quinta-feira, maio 10, 2007

A RESIGNAÇÃO DOS DESISTENTES

No princípio preocupava-se muito com o corte das camisas e o padrão das gravatas. Tinha a certeza de que o verde não condizia com o azul, que umas meias cinzentas caíam bem sobre sapatos pretos e que a bracelete do relógio dialogava com o cinto das calças. Vestia a preceito e raramente comprava roupa em lojas de pronto-a-vestir: tinha alfaiates certos, artesãos escolhidos segundo o seu estilo pessoal ou os ditames da moda que decidia acolher.
Saíam com frequência aos fins-de-semana, estrada fora, a percorrer o país monumental: gótico flamejante, vitrais, arcobotantes e botaréus, arcos de volta perfeita do românico, abóbadas de berço, capitéis historiados. Almoçavam em restaurantes com portentosos cardápios e pernoitavam em pousadas históricas, castelos ou palácios adaptados às exigências da hotelaria moderna, velhos mosteiros com as antigas celas transformadas em agradáveis aposentos, as portas abrindo-se para claustros com jardins e lagos de repuxos, o silêncio da antiga clausura dando lugar à alegria ruidosa dos que viajavam.
Não se deixavam seduzir pelos fins-de-semana românticos em Paris ou Viena que as agências de viagens tentavam vender-lhes. À monumentalidade das grandes cidades ou a esses programas turísticos que chamam “de sonho”, preferiam a sobriedade do “saia para fora cá dentro”, aqueles lugares onde a maravilha se serve em doses equilibradas, sem empanturrar os olhos e a alma, não deixando embotar os corações de deslumbramento. Tinham-se apercebido disto quando passaram uma semana de férias em Roma: Capitólio, Via Veneto, Fonte Trevi, Basílica de Santa Maria Maior, Praça Navona, e quase não tiveram tempo para o amor, faltavam os olhos para si próprios, esbugalhados naquele torvelinho de novidade e beleza que submergia o fulgor dos afectos.
Durou pouco ou muito tempo esta fase das suas vidas? É difícil responder. A partir de certa altura, nas saídas que faziam, começaram a levar livros dos quais apenas liam, à noite, passagens esparsas. Enredavam-se em entretenimentos e jogos de palavras, compondo acrósticos, procurando vocábulos e frases que pudessem ser lidos sem alteração de significado da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, os chamados palíndromos, palavras como “radar”, “osso” e “rir”, frases como “Roma é amor”. Não era fácil. Passavam depois aos lipogramas, arquitectando textos onde nunca entravam determinadas letras, tendo chegado a escrever umas trinta linhas sem um único registo da vogal “a” e da consoante “b”. Chegavam, por fim, aos anagramas, a ver quantas palavras podiam construir com as mesmas letras de outra palavra, e tiravam Natércia de Caterina, fazendo batota, claro, que a invenção era de Camões e a patente estava registada há vários séculos.
Já por essa altura lhes parecia que alguma coisa não estava bem, que as mãos e as bocas tinham deixado de falar os dialectos de antigamente. Aconteceu estarem um fim-de-semana completo numa cidade histórica e não terem visitado a catedral. Uma vez, em Junho, seguiam por uma estrada bordejada de cerejeiras carregadas de frutos e não conseguiram sentir a beleza e o perfume exalados pelas árvores. Quando paravam em alguma zona de descanso, junto de um parque de merendas com uma fonte que bebia a água da serra, mal se lembravam da última igreja que tinham visitado, se era de estilo gótico ou românico, se tinha uma ou três naves, se era de transepto inscrito ou saliente. Sentiam que, cada vez mais, lhes fugia a memória, ficando-lhes uma vaga reminiscência de manhãs carregadas de luz, de palavras e pedras rendilhadas, portais, rosáceas, absides, coruchéus, uma vaga reminiscência, apenas, na planura insondável do tempo presente.
Depois ele passou a preocupar-se cada vez menos com aquilo que vestia. Não ligava às cores e aos padrões, era capaz de pôr uma gravata de riscas sobre uma camisa de quadrados. Já lhe servia qualquer peça de roupa, mesmo dessas que se vendem no hipermercado, penduradas em tristes varões atrás de escaparates de mercearias, garrafas de vinho e detergentes, provadas no silêncio de minúsculos gabinetes com uma cortina de correr, um cabide e um espelho de vidro com a largura de um corpo, o pagamento feito na caixa, à saída, juntamente com o peixe, as hortaliças e o leite. E se, por força do hábito, ainda faziam alguma saída de fim-de-semana, era para voltarem sempre ao fim do dia, como se não fossem capazes de aguentar o peso de uma noite fora de casa ou já não soubessem fugir à sensaboria dos monótonos serões, o sono domando-lhes o corpo à boca da madrugada, até se resolverem a ir para a cama, um de cada vez, para dormirem mais uma noite sem chama, cansados da previsibilidade dos dias e da sua irremediável feição.
Os roteiros das viagens, as brochuras turísticas, os postais ilustrados dos monumentos e paisagens jaziam por esse tempo na mais triste prateleira da estante, como papéis imprestáveis. Já não passavam os olhos sobre eles para fazer perdurar a lembrança de tantas viagens por territórios felizes. Já só se entretinham com leituras ligeiras e jogos de palavras cruzadas, o jornal dobrado no colo, a caneta apontada à malha das quadrículas, única forma de comunicar que ainda lhes restava. Ele perguntava: arco quebrado da arquitectura gótica, cinco letras? Ela perguntava: é fogo que arde sem se ver, quatro letras? Mas por mais voltas que dessem à cabeça, por mais pistas que tentassem cruzar entre verticais e horizontais, nenhum deles era capaz de responder. E com a resignação dos desistentes estupidamente abrigada nos olhos, espreitavam as soluções no fundo da página.

