domingo, agosto 12, 2012

MENTINDO

A primeira imagem que dela guardo é leve como a da ave que inicia o voo: umas sandálias com atilhos que subiam até meio das pernas, a saia de tecido bordado, uma blusa sob cujo pano apontava, numa promessa oculta, o relevo de sombra dos bicos dos seios. Tinha dentes, lábios e olhos que eram apenas dentes, lábios e olhos, e não pérolas, corais e esmeraldas, porque, como pode ser lido num poema de Reinaldo Ferreira, coisas não sublimam coisas e não há metáforas que cheguem para exprimir a beleza daquilo que vemos.
Para mim, foi sempre uma desconhecida. Nunca consegui saber o género de música de que mais gostava, o metal das suas paixões. De livros, sim, acho que sei: folheava “Paroles” de Jacques Prévert e lia interminavelmente as novelas de Camilo. Mais tarde, muito mais tarde, acolheu-se a uns livrinhos de capa dura sobre rebirthing, uma disciplina talvez esotérica, e começou a pesquisar na Internet sobre pompoarismo, tanto quanto julgo saber uma espécie de demanda tântrica do inverosímil  ponto G.
Uma vez descobri num conto de Luísa Costa Gomes o sentido oculto dos palíndromos, significantes que podem ser lidos da frente para trás ou de trás para a frente sem que o seu significado se altere: “Oír ese Río”. Cheguei a vê-la como um palíndromo muito fácil de ler, mas isso era o que eu julgava. Percebi depois que ela iludia sempre as minhas espertezas de leitor batido: metia mais umas letras ou umas sílabas no conformismo lívido dos sintagmas, assim como se fosse o brinde ou a fava do bolo-rei, e eu treslia.
Na pior das minhas fases escrevi contos alucinados em que a dava como louca, mitómana e devassa. Noutros, mais sensatos, ou talvez simplesmente ingénuos, lamentei que chegasse tarde a casa e não me desse qualquer explicação, que fosse distante e fria, e tivesse amizades secretas como as adolescentes têm diários e namoros de praia. Enchi então centenas de páginas a seu respeito, mais sobre o que dela nunca soube do que o que sabia ou julgava saber. À força de não a conhecer foi para mim uma prodigiosa fonte de efabulação: todas as minhas ficções passavam por ela, como um rio passa sempre pelas suas margens.
Agora que me morreu e nada mais conservo que a sua memória, os retratos e uma urna de cinzas no armário da sala, sou obrigado a repensar toda a minha forma de escrever. –  Menos efabulação e mais detalhes do real são os caminhos que terei de seguir.
Sei que vou ter outras oportunidades, pois o tempo dá-nos couraças e levanta-nos sempre do chão. Poderei então escrever com sinceridade, dando às palavras o significado exacto do que é pensado e sentido. Até lá, enquanto a crise não passar, vou-me ficando pelas histórias do costume. Mentindo.

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