A primeira imagem que dela guardo
é leve como a da ave que inicia o voo: umas sandálias com atilhos que subiam
até meio das pernas, a saia de tecido bordado, uma blusa sob cujo pano apontava,
numa promessa oculta, o relevo de sombra dos bicos dos seios. Tinha dentes,
lábios e olhos que eram apenas dentes, lábios e olhos, e não pérolas, corais e
esmeraldas, porque, como pode ser lido num poema de Reinaldo Ferreira, coisas
não sublimam coisas e não há metáforas que cheguem para exprimir a beleza
daquilo que vemos.
Para mim, foi sempre uma
desconhecida. Nunca consegui saber o género de música de que mais gostava, o
metal das suas paixões. De livros, sim, acho que sei: folheava “Paroles” de
Jacques Prévert e lia interminavelmente as novelas de Camilo. Mais tarde, muito
mais tarde, acolheu-se a uns livrinhos de capa dura sobre rebirthing, uma
disciplina talvez esotérica, e começou a pesquisar na Internet sobre
pompoarismo, tanto quanto julgo saber uma espécie de demanda tântrica do
inverosímil ponto G.
Uma vez descobri num conto de
Luísa Costa Gomes o sentido oculto dos palíndromos, significantes que podem ser
lidos da frente para trás ou de trás para a frente sem que o seu significado se
altere: “Oír ese Río”. Cheguei a vê-la como um palíndromo muito fácil de ler, mas
isso era o que eu julgava. Percebi depois que ela iludia sempre as minhas
espertezas de leitor batido: metia mais umas letras ou umas sílabas no
conformismo lívido dos sintagmas, assim como se fosse o brinde ou a fava do
bolo-rei, e eu treslia.
Na pior das minhas fases escrevi
contos alucinados em que a dava como louca, mitómana e devassa. Noutros, mais
sensatos, ou talvez simplesmente ingénuos, lamentei que chegasse tarde a casa e
não me desse qualquer explicação, que fosse distante e fria, e tivesse amizades
secretas como as adolescentes têm diários e namoros de praia. Enchi então
centenas de páginas a seu respeito, mais sobre o que dela nunca soube do que o
que sabia ou julgava saber. À força de não a conhecer foi para mim uma
prodigiosa fonte de efabulação: todas as minhas ficções passavam por ela, como
um rio passa sempre pelas suas margens.
Agora que me morreu e nada mais
conservo que a sua memória, os retratos e uma urna de cinzas no armário da
sala, sou obrigado a repensar toda a minha forma de escrever. – Menos efabulação e mais detalhes do real são
os caminhos que terei de seguir.
Sei que vou ter outras
oportunidades, pois o tempo dá-nos couraças e levanta-nos sempre do chão.
Poderei então escrever com sinceridade, dando às palavras o significado exacto
do que é pensado e sentido. Até lá, enquanto a crise não passar, vou-me ficando
pelas histórias do costume. Mentindo.
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