D.E.

domingo, maio 06, 2007

SÉGOLÈNE ROYAL



Confesso que tive pena. A França perdeu a oportunidade de ficar com a Presidente mais bonita do mundo.

domingo, abril 29, 2007

UMA LUZ INDIZÍVEL NOS OLHOS

Nenhuma mulher escapava ao seu olhar de fera desapiedada, de animal insaciado, congeminando lascívias em cada hora do dia por mais trabalho que o prendesse ou maior canseira que lhe morasse no corpo. Chico Gostoso, talhante de profissão, trinta anos de idade, cingia carcaças de borrego e porco, alombava com pesadas pernas de bovino dos frigoríficos para a mesa de desmancha, cortava bifes e costeletas, picava carne, usava a faca e o cutelo com inexcedível mestria – era um amante das carnes, mais das vivas que das mortas.
Trabalhava no mercado. Através da montra aberta sobre os lugares dos vendeiros, procurava com os olhos a Isabel Alface ou a Rita Marmota, peixeira esta, vendedora de frutas e hortaliças aquela, às vezes era alguma freguesa – das mais jovens às mais entradas no abismo da idade, fossem solteiras ou casadas – que lhe despertava a atenção e as libidinosas pulsões. Chico Gostoso ia a todas.
Era voz corrente no mercado que desfrutava, em concomitância, tanto a Rita do peixe como a Isabel das hortaliças, mas nenhuma delas parecia acreditar em tão arrojada deslealdade. Se lhe pediam para jurar, jurava: que era mentira e inveja, nunca fora homem de se comprometer, ao mesmo tempo, com duas mulheres.
Rita era uma mulheraça, trinta e muitos, de boas carnes, desamigada de matrimónios e compromissos estáveis, despachava caixas de carapau e sardinha como quem bebe um copo de água, conhecia à distância as cores de todos os peixes e os cheiros exalados pelas suas entranhas, arrepiava pescadas, escamava abróteas e garoupas como quem limpa o rabo a meninos, era exímia na arte de descongelar e recongelar. Isabel era peça mais delicada e de viçosa idade, uma falsa magra, a cintura fina, as pernas bem torneadas, os seios redondos como meloas, tinha um olhar dengoso que desnorteava e fulgia, a boca era apetecível como um pomo maduro.
Para além destas duas havia a Maria Leiteira, dona de uma venda de queijos e enchidos regionais – morcelas, alheiras de Mirandela, paios e chouriços da Beira Baixa, queijos flamengo, Rabaçal e tipo Serra –, uma rapariga anódina, sem graça, já um pouco atrasada para o sacramento do matrimónio, que a pouca beleza do rosto e as carnes direitas do corpo não puxavam os homens para namoros ou vívidos relacionamentos. Chico Gostoso cortara-lhe uma vez um quilo de fígado de porco, era na hora em que o estabelecimento estava quase a fechar, não havia ninguém por perto, de sorte que, ao entregar-lhe o saco de plástico com o avio, deteve-se a sua mão na da triste feia, de forma tão carinhosa e inesperada que a rapariga subiu aos céus de consolação. A partir desse momento tomou-a um fraquinho pelo oficial das carnes, onde ele estivesse e o pudesse lobrigar lá estavam os seus olhos tristes. Ele é que fez logo marcha atrás com quanta força tinha, arrependendo-se do mau passo : com tanto gado de primeira para lidar, logo havia de ir desinquietar aquela rês famélica e descorçoada.
Os companheiros do mercado – o Zé dos bolos, o Manel dos congelados, o Paulo dos secos – gozavam com Chico Gostoso: É pá!, uma boa posta de peixe há-de ser sempre acompanhada de umas batatas novas e de uns legumes viçosos, só com acompanhamento é que a comida sabe bem; uma fatia de queijo para sobremesa também não vai mal, mas aqui o amigo Chico parece ter medo desse alimento: é que o queijo é magro e mal curado, deve ser por isso.
Durante algum tempo repartiu-se Chico Gostoso entre a dama do peixe e a jovem das frutas e hortaliças. Saía do pé de uma para se encontrar com a outra, lá ia chegando para as encomendas, nenhuma se queixava, que o homem era tão exímio nos volteios do amor como no manejo do cutelo e da faca de desossar.
Quem lhe estragou o arranjinho foi o Joca dos salgados, um sujeito miudinho e invejoso que mercadejava rissóis, chamuças, bolinhos de bacalhau e pastéis de massa tenra, e que, além disso, mau grado as dificuldades do intricado negócio, ainda ficava com tempo para vazar a gula dos olhos sobre as formas deliciosas da Isabel Alface. Despeitado pela má distribuição da riqueza que lavrava naquele mercado – um figurão batendo-se com duas mulheres, quando a ele não lhe tocava nada – resolveu bufar às damas as infidelidades do açougueiro, avançando com dias, horas, sítios em que as mesmas se cometiam, sem margem para dúvidas ou refutações, que para tal andou armado em espia durante um largo período de tempo.
As mulheres conferenciaram entre elas. Se o promíscuo assim agia, gozando com ambas de forma tão leviana, teria de levar uma lição. E em momento azado, quando o Chico Gostoso se fazia a mais um encontro amoroso com uma delas, em vez de encontrar uma encontrou as duas, que logo ali se dispuseram a render-lhe conjuntamente os especiosos favores que antes lhe dispensavam em separado.
Perante o imprevisto triângulo amoroso, vacilou o pinga-amor, aturdido, abalada a sua segurança de macho proficiente, ele que se habituara a conduzir e não a ser conduzido, apavorado com a possibilidade de não dar conta do recado. Ficou gelado, o membro frouxo num grande desconcerto vascular que lhe causou vergonha e medo.
No dia seguinte, todo o mercado comentava o sucedido, rindo de Chico Gostoso e da sua falsa prosápia. Rita Marmota e Isabel Alface, se o viam, chispavam-lhe olhares de escárnio. Alguns, depois dos primeiros momentos de gozo, chegaram a ter pena dele, tão enfiado que o viam, atrás do balcão do talho, lidando a custo com as grossas peças da alcatra e da vazia, levantando a cara, a medo, para as clientes que antes costumava despir com os olhos lúbricos. Chico Gostoso era um animal ferido, parecia que todos lhe tinham perdido o respeito. No entanto, quem passasse pelo lugar da Maria Leiteira e reparasse na triste vendedora de queijos e enchidos, notaria no seu rosto, como coisa nunca vista, uma rara expressão entre a esperança e a felicidade, um desses indefiníveis reflexos da alma que só raramente se fixam no semblante dos mortais, uma luz indizível nos olhos, como se começasse a apreciar a vida ou a acreditar no amor.

