Florival Aureliano tinha um
caderno de argolas, assim do tamanho de um livro grande, em que ia anotando
poemas, impressões de leituras, ditos pitorescos que ouvia nas ruas e nos
transportes públicos. Tive o privilégio de ver esse caderno ao fim da tarde do
dia 6 de Junho de 2010, sentado com o seu detentor num café da Avenida de
Berna, ali mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, enquanto fazia
horas para o jantar de aniversário duma amiga de infância, Maria Carolina, por
quem sempre tive um certo fraquinho e que a rapaziada brava costumava arreliar
com aquela conhecida canção:
A saia da Carolina
Tem um lagarto pintado
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem.
Tem um lagarto pintado
Sim Carolina ó - i - ó - ai
Sim Carolina ó - ai meu bem.
O dono do caderno de argolas era
um tipo um bocado estranho, de idiossincrasias raras. Nunca saía à noite, mesmo
no Verão, sem enfiar pela cabeça um grosso pulôver; só bebia cerveja morna e
preferia o vinho tinto ao branco; gostava de mulheres inacessíveis; e se algum
homem lhe punha a mão afectuosa sobre o ombro tomava-o um arrepio de nervos
capaz de produzir um efeito trágico. Sabia-se que tinha medo de adoecer e que era
vagamente homofóbico.
Uma nota curiosa, logo nas primeiras
páginas do caderno, referia as perseguições de Diocleciano na
civitas de Olisipo (anos 303 a 305) e os mártires Máximo, Severo e Júlia, o que demonstra o
interesse do anotador por assuntos históricos e religiosos. Seguia-se a
transcrição duma passagem da alegoria da Caverna, extraída de Platão, um poema
do próprio Florival a uma sua amada que simplesmente o ignorava, e uma conversa
entre duas comadres ouvida no eléctrico da Graça:
“- Pois nem queira saber ao que
aquilo chegou.
- Alguma coisa má, comadre?
- Má? Se o é! Uma pouca vergonha! Descobri que ele é homem-sexual.”
Para além destes apontamentos
esparsos, frutos da poliédrica inquietação de Florival Aureliano, o
que mais me entusiasmou foi um conjunto
de páginas preenchidas com quadros de dupla entrada, uma espécie de fichas para
um estudo sociológico inédito. Na horizontal, indicação de
lugares, datas e horas correspondentes a observações realizadas; na vertical,
duas simples colunas: “loiras falsas” e “loiras verdadeiras”.
Apresento um exemplo:
Data,
local e hora da observação
|
Loiras falsas
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Loiras verdadeiras
|
15 de Maio, Café Bijou, entre as 10 e
as 11 horas
|
3
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1
|
16 de Maio, Jardim de Oeiras,
entre as 18 e as 19 horas
|
7
|
0
|
Florival explicou-me tudo. Há muito
que se interessava pela cor dos cabelos das mulheres. Tinha como quase certo
que em Portugal haveria noventa e cinco por
cento de mulheres morenas (de cabelos pretos ou castanhos) e apenas cinco por
cento de loiras. As ruivas nem dava para considerar, tão exíguo era entre nós esse
tipo feminino, embora se percebesse que as mesmas exerciam sobre si algum
fascínio: havia no caderno um poema de Florival com o sugestivo título de “A
uma cenourinha bonita que passa por mim sem olhar”. A questão que se colocava é
que já não se conseguia saber quais eram as loiras e as morenas, tais os
artifícios capilares em uso, chegando-se ao cúmulo de não se excluir a hipótese
de também algumas loiras autênticas, por
razões que a própria razão desconhece, poderem pintar os cabelos de preto ou
castanho. Era a confusão completa e Florival tinha resolvido tirar tudo a limpo.
Deixando de parte a questão das falsas morenas, atirou-se às loiras, autênticas
e fingidas, e assim encheu mais de trinta páginas dos seus gloriosos hypomnemata. Este termo, aqui lançado como prova da vasta
intelectualidade do escrevente, foi recuperado por Michel Foucault no século
XX, correspondendo aos apontamentos tomados em pequenos cadernos pelos gregos
letrados da Antiguidade. Para que se saiba e se pasme.
