijou, entre as 10 e
as 11 horas
|
3
|
1
|
16 de Maio, Jardim de Oeiras,
entre as 18 e as 19 horas
|
7
|
0
|
Florival explicou-me tudo. Há muito
que se interessava pela cor dos cabelos das mulheres. Tinha como quase certo
que em Portugal haveria noventa e cinco por
cento de mulheres morenas (de cabelos pretos ou castanhos) e apenas cinco por
cento de loiras. As ruivas nem dava para considerar, tão exíguo era entre nós esse
tipo feminino, embora se percebesse que as mesmas exerciam sobre si algum
fascínio: havia no caderno um poema de Florival com o sugestivo título de “A
uma cenourinha bonita que passa por mim sem olhar”. A questão que se colocava é
que já não se conseguia saber quais eram as loiras e as morenas, tais os
artifícios capilares em uso, chegando-se ao cúmulo de não se excluir a hipótese
de também algumas loiras autênticas, por
razões que a própria razão desconhece, poderem pintar os cabelos de preto ou
castanho. Era a confusão completa e Florival tinha resolvido tirar tudo a limpo.
Deixando de parte a questão das falsas morenas, atirou-se às loiras, autênticas
e fingidas, e assim encheu mais de trinta páginas dos seus gloriosos hypomnemata. Este termo, aqui lançado como prova da vasta
intelectualidade do escrevente, foi recuperado por Michel Foucault no século
XX, correspondendo aos apontamentos tomados em pequenos cadernos pelos gregos
letrados da Antiguidade. Para que se saiba e se pasme.
Como é que Florival estatuía a condição
verdadeira ou falsa das loiras? Ora aí é que está o busílis da questão. Posso adiantar
que era a partir de demoradas e penetrantes observações do objecto em análise:
comparação com os pêlos das sobrancelhas ou dos braços, se os havia, com o tom da pele
e a cor dos olhos. Mais longe não podia ir, embora talvez desejasse, mas mesmo
assim havia os seus riscos. Uma jovem que se sentava com uma amiga, numa manhã
de sábado, num café do centro comercial,
levantou-se abruptamente ao fim de quinze minutos de assédio visual e disse
para quem a quis ouvir:
“ - O velho deve ser tarado! Vamos mas é embora
que estou farta de anormais”.
O observante, impávido, anotou:
“loira falsa”. Outra vez, no mesmo café, uma senhora de cerca de cinquenta anos,
por sinal muito desfavorecida de beleza, loira igualmente espúria, mandou-lhe
um papelinho enrolado com um número de telefone, mas Florival fez-se sabiamente
desentendido, limitando-se a anotar o resultado da sua observação.
Episódio nada agradável
registou-se com uma loira genuína que seguia acompanhada do marido no comboio
para Lisboa. Florival passou Paço d´Arcos, Caxias e Algés com o olho posto na
mulher. Quando chegou à estação do Cais do Sodré, o varão, enciumado,
acercou-se dele e quase lhe deitou as mãos aos gorgomilos. O observante
apoucou-se perante o ímpeto do capanga, justamente receoso que lhe dentassem a
febra com os olhos. Aguentou os impropérios que o outro lhe dirigiu e
alegrou-se interiormente: já tinha observado e anotado no seu caderno o brilho
veraz daqueles cabelos de oiro.
Fiquei até ao cair da noite a percorrer
as páginas do caderno, a ouvir as explicações de Florival. Este, entretanto, mandara
vir mais uma cerveja morna, mastigara um rissol de camarão, não sem que antes
perguntasse ao empregado se o marisco era de confiança. Só depois é que me
contou, em tom lamentoso, o episódio da enfermeira, uma loura assim-assim com
quem aprazara vários encontros sem resultados palpáveis. Era fascinante escutar
Florival e perceber a singularidade que emanava da sua pessoa.
Às nove e tal dei por mim. Corri
para o restaurante onde se realizava o jantar de aniversário de Maria Carolina.
Encontrei-a furibunda pelo meu atraso, tendo ao seu lado o execrável António
Abel, meu rival de sempre, com quem ela fugira em certo Verão para uma semana
de férias escaldantes na Île de Ré. Engoli contrafeito os bifinhos com
cogumelos, abusei do tinto de Pegões, vinguei-me da privação no pudim caseiro e
sorvi sem moderação uma aguardente envelhecida em cascos de carvalho.
Parecia-me que o António Abel, assim como quem não quer a coisa, palpava as coxas de
Maria Carolina enquanto davas vivas à aniversariante. Enfim, uma noite para
esquecer.
Guardei desse 6 de Junho a
memória da conversa solar com Florival Aureliano. Nunca mais soube nada dele. Desapareceu
das tertúlias que frequentávamos como quem já não cabe nelas e se eleva ao
empíreo da inteligência e do pensamento audaz, talvez também do sofrimento e da
solidão, a única forma de superarmos as nossas limitações. Não voltei à festa
de aniversário de Carolina: à de 2011 e, seguramente, também não irei à que se
fará este ano. Conservo dela as três cartas que há muito tempo me escreveu: uma
delas para dizer que não esperasse nada de si, que continuaria amiga, mas que
eu não era homem que pudesse servir-lhe. Por muito que me custe admitir, acho que estava
cheia de razão.
sábado, junho 02, 2012
sexta-feira, junho 01, 2012
TRABALHEM, MALANDROS!