D.E.

domingo, abril 15, 2007

PRETEXTOS...

-------------------------------------

«O Morto é só um pretexto» - pelo Grupo de Teatro do ISCTE - mISCuTEm

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) 30-03-2007 a 22-04-2007 6ª-Sab: 21h30; Dom: 19h00 Entrada: EUR 3,00 (geral) / EUR 2,00 (estudantes) / EUR 1,00 (sócio) Reservas: 217903000 / 217935000

Grupo de Teatro do ISCTE - mISCuTEm Carla Rodrigues (Coreografia) Ana Isabel Augusto (Encenação)

A peça «O Morto é só um pretexto - Os bivalves andam sempre aos pares e os tremoços são singulares», é uma produção do Grupo de Teatro do ISCTE - mISCuTEm, com encenação de Ana Isabel Augusto

-------------------------------------------------------------------------

PARABÉNS À CARLA E A TODOS OS ELEMENTOS DO GRUPO DE TEATRO POR ESTE EXCELENTE PRETEXTO.

CONFESSO QUE O NOME DO MORTO ME PERTURBOU UM POUCO. MAS ACABEI POR ME ENCHER DE CORAGEM: ENTREGUEI O ÓBOLO E ATRAVESSEI O ESTIGE EM COMPANHIA DO BARQUEIRO CARONTE.

ESTAVA LONGE DE IMAGINAR QUE O REINO INFERNAL FICAVA NO BAIRRO ALTO.

--------------------------------------------------

domingo, abril 01, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 4 )

