domingo, junho 03, 2012

CAROLINA E A RAZÃO

Florival Aureliano tinha um caderno de argolas, assim do tamanho de um livro grande, em que ia anotando poemas, impressões de leituras, ditos pitorescos que ouvia nas ruas e nos transportes públicos. Tive o privilégio de ver esse caderno ao fim da tarde do dia 6 de Junho de 2010, sentado com o seu detentor num café da Avenida de Berna, ali mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, enquanto fazia horas para o jantar de aniversário duma amiga de infância, Maria Carolina, por quem sempre tive um certo fraquinho e que a rapaziada brava costumava arreliar com aquela conhecida canção:
A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem.
O dono do caderno de argolas era um tipo um bocado estranho, de idiossincrasias raras. Nunca saía à noite, mesmo no Verão, sem enfiar pela cabeça um grosso pulôver; só bebia cerveja morna e preferia o vinho tinto ao branco; gostava de mulheres inacessíveis; e se algum homem lhe punha a mão afectuosa sobre o ombro tomava-o um arrepio de nervos capaz de produzir um efeito trágico. Sabia-se que tinha medo de adoecer e que era vagamente homofóbico.
Uma nota curiosa, logo nas primeiras páginas do caderno, referia as perseguições de Diocleciano  na civitas de Olisipo (anos 303 a 305) e os mártires Máximo, Severo e Júlia, o que demonstra o interesse do anotador por assuntos históricos e religiosos. Seguia-se a transcrição duma passagem da alegoria da Caverna, extraída de Platão, um poema do próprio Florival a uma sua amada que simplesmente o ignorava, e uma conversa entre duas comadres ouvida no eléctrico da Graça:
“- Pois nem queira saber ao que aquilo chegou.
- Alguma coisa má, comadre?
- Má? Se o é! Uma pouca vergonha! Descobri que ele é homem-sexual.”
Para além destes apontamentos esparsos, frutos da poliédrica inquietação de Florival Aureliano, o que mais me entusiasmou  foi um conjunto de páginas preenchidas com quadros de dupla entrada, uma espécie de fichas para um estudo sociológico inédito. Na horizontal, indicação de lugares, datas e horas correspondentes a observações realizadas; na vertical, duas simples colunas: “loiras falsas” e “loiras verdadeiras”.
Apresento um exemplo:
Data, local e hora da observação
Loiras falsas
Loiras verdadeiras
15 de Maio, Café Bijou, entre as 10 e as 11 horas
3
1
16 de Maio, Jardim de Oeiras,
entre as 18 e as 19 horas
7
0
Florival explicou-me tudo. Há muito que se interessava pela cor dos cabelos das mulheres. Tinha como quase certo que em Portugal  haveria noventa e cinco por cento de mulheres morenas (de cabelos pretos ou castanhos) e apenas cinco por cento de loiras. As ruivas nem dava para considerar, tão exíguo era entre nós esse tipo feminino, embora se percebesse que as mesmas exerciam sobre si algum fascínio: havia no caderno um poema de Florival com o sugestivo título de “A uma cenourinha bonita que passa por mim sem olhar”. A questão que se colocava é que já não se conseguia saber quais eram as loiras e as morenas, tais os artifícios capilares em uso, chegando-se ao cúmulo de não se excluir a hipótese de também algumas loiras  autênticas, por razões que a própria razão desconhece, poderem pintar os cabelos de preto ou castanho. Era a confusão completa e Florival tinha resolvido tirar tudo a limpo. Deixando de parte a questão das falsas morenas, atirou-se às loiras, autênticas e fingidas, e assim encheu mais de trinta páginas dos  seus gloriosos hypomnemata. Este termo, aqui lançado como prova da vasta intelectualidade do escrevente, foi recuperado por Michel Foucault no século XX, correspondendo aos apontamentos tomados em pequenos cadernos pelos gregos letrados da Antiguidade. Para que se saiba e se pasme.
Como é que Florival estatuía a condição verdadeira ou falsa das loiras? Ora aí é que está o busílis da questão. Posso adiantar que era a partir de demoradas e penetrantes observações do objecto em análise: comparação com os pêlos das sobrancelhas  ou dos braços, se os havia, com o tom da pele e a cor dos olhos. Mais longe não podia ir, embora talvez desejasse, mas mesmo assim havia os seus riscos. Uma jovem que se sentava com uma amiga, numa manhã de sábado,  num café do centro comercial, levantou-se abruptamente ao fim de quinze minutos de assédio visual e disse para quem a quis ouvir:
 “ - O velho deve ser tarado! Vamos mas é embora que estou farta de anormais”.
O observante, impávido, anotou: “loira falsa”. Outra vez, no mesmo café, uma senhora de cerca de cinquenta anos, por sinal muito desfavorecida de beleza, loira igualmente espúria, mandou-lhe um papelinho enrolado com um número de telefone, mas Florival fez-se sabiamente desentendido, limitando-se a anotar o resultado da sua observação.
Episódio nada agradável registou-se com uma loira genuína que seguia acompanhada do marido no comboio para Lisboa. Florival passou Paço d´Arcos, Caxias e Algés com o olho posto na mulher. Quando chegou à estação do Cais do Sodré, o varão, enciumado, acercou-se dele e quase lhe deitou as mãos aos gorgomilos. O observante apoucou-se perante o ímpeto do capanga, justamente receoso que lhe dentassem a febra com os olhos. Aguentou os impropérios que o outro lhe dirigiu e alegrou-se interiormente: já tinha observado e anotado no seu caderno o brilho veraz daqueles cabelos de oiro.
Fiquei até ao cair da noite a percorrer as páginas do caderno, a ouvir as explicações de Florival. Este, entretanto, mandara vir mais uma cerveja morna, mastigara um rissol de camarão, não sem que antes perguntasse ao empregado se o marisco era de confiança. Só depois é que me contou, em tom lamentoso, o episódio da enfermeira, uma loura assim-assim com quem aprazara vários encontros sem resultados palpáveis. Era fascinante escutar Florival e perceber a singularidade que emanava da sua pessoa.
Às nove e tal dei por mim. Corri para o restaurante onde se realizava o jantar de aniversário de Maria Carolina. Encontrei-a furibunda pelo meu atraso, tendo ao seu lado o execrável António Abel, meu rival de sempre, com quem ela fugira em certo Verão para uma semana de férias escaldantes na Île de Ré. Engoli contrafeito os bifinhos com cogumelos, abusei do tinto de Pegões, vinguei-me da privação no pudim caseiro e sorvi sem moderação uma aguardente envelhecida em cascos de carvalho. Parecia-me que o António Abel, assim como quem não quer a coisa, palpava as coxas de Maria Carolina enquanto davas vivas à aniversariante. Enfim, uma noite para esquecer.
Guardei desse 6 de Junho a memória da conversa solar com Florival Aureliano. Nunca mais soube nada dele. Desapareceu das tertúlias que frequentávamos como quem já não cabe nelas e se eleva ao empíreo da inteligência e do pensamento audaz, talvez também do sofrimento e da solidão, a única forma de superarmos as nossas limitações. Não voltei à festa de aniversário de Carolina: à de 2011 e, seguramente, também não irei à que se fará este ano. Conservo dela as três cartas que há muito tempo me escreveu: uma delas para dizer que não esperasse nada de si, que continuaria amiga, mas que eu não era homem que pudesse servir-lhe. Por muito que me custe admitir, acho que estava cheia de razão.

2 comentários:

Joca disse...

O Florival devia ter trabalhado nas estatísticas...

Manuel Nunes disse...

Ah!ah!ah! Grande Florival, não há loira que lhe escape.