Trabalhem e tirem o país do buraco em que o meteu a classe
política – os Relvas, os Sócrates, os Passos e os Cavacos. Trabalhem,
incompetentes, e não venham com
histórias da carochinha para justificar o injustificável: 36,6% de desemprego
jovem, 15,2% de desemprego em todas as faixas etárias, 1 200 000 desempregados
se se considerar os que já desistiram de procurar trabalho e que por isso não
entram nas estatísticas.
Há um ano, um agora ministro que tenta passar despercebido
aparecia indignado nos telejornais de cada vez que uma velhinha era assaltada
na rua pelo processo do esticão. Hoje assaltam-se bombas de gasolina à mão
armada, atacam-se à bomba as caixas multibanco, as máfias andam em roda livre –
mas o tal ministro anda mais calado que uma estátua de pedra.
Trabalhem, malandros! Não inventem desculpas! Ou então digam que não
são capazes e vão tratar da vidinha! Não tenham medo que não ficam no
desemprego como o cidadão comum: há sempre
uma colocação internacional ou a empresa dum amigo à vossa espera.
quarta-feira, maio 16, 2012
segunda-feira, maio 07, 2012
NO PIANO BAR
Gosto muito de cama, disse ela, a meio de uma conversa banal sobre um romance
de Philip Roth. Distraído como andava, ele começou por pensar que se tratava da
fala de alguma personagem, ali trazida à conversa para mais viva representação
da trama romanesca. Mas não, logo percebeu que não era possível, que a amiga falava
na própria voz, e, como homem sério não tem ouvidos, fez-se desentendido, tricando
o caju e escorrendo a cerveja, enquanto o pianista martelava um “Summertime” angustiado
e frouxo por entre espirais de fumo que
morriam nos exaustores cravados no tecto.
Estava cansado e com vontade de dormir. Passara a tarde de sábado em
Cascais, numa tertúlia vagamente literária, a que se seguira um jantar pacato com
um amigo. Depois, fizera a viagem de comboio até Lisboa, as luzes da margem
escorrendo para o rio com o perfil luminoso da velha ponte ao fundo, e agora ali estava, duas e tal da manhã, com uma
cerveja fria na mesa em frente de uma mulher quente que lia Philip Roth e
gostava muito de cama.
Há muito que estaria em casa se o telefone não tivesse tocado pelas dez
e tal. Sim, estou em Lisboa, acabei de sair do comboio no Cais do Sodré. Que
coincidência, retorquiu ela, eu estou na Brasileira, é só subir um pouco. De
aqui a dez minutos, então, anuiu ele.
Andava muito ocupado com a escritura de um romance. Já ia em trinta e
duas páginas, nunca tinha chegado tão longe, mas começava a baralhar-se com os desígnios das
personagens e os contornos da história, como se a vida nunca lhe tivesse ensinado
nada e nada conseguisse tirar dela para encher as suas fracassadas ficções.
Queria contar a história de dois amantes, mas não percebia nada de tal matéria.
O escritor só fala do que conhece, diz-se, e todas as relações amorosas lhe
tinham passado ao lado, como se apenas as tivesse vivido nas margens do rio (torrencial)
do amor, sem nunca chegar a meter os pés na água. A negação de Heraclito. O
telefonema da amiga quase lhe soube bem, quem sabe se não seria um empurrão
para conseguir sair da melancolia letárgica em que o seu romance se encontrava.
A amiga não era má de todo. Bons seios, boas pernas, um rosto
razoavelmente conservado à custa de muito cremes hidratantes e especiosos
esteticismos. Poderia vê-la até como uma mulher sensual, naquela acepção mais óbvia
da palavra, se ele não andasse tão arredado de vertigens sensualistas e mais
dado a arroubos contemplativos da beleza pura. E lá foi falando de Philip Roth,
que mal conhecia, dos seus romances e ensaios, grande virtude e prova de inteligência
é conseguirmos falar de livros que nunca
lemos.
Ainda tentou desviar a conversa com
impertinentes referências ao romance psicológico, à lírica barroca, à poesia
licenciosa de Catulo e às odes de Horácio. Ela julgou que estava a topá-lo, Philip
Roth ali à mão, e passou ao ataque: gosto muito de cama. Ele esmerdou-se, palavra que não deve vir no
dicionário Houaiss mas de que qualquer jongleur
do amor conhece bem o sentido.
O gajo é parvo, pensou ela, ou então já não aguenta uma noite com uma
mulher. Olhou para o relógio largo que usava no braço direito, fechou a pequena
cigarreira prateada, ajeitou a saia verde orlada de preto, sacudiu o colar,
afagou o peito como se buscasse no gesto uma ínvia compensação de algo, e fez
questão de pagar a conta. Fui eu que convidei, disse.