Um perfeito disparate – foi assim que Cláudia classificou a empresa em que eu me metera, deixando a casa e o emprego para ir em demanda de um hipotético manuscrito de Camões, como se o trabalho de investigar sobre tal matéria pudesse ser levado a cabo por alguém destituído de formação e experiência para o fim em causa. Que ela pesquisasse sobre os entrechos da expansão portuguesa no Oriente, nenhuma admiração, pois era labor próprio da sua condição de universitária e doutoranda; agora eu, um zé-ninguém metido dentro da farda de uma empresa de segurança, arrastando as horas de vigília nocturna com os olhos dormentes e a cabeça dolorida de sono, a querer armar-se em descobridor de manuscritos perdidos, era coisa que não lembrava ao diabo. E, com grande frieza, deu-me ordem de regresso, sob pena de o meu dislate conduzir a desentendimento grave e, admiti eu, a uma muito provável separação.
Dei comigo a pensar sobre os sacrifícios que fazemos para conservar a estabilidade dos nossos afectos. Tantos sonhos que abandonamos, tantos momentos da vida em que saímos do nosso caminho para seguir a luz do outro. A vida a dois é feita de cedências e ajustamentos, de renúncias recíprocas em vista da felicidade comum. Só que, no nosso caso, parecia-me ser eu o único a renunciar, aquela metade que tinha sempre de se acomodar à vontade da outra.
E lembrei-me de um episódio da vida de casado do meu tio Gilberto. Tinha-me sido contado por ele há uns bons anos, pois a grande amizade que tinha por mim levava-o sempre a procurar transmitir-me, com exemplos da vida, os ensinamentos de que eu carecia para a minha formação como homem. Apresentando-me esse episódio como uma experiência de onde era possível retirar uma lição, ironizava ao mesmo tempo sobre as peripécias e o desfecho do mesmo, como se, depois de tanto tempo, já não passasse de um incidente menor da sua vida, algo que, apesar da importância que tivera, o tempo se havia encarregado de situar no plano das coisas que já não tinham o poder de o afectar.
Na juventude, a minha tia, mãe daqueles incríveis primos a que me referi, era muito possessiva e assaz exigente na reivindicação dos seus direitos matrimoniais, prendendo o meu tio em casa, ao pé de si, tanto quanto podia. Durante os dias de semana, nas poucas horas que lhe sobravam do seu labor de funcionário público, ela lá ia conseguindo segurá-lo com aquelas artes que as mulheres possuem e já nascem com elas. Ao domingo, porém, tudo lhe saía ao contrário. O meu tio Gilberto tinha o gosto do futebol – uma inclinação que lhe ficara dos tempos de rapaz – e não passava um santo dia do Senhor que não se encontrasse com o seu grupo de amigos para um jogo matutino – uma espécie de partida de solteiros contra casados – seguindo-se o almoço entre camaradas e, durante a tarde, exacerbados entusiasmos de bancada no estádio do clube. Semana sim, semana não, a equipa de futebol do clube ia jogar fora, aos estádios ou aos singelos campos da bola dos adversários, e ele lá seguia em excursão até esses lugares, não sei se como membro de alguma ruidosa claque ou apenas como espectador sereno. Todo o dia de domingo era assim passado em convívios, entretenimentos e práticas desportivas de bancada, enquanto a minha tia ficava em casa, sozinha, sob a custódia dos Lares. Ela aguentou um certo tempo, tentando perceber até onde chegava o atrevimento, sempre à espera de o ver reconsiderar e arrepiar caminho, mas como não houvesse melhoras e muito menos sinais de arrependimento, leu-lhe a cartilha: ou acabava o futebol, ou acabava ela. Foi remédio santo, que aquilo era mesmo um casamento de amor e o meu tio não a queria perder.
Também eu, seguindo o exemplo do meu tio, cedi a Cláudia. Cheguei envergonhado ao pé do representante do sebo e dei o dito por não dito: ele que procurasse sozinho o manuscrito de Camões, bem podia ficar com os louros da descoberta todos para si, que eu, por imperiosos motivos familiares, me via obrigado a regressar a casa. O homem ainda tentou contrariar os meus propósitos de desistência, aduzindo formidáveis convicções e inexpugnáveis certezas, dizendo encontrar-se na pista certa, à beira de encontrar o que tão ansiosamente procurávamos, e lembrando-me os proveitos que daí adviriam para ambos. A minha decisão, no entanto, estava tomada, e isso ele acabou por compreender.
Deixei Salamanca, a cidade que a uns sara e a outros manca, como diz o velho adágio, e meti-me à estrada. Ia meditando na minha vida e no meu casamento, sentindo que a partir daquela experiência falhada já nada voltaria a ser como dantes. Acabara por descobrir em Cláudia uma mulher fria e intransigente, criticando o arrebatamento que me tomara quando eu apenas pretendia sair da sombra e chamar a sua atenção sobre a minha pessoa. Afinal, o que via Cláudia em mim? Que futuro poderia ser o da nossa relação? E comecei a valorizar certos sinais, pequenos incidentes que antes havia encarado com bonomia e desprendimento, como se não tivessem nada a ver com a essência dos nossos afectos e fossem apenas o resultado de desiguais ritmos de vida, de diferentes projectos profissionais que exigiam a um o que não se pedia ao outro, mas que afinal continham o germe de uma união fracassada, que dificilmente iria longe. Por que razão Cláudia nunca me apresentava aos seus colegas da universidade? Como explicar o desinteresse que me dedicava, mal se aproximando de mim dias a fio? E que dizer das vezes em que não vinha dormir a casa, ficando toda a noite, segundo dizia, na universidade, preparando a matéria da sua tese, fazendo directas ou limitando-se a dormir umas escassas horas, sobre a madrugada, encostada a um maple do seu gabinete? Se me fosse possível mudar alguma coisa na minha atitude – como em tempos fizera o tio Gilberto ao deixar o seu grupo de amigos e entregando-se por inteiro ao remanso doméstico em companhia da sua esposa– certamente o faria. Mas eu não tinha nada que, de imediato, pudesse ou devesse mudar. Só queria que Cláudia se sentisse bem ao pé de mim. Não tinha amigos que me afastassem de casa e a única vez que a tinha deixado sozinha fora nessa triste demanda que me levara a Salamanca e de onde regressara de orelha murcha, com o ego desfeito. Nunca poderia alterar de um dia para o outro a pequenez da minha estatura intelectual nem a configuração das minhas limitações. Ou Cláudia me aceitava tal como era, ou não havia nada a fazer. E decidi que teria de me entender com ela logo que chegasse a casa. Estaria disposto a tudo para não a perder, apresentar-lhe-ia um plano de reabilitação da nossa relação. Seria capaz de voltar à universidade para reiniciar os estudos interrompidos, tentando dessa forma superar o desnível de habilitações que existia entre nós. Talvez, quem sabe, terminada a licenciatura, pudesse também fazer um doutoramento. Estava disposto a esquecer tudo, a pôr de parte as dúvidas que me assediavam e a acreditar de novo no nosso amor.
Cheguei a casa e fui recebido por Cláudia com absoluta normalidade. Isso desarmou-me. Nos dias seguintes, retomado o meu trabalho de vigilante nocturno, foi-me faltando a coragem para lhe falar e debater com ela aquilo a que me obrigara em pensamento.
Hoje, passados vários meses sobre a minha ida a Salamanca, a nossa forma de vida não sofreu alteração. Com os horários de trabalho trocados, eu entro em casa, de manhã, quando ela acaba de sair para a universidade. Vejo-a escassamente durante os dias da semana, e aos domingos, à medida que se aproxima a data de apresentação da sua tese, cada vez lhe noto menos disponibilidade e maior dose de impaciência para comigo. Sinto que esta situação não poderá continuar por muito tempo e algum dia teremos de discutir a sério a nossa relação. Poderá ser na próxima semana, poderá ser no próximo mês, quando me sentir capaz de falar com ela. Até lá, faço por acreditar que algum facto inesperado, algum sopro de vida podem ainda surgir e salvar o nosso casamento do coma profundo em que se encontra. Entretanto, hei-de passar um dia destes pelo alfarrabista do Bairro Alto. Pode ser que ele tenha notícias do representante do sebo e que algo se descubra sobre o Parnaso de Luís de Camões. Estou convencido de que isso modificaria muito, para melhor, a opinião de Cláudia a meu respeito.
D.E.

quinta-feira, março 22, 2007

Ainda o DIA MUNDIAL DA POESIA

Para comemorar o Dia, que também se apresentava como sendo da Árvore e, quiçá, da Primavera, estive na Bibiloteca Municipal de Alverca, a partir das 21 horas, onde estava marcado encontro com o poeta Gastão Cruz, nascido em 1941, personalidade ligada ao movimento Poesia 61 (com Casimiro de Brito, Fiama, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta) e autor de vasta obra poética.
Éramos nove, incluindo-se neste singelo número o poeta, a responsável da biblioteca e a senhora vereadora do pelouro da cultura.
Mesa fraca para tão saboroso repasto.