Como é que Florival estatuía a condição
verdadeira ou falsa das loiras? Ora aí é que está o busílis da questão. Posso adiantar
que era a partir de demoradas e penetrantes observações do objecto em análise:
comparação com os pêlos das sobrancelhas ou dos braços, se os havia, com o tom da pele
e a cor dos olhos. Mais longe não podia ir, embora talvez desejasse, mas mesmo
assim havia os seus riscos. Uma jovem que se sentava com uma amiga, numa manhã
de sábado, num café do centro comercial,
levantou-se abruptamente ao fim de quinze minutos de assédio visual e disse
para quem a quis ouvir:
“ - O velho deve ser tarado! Vamos mas é embora
que estou farta de anormais”.
O observante, impávido, anotou:
“loira falsa”. Outra vez, no mesmo café, uma senhora de cerca de cinquenta anos,
por sinal muito desfavorecida de beleza, loira igualmente espúria, mandou-lhe
um papelinho enrolado com um número de telefone, mas Florival fez-se sabiamente
desentendido, limitando-se a anotar o resultado da sua observação.
Episódio nada agradável
registou-se com uma loira genuína que seguia acompanhada do marido no comboio
para Lisboa. Florival passou Paço d´Arcos, Caxias e Algés com o olho posto na
mulher. Quando chegou à estação do Cais do Sodré, o varão, enciumado,
acercou-se dele e quase lhe deitou as mãos aos gorgomilos. O observante
apoucou-se perante o ímpeto do capanga, justamente receoso que lhe dentassem a
febra com os olhos. Aguentou os impropérios que o outro lhe dirigiu e
alegrou-se interiormente: já tinha observado e anotado no seu caderno o brilho
veraz daqueles cabelos de oiro.
Fiquei até ao cair da noite a percorrer
as páginas do caderno, a ouvir as explicações de Florival. Este, entretanto, mandara
vir mais uma cerveja morna, mastigara um rissol de camarão, não sem que antes
perguntasse ao empregado se o marisco era de confiança. Só depois é que me
contou, em tom lamentoso, o episódio da enfermeira, uma loura assim-assim com
quem aprazara vários encontros sem resultados palpáveis. Era fascinante escutar
Florival e perceber a singularidade que emanava da sua pessoa.
Às nove e tal dei por mim. Corri
para o restaurante onde se realizava o jantar de aniversário de Maria Carolina.
Encontrei-a furibunda pelo meu atraso, tendo ao seu lado o execrável António
Abel, meu rival de sempre, com quem ela fugira em certo Verão para uma semana
de férias escaldantes na Île de Ré. Engoli contrafeito os bifinhos com
cogumelos, abusei do tinto de Pegões, vinguei-me da privação no pudim caseiro e
sorvi sem moderação uma aguardente envelhecida em cascos de carvalho.
Parecia-me que o António Abel, assim como quem não quer a coisa, palpava as coxas de
Maria Carolina enquanto davas vivas à aniversariante. Enfim, uma noite para
esquecer.
Guardei desse 6 de Junho a
memória da conversa solar com Florival Aureliano. Nunca mais soube nada dele. Desapareceu
das tertúlias que frequentávamos como quem já não cabe nelas e se eleva ao
empíreo da inteligência e do pensamento audaz, talvez também do sofrimento e da
solidão, a única forma de superarmos as nossas limitações. Não voltei à festa
de aniversário de Carolina: à de 2011 e, seguramente, também não irei à que se
fará este ano. Conservo dela as três cartas que há muito tempo me escreveu: uma
delas para dizer que não esperasse nada de si, que continuaria amiga, mas que
eu não era homem que pudesse servir-lhe. Por muito que me custe admitir, acho que estava
cheia de razão.
2 comentários:
O Florival devia ter trabalhado nas estatísticas...
Ah!ah!ah! Grande Florival, não há loira que lhe escape.
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