Saíram do piano bar. Ele acompanhou-a ao parque de estacionamento,
apanhou um táxi e rumou a casa. Apetecia-lhe dormir, descansar até altas horas
de domingo. À sua maneira, também ele gostava muito de cama.
quinta-feira, maio 03, 2012
CANCIONEIRO DE JOSÉ RAFAEL (11)
Sinto que passaste por mim como um pequeno rio
de que apenas ouvi o murmúrio, ou como a música
dum coreto distante trazida no bojo dos ventos
em entrecortados soluços. Nunca soube nada de ti,
nem das ciências inexactas do amor. Sei, no entanto,
que me enchias o tempo duma alegria breve,
eternizada de cada vez que chegavas a casa
com a singela disposição dos teus modos
no sorriso do olhar e da voz, no anel da tua cintura
que o fogo-fátuo da minha carne nunca tangeu
na plenitude. Por isso escrevo o poema deste tempo
de reencontro com o que nunca fui, nesta sala
povoada de livros, pó e algumas sombras,
no prazer quase mórbido da tua ausência.
de que apenas ouvi o murmúrio, ou como a música
dum coreto distante trazida no bojo dos ventos
em entrecortados soluços. Nunca soube nada de ti,
nem das ciências inexactas do amor. Sei, no entanto,
que me enchias o tempo duma alegria breve,
eternizada de cada vez que chegavas a casa
com a singela disposição dos teus modos
no sorriso do olhar e da voz, no anel da tua cintura
que o fogo-fátuo da minha carne nunca tangeu
na plenitude. Por isso escrevo o poema deste tempo
de reencontro com o que nunca fui, nesta sala
povoada de livros, pó e algumas sombras,
no prazer quase mórbido da tua ausência.
"CAPITÃES DA AREIA"
Do filme de Cecília Amado
Museu do neo-realismo em Vila Franca de Xira
Romance
engajado e militante duma literatura que influenciou decisivamente o
neo-realismo português, conforme pode ser apreendido na célebre polémica de
1939, nas páginas da “Seara Nova”, entre José Régio e o jovem Álvaro Cunhal. Já houve quem notasse a correspondência de “Esteiros”
de Soeiro Pereira Gomes (publicado em 1941), um romance de meninos operários,
com a narrativa dos meninos da rua de Salvador da Bahia: Gineto no Ribatejo e
Pedro Bala na região nordestina do Brasil. Homens que
nunca foram meninos ou meninos que sempre foram homens, a contraditória disjuntiva
que exprime uma opressão social e política que teve lugar de ambos os lados do
Atlântico. Por isso é bom ler Jorge Amado no ano do seu centenário e tentar conhecer
o neo-realismo português cujo romance inaugural – “Gaibéus” de Alves Redol – se
publicou em 1939, dois anos depois de “Capitães de Areia”.
quarta-feira, maio 02, 2012
ENSAIO SOBRE A CUPIDEZ
Loja Pingo Doce da Av. Almirante Reis, de portas fechadas e sob aparato policial, à hora em que desfilavam os manifestantes do 1º de Maio.
As cenas reais bem poderiam
pertencer a um romance que Saramago nunca escreveu, mas que seria no género de
“Ensaio sobre a Cegueira” ou “Ensaio sobre a Lucidez”: uma turba ávida,
descontrolada, lançando-se sobre as prateleiras dos supermercados para
beneficiar de um desconto de metade do preço nos produtos adquiridos. Na
voragem cúpida, levam o que precisam e o que não precisam, porque o importante
é atingir o valor mínimo que dá direito ao desconto. Os gerentes dos
supermercados exultam, os clientes grunhem e a polícia é chamada para serenar
os ânimos.
E assim queimam um dia de
descanso, que daria para passear ou ir ao cinema, em longas filas de espera
para os talhos e peixarias, roubando dos carrinhos dos competidores produtos já
esgotados nas prateleiras, envolvendo-se em desacatos, soltando impropérios, carregando
as bagageiras dos automóveis para logo voltarem de olhos baços ao rodízio
consumista.
O gerente duma loja de Sintra,
entrevistado pela televisão, dizia que os clientes tinham respondido
positivamente ao aproveitarem a boa oportunidade de negócio que se lhes
deparara. E pelo negócio lá se foi o ócio, pela picanha e pelo uísque de 12
anos perderam um feriado, trocaram o ar fresco e luminoso do dia pelas luzes
das lojas e o delírio dos escaparates.
Tudo isto enquanto o
primeiro-ministro dizia tranquilamente, numa assembleia do seu partido, que os portugueses deveriam preparar-se para
níveis de desemprego ainda mais altos, para maior austeridade. Esta gente que irá suportar mais desemprego tem
a austeridade de que precisa e no poder os governantes que merece. É sabido que
nas próximas eleições vão tirá-los de lá, não por convicções políticas, mas por
simples ganância: porque lhes foram aos ordenados e ao preço do bife. Se o merceeiro Alexandre Soares dos Santos viesse
a candidatar-se, teria fortes probabilidades de ganhar.
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