Aqui fica um poema de GASTÃO CRUZ:


OUTRO TEMPO


Ficávamos de tarde com a música
na escuridão dos quartos repassados
de secura
como se a luz atravessasse
sem claridade a casa


O corredor
alargava junto às salas
fechadas a maior acabava num
púlpito debaixo
do torreão em forma de coroa da casa


Durante horas a música lançava
obscuras vagas
o futuro
tão perto já cavava
covas nas salas nunca usadas

quarta-feira, março 21, 2007

DIA MUNDIAL DA POESIA

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.


REINALDO FERREIRA

(Barcelona, 1922 - Lourenço Marques, 1959)

domingo, março 11, 2007

NOVA E SURPREENDENTE HISTÓRIA DO LETRADO LUSCIÉNIO, PROCURADOR DO COUTO MINEIRO DE VIPASCA NO TEMPO DE AUGUSTO

Quem conta um conto, acrescenta um ponto.
(Adágio popular)

Lusciénio, letrado romano, filho dum liberto que enriquecera com um negócio de azeites rançosos e vinhos adulterados, cumpria desterro por crime que adiante se conhecerá no mais inóspito confim do Império, a remota Lusitânia, explorando uma concessão de cinco poços de cobre no couto mineiro de Vipasca. Chegou acompanhado da escrava Gláucida, prestadora de serviços tão apreciados pelo seu dono e senhor que até se colocou a hipótese de lhe conceder a carta de alforria. Sendo um letrado, Lusciénio foi entretanto requisitado pelo governo de Emérita Augusta para exercer as funções de jurisconsulto da civitas de Pax Iulia, lugar que lhe rendeu honra e acrescentamento, integrando-o na nata da sociedade local e permitindo-lhe firmar os seus créditos para se lançar a mais altos voos.
Apesar do travo do exílio, tudo estaria bem na vida de Lusciénio se este não se debatesse com um persistente distúrbio que lhe causava desgosto e vergonha. Moles como lesmas, não se lhe endureciam as carnes da genitália por maior carga de excitação que lhe habitasse o corpo. A razão deste desarranjo de ordem sexual – disfunção eréctil lhe chamará mais tarde a ciência – atribuía-a Lusciénio a um feitiço obrado pela lasciva Semprónia, mulher maligna que nas noites de Roma lhe secava as fontes seminais em imoderados festins de prazer, sempre insatisfeita, desejosa e despeitada com o afecto que ele dedicava à escrava Gláucida. Sendo Semprónia uma das concubinas de Augusto, sofreu Lusciénio a ira do Pater Patriae, que o enviou para o desterro lusitano no mesmo ano em que, provavelmente por análogas razões, despachou Ovídio para o exílio de Tomos.
Lusciénio não era parvo. De triclínio em triclínio, em luxuosos banquetes, foi consolidando as suas amizades com os poderosos e influentes até chegar a procurador do couto mineiro de Vipasca. Ascendeu ao posto por mérito próprio, mas uma boa ajuda lhe foi dada por uma arca de sestércios com que pagou, a quem de direito, o reconhecimento da sua aptidão para o provimento de tão rendoso cargo.
Estava Lusciénio já investido nas sua funções de procurador, fazendo vida de rico e tendo começado a construir uma villa com peristilo, jardim, lago de repuxos, triclínio, mosaicos pavimentares, banhos quentes e frios e outros cómodos, quando um legionário chegado de Roma para render um companheiro de armas que terminara a comissão de serviço, lhe entregou uma carta de seu pai:

Meu querido filho, muito tempo passou desde aquele dia em que de ti me apartei no cais do porto de Óstia, muita água correu sob as pontes do Tibre, muito sol queimou os telhados da nossa urbe e as copas das árvores que bordejam a via Ápia. Não voltei a receber notícias tuas dessa Hispânia onde te encontras, perguntando-me se sempre te fixaste na Lusitânia, como estava determinado e para onde te remeto a presente carta, ou se não te terás quedado pela Bética ou pela Tarraconense, províncias bem mais progressivas do que esse fim do mundo de bárbaros a que te condenaste. Meu filho do coração, quando providenciei para que tivesses os melhores mestres de Roma e zelei para que cumprisses dois anos de estágio em Atenas entre sábios e filósofos epicuristas, sempre pensei que, com tão robusto currículo, se abririam para ti as portas de uma rendosa carreira no foro, o que redundaria em teu proveito e em grande orgulho meu. Erros da juventude, meu filho, desviaram-te do caminho justo. Não é impunemente que se desafiam os desígnios do grande Pai da Pátria, o Imperador Augusto. Pagaste os errores cometidos, mas é chegada a hora de te dizer que, finalmente, há boas notícias. Poderás voltar a Roma, livre do opróbrio do exílio, logo que queiras. Vou explicar-te como consegui esta graça, mas antes, para que o possas entender, fica a saber que abandonei em definitivo as actividades mercantis ilícitas. Bom dinheiro me renderam, é verdade, mas mais cedo ou mais tarde, por evolução natural, teriam de ficar para trás. Hoje só trabalho com produtos alimentares de qualidade certificada: azeites da Hispânia e vinhos da Gália, tâmaras de Alexandria, ovas de esturjão do Cáspio, preparados de peixe de Gades, carne de vaca da Numídia. Tornei-me fornecedor da domus imperial e dos grandes patrícios de Roma, disponho de agentes comerciais nas grandes praças do mercado único do nosso Império. Foi assim que consegui, agora te explico, através das influências adquiridas no negócio, demover o Imperador. Em breve seguirá o decreto que te torna livre para regressares à Pátria. Meu adorado filho, vê se voltas depressa para tomares conta dos nossos negócios, pois a minha idade, bem o sabes, é já avançada. Nada receies, meu amado filho. Poderás casar, constituir família com uma matrona que te respeite e dê filhos, nada poderá perturbar a tua felicidade e dedicação ao trabalho. O Imperador perdoou a tua ousadia, e Semprónia, a lasciva, causa da tua perdição, acaba de ser desterrada para a Trácia por ter sido apanhada em orgias com mulheres de condição livre e escravas. Augusto, o Pai da Pátria, não perdoa imoralidades. Que os deuses te instruam, meu filho. Saúda-te o pai que muito te ama e deseja ver.
Foi por entre um remoinho de sentimentos contraditórios que Lusciénio leu a carta do pai. Era já noite. Afastou-se das lucernas que iluminavam o escrito e pôs-se a pensar. Desejava muito voltar a Roma, mas a verdade era que estava a consolidar a sua vida naquelas paragens lusitanas onde ganhava bom dinheiro e via correr os dias sem tribulações. Habituara-se à índole pachorrenta dos povos que habitavam as grandes planícies do Sul, debruçados sobre as searas com todos os vagares do mundo, sempre em dolentes cantes, pedindo licença a uma perna para mexer a outra, apascentando rebanhos de ovelhas e vigiando com os olhos dormentes as varas de porcos pretos focinhando a nutriente bolota sob os ramos dos chaparros. Habituara-se a apreciar a flora e a fauna locais, o olor e a luz das estevas em flor, o voo da abetarda e da cegonha. O sul da Lusitânia era uma terra de horizontes largos, de estranhos monumentos de pedra que se recortavam na paisagem clara, uns apontando os céus como dedos hirtos, outros em forma de templo na sua massa tosca, erguidos por antiquíssimos povos, muito anteriores aos celtas e cónios que a civilização de Roma ali viera encontrar. Partir era bom, ficar também. E depois, de que lhe serviria casar se não seria capaz de cumprir as obrigações exigidas a um pater familias? Mantinha-se o distúrbio sexual que o acometera, e Lusciénio rememorou todas as tentativas feitas para o superar: a medicina convencional e as terapias alternativas não resultaram; não resultou igualmente a poção receitada por um druida gaulês que Fortuna da roda alada e da cornucópia colocara no seu caminho, penando três dias com as tripas doridas e o ânus assado, os ingredientes bárbaros a revolverem-lhe as entranhas, e as carnes penianas permanecendo, teimosamente, sem vida; depois foi a peregrinação ao santuário do deus Endovélico, as ofertas votivas, as preces a Iupiter Optimus Maximus e os rogos a Prosérpina, deusa infernal, esposa de Plutão, para que contrariasse a maldição que sobre si se abatera; frequentou bruxos, visitou mulheres de virtude, tentou excitar-se em lupanares e orgias. Tudo fizera Lusciénio para tentar recuperar a virilidade perdida, e nada conseguira. Chegava a casa, aninhava-se nos braços da escrava Gláucida, e não ia além de umas carícias, de uns beijos ternos.
Algum tempo depois de haver recebido a carta do pai, teve Lusciénio de enfrentar uma grave contrariedade, a primeira que lhe surgia na sua carreira de funcionário do Império. Vindos da margem esquerda do grande rio que banhava Myrtilis, porto de embarque de todo o minério, hordas de bandoleiros descendentes dos antigos turdetanos da Bética assaltavam as caravanas que saíam de Vipasca e desviavam o produto metalífero para fundições ilegais. O estado e os concessionários que exploravam os poços de minério começaram a perder muito dinheiro, a braços com aqueles díscolos que assolavam as rotas de escoamento e ameaçavam levar o couto mineiro à falência. O minério que saía pelo porto fluvial de Myrtilis era baldeado para embarcações de longo curso nos portos de Ossonoba ou Lacobriga, as quais logo seguiam as rotas do mar em direcção às colunas de Hércules, engolfando-se no grande mar interior em cujas margens se situavam os centros consumidores. Lusciénio largou a pena, desvestiu o trajo togado, e, empunhando o gládio, cavalgou os caminhos de pó da planície ao lado dos legionários, dando caça à malandragem, perseguindo-os muitas milhas além de Vipasca. No Castelo da Lousa, na margem esquerda do grande rio, pernoitava Lusciénio com os legionários durante as expedições punitivas, não podendo saber que, vinte séculos mais tarde, barrado o curso do rio com um grosso paredão, toda aquela vasta área ficaria sepultada sob as águas de um lago, tão grande e profundo que nenhum homem da sua era poderia imaginar. Lusciénio chegou a pensar em alterar as rotas do minério, já conhecidas dos bandoleiros, fazendo-o seguir para um porto seguro naquele rio que subindo de sul para norte, ao contrário de todos os outros rios da Lusitânia, dirigia o seu curso para a próspera Salácia das cegonhas e das pinhoadas e se entregava ao mar, entre golfinhos e viveiros de ostras, numa baía azul onde se erguia a promissora Cetóbriga. Daí poderiam partir os barcos de mercadorias para o grande mar interior, onde encontrariam todos os ventos que Ulisses conhecera no caminho de Ítaca: o Bóreas, o Noto, o Zéfiro, o Euro. Mas logo concluía pela dificuldade do projecto, pelos custos de transporte que acresceriam em tal empresa: uma longa viagem atlântica de enormes riscos, a necessidade de contornar o Promotorium Sacrum com o seu mar alteroso, antes de se poder navegar à vista daquela costa amena, virada a sul, com as suas arribas rendilhadas e as praias de areias de ouro.
Foi numa dessas noites em que pernoitava com os legionários no Castelo da Lousa que Lusciénio, excitado das correrias da jornada, deu em reparar, com um inusitado interesse, nos grossos chumaços das genitálias sob as tangas dos militares. Retirados os uniformes, pernas e troncos ao léu, os corpos abandonados em repouso à luz dos archotes da caserna, arregalavam-se os olhos de Lusciénio para os generosos volumes entre coxas, uma singular atracção que começava a sentir e que não sabia bem aonde o poderia levar. Tal era a insistência com que o fazia que logo suscitou motejos da parte dos castrenses, uns claramente assumidos como machos, outros, se calhar, nem tanto, pois é sabido que a diferença de orientação sexual não era impeditiva, na sociedade romana daquele tempo, de se empunhar o gládio e a lança em defesa da Pátria.
A partir de aqui não voltaria a ser o mesmo o letrado Lusciénio. Detinha-se frequentemente a avaliar a musculatura dos trabalhadores braçais do couto mineiro, como se, na qualidade de procurador, quisesse certificar-se de que os homens ao seu serviço estavam em perfeitas condições físicas para o rude labor da extracção metalífera. Nos banhos, deixava o recato do reservado que as suas altas funções lhe haviam outorgado e misturava-se com militares e cidadãos comuns, com capatazes e homens de ofício, buscando a proximidade dos corpos, tocando e deixando-se tocar, em públicos deleites a que já não sabia resistir. Gláucida deixou de ser chamada para a sua cama, passando de escrava para todo o serviço a uma singela prestadora de trabalhos domésticos, completamente desqualificada perante o novo escravismo com que entretanto se adornara a casa. O preferido de Lusciénio, nesta nova fase da sua vida, era um rapagão de procedência norte-africana, de nariz esborrachado e músculos lustrosos, adquirido a um mercador de Olisipo especializado no fornecimento de escravos de prazer. E começou a correr, célere como o cavalo de Fama, a notícia da condição de effeminatus do procurador de Vipasca. Bem pensado, que outra saída poderia haver para um homem a quem os deuses, impiedosos, haviam roubado a virilidade?
Quando, por um dia quente já muito próximo das calendas de Julho, chegou a Vipasca o decreto imperial que abolia a pena de desterro do letrado Lusciénio, este mandou expedir um agradecimento ao Imperador, Pai da Pátria, mas invocando conveniência de serviço e os superiores interesses do Império, pediu licença para se manter em funções, não abandonando o couto mineiro.
Diz-se que viveu feliz o resto da vida na remota Lusitânia. E isso é afinal o mais importante. Seja onde for, seja como for.

domingo, fevereiro 25, 2007

UM PARECER DESFAVORÁVEL

Pela boca do rio entraram, em outros tempos, corsários normandos e norte-africanos, homens de barba ruiva, de pele tisnada, os olhos inchados de cólera e as mãos prolongando-se em aceradas lâminas, sequiosos de sangue e de saque. Desembarcavam nas praias, incendiavam o sossego e as casas das gentes, não poupavam a honra das mulheres nem o espaço venerável dos templos. O povo sofria, resignado, as agruras impostas por estas hordas que chegavam do mar, pois não havia forças capazes de lhes fazer frente.
Pouco a pouco, porém, foi-se organizando a defesa dos povos. Construíram-se atalaias, mobilizaram-se guarnições militares. Mais tarde, com o advento da artilharia pirobalística, converteram-se as torres de vigia em sólidos baluartes, corpos de pedra que protegiam com as suas peças de fogo a vida laboriosa das populações. Assim apareceram a Torre de Cascais e a Fortaleza de São Vicente a Par de Belém, albergando esta, sob o rendilhado manuelino de pedra, um poder de artilharia dissuasor das investidas de corsários e beligerantes.
Vieram depois, entre os séculos dezasseis e dezoito, as outras fortalezas: Nossa Senhora da Luz de Cascais, o Forte de São Julião da Barra – testemunha do odioso martírio de Gomes Freire de Andrade – , a Fortaleza de São Lourenço da Cabeça Seca ou Torre do Bugio, o Forte de Nossa Senhora das Mercês de Catalazete, S. Bruno de Caxias, São João das Maias, Santo Amaro, Santo António do Estoril – onde um vetusto ditador se despenhou de uma cadeira, alterando de forma irreversível o curso frouxo da História.
No século vinte, apesar da penúria do erário e da fraqueza do corpo militar, a defesa da entrada do rio não foi descurada. Subiu às colinas, estabeleceu-se em postos de observação dotados de holofotes que atravessavam a espessura das noites, em baterias de artilharia de costa bem acima do nível do mar, locais privilegiados para vigiar e fazer fogo, pois outras eram, nesses tempos já modernos, as ameaças esperadas: poderosos navios de guerra, massas de aço avassaladoras, rasgando os céus com o poder fulminante das suas peças.
É a partir da década de sessenta que o aumento populacional dá lugar a um grande crescimento da construção civil na orla do mar. As casas, edificadas em urbanizações servidas pelo caminho de ferro da Sociedade Estoril, alastravam como manchas na paisagem da costa: Laveiras, Espargal, Nova Oeiras, Lombos, Rana, Galiza, Alapraia, Monte Estoril e tantas outras localidades. Multiplicavam-se os edifícios de cimento com os seus alvéolos habitacionais, enquanto as baterias de artilharia, estrategicamente implantadas nas varandas dos montes, viam surgir diante de si a ameaça dessas edificações que lhes roubavam o campo de visão sobre o leito do mar, tolhendo-lhes os exercícios de tiro tenso e tiro curvo ensaiados em laboriosas manobras militares. O perigo já não vinha da superfície marítima, mas de terra firme.
Foi então que a unidade de artilharia de costa passou a ter maior atenção aos processos de licenciamento das novas urbanizações. Os oficiais analisavam os dossiês, informavam o comando, e este, no desempenho dos seus poderes, ditava a sorte dos projectos. Perguntavam os construtores para que serviam aquelas canhoneiras mal dissimuladas nas encostas dos montes, atrapalhando-lhes os negócios e atrasando o progresso das terras, se, em caso de guerra, logo seriam aniquiladas pela aviação inimiga? Ninguém sabia ou queria responder, e eles lá se iam conformando, aparentemente, com as determinações que vinham de cima.
Só que esta raça de gente que se mete a levantar casas, a ligar cimento com ferro em especulativos empreendimentos, nunca descansa quando se trata de levar a sua avante. Havia, num lugar da freguesia da Parede, uma urbanização que crescia a olhos vistos, ameaçando acabar com a operacionalidade das unidades de artilharia. Já os prédios iam adiantados, altos como palmeiras, quando o processo chegou à mesa de trabalho do oficial encarregado de o apreciar. Aquilo era uma espécie de facto consumado. O militar folheou o vasto dossiê pejado de desenhos à escala, memória descritiva e justificativa, projectos de arquitectura, plantas de ruas, praças e pracetas. Cada milímetro de solo era avidamente aproveitado, construindo-se em altura o mais possível, pois o preço do metro quadrado estava pela horas da morte e os apartamentos eram tão necessários como pão para a boca. Consultou as cartas topográficas, compulsou o relevo pelas curvas de nível, apurou a altura dos edifícios, foi para o terreno armado de teodolito e telémetro. Fez contas, lidou com senos e cosenos, entregou-se a cálculos logarítmicos, e tudo apontava para a inviabilização daquelas construções. Informação ao comandante: Excelentíssimo Senhor Comandante, Coronel da Arma de Artilharia, por estas e estas razões, atentos os superiores interesses da defesa militar, tendo em conta as posições dos postos de observação e das baterias tais e tais, com vista a garantir as condições operacionais das mesmas não é de autorizar o levantamento da urbanização no volume e altura constantes do projecto, pelo que se deverá notificar de imediato o construtor a fim de interromper a obra – Vossa Excelência, no entanto, no seu alto critério, decidirá como melhor entender. Assinado: fulano de tal, capitão.
Nunca mais se soube que despacho merecera o parecer desfavorável do diligente oficial, mas estranhou-se que, passado algum tempo, o crescimento dos prédios continuasse a desenrolar-se numa orgia frenética de betoneiras e guinchos de içar, de camionetas a chegarem com novos materiais, de andaimes que singravam na direcção astral como se quisessem acometer os céus com os seus postes e tábuas sebentos de tinta e restos de argamassa. Pediu o oficial para ser recebido pelo comandante. Sim senhor, tinha lido o parecer, um texto fundamentado, preciso, correcto, tecnicamente bem elaborado, mas nada a fazer: outros interesses mais altos se levantavam. O país não podia parar, as fábricas de cimento tinham de continuar a produzir cimento, a siderurgia não podia abrandar a sua produção de ferro e aço, a indústria vidreira, as cerâmicas, as empresas de cabos eléctricos tinham de continuar a fabricar e a vender para não fecharem as portas. A construção civil era o motor da economia – lá diziam os entendidos – e as pessoas precisavam de casas para morarem. Para mais, tratava-se de uma urbanização muito bem projectada, próxima da praia, onde seria gostoso viver, fruindo os saudáveis ares do mar.
Foi talvez por esta afeição manifestada a respeito da nova urbanização, ou por qualquer outra causa não determinada, que se mudou a família do comandante para um dos melhores apartamentos lá construídos. A este propósito houve logo quem insinuasse, quem emitisse juízos de sentido dúbio, e houve também – gente mais ousada! – quem chegasse a proferir afirmações inequívocas, a verberar condutas, falando de interesses ocultos e compadrios. Sempre tivemos muita inveja por esse país fora! A verdade, porém, é que o comandante vive hoje naquele esplêndido apartamento construído na urbanização que lhe entaipou postos de observação e baterias, enquanto o oficial autor do parecer desfavorável continua a morar na sua modesta casa de sempre.
D.E.

domingo, fevereiro 11, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 3 )

Perguntei no Hotel Ceylan pelo representante do sebo, tendo-me sido indicada uma esplanada da Plaza Mayor onde ele costumava almoçar sempre que vinha a Salamanca. Pela descrição feita, não tive dificuldade em descobri-lo. Comia, quando o encontrei, uma tortilha e uma salada mista – refeição frugal para tão vastas carnes – acompanhando o repasto de um tinto Rioja Campo Viejo. Apresentei-me, pedi licença para uma breve conversa, dando como referência o alfarrabista de Lisboa. O homem acabou de deglutir a fritura de ovos, sorveu a última folha de alface, pediu uma taça ao empregado e encheu-ma de vinho. Depois, escarafunchou com um palito as recônditas fendas da região dental, limpou o bigode com um guardanapo de pano branco, abanou-se com um jornal dobrado ao meio como se fosse um leque, e, enquanto me ouvia, passava a mão pela aridez da calva e espraiava os olhos pelas fachadas dos edifícios setecentistas, refulgentes de arcadas e varandas, como se eu não estivesse ali e as minhas palavras viessem de uma instalação sonora em algum ponto ignorado da praça.
Terminada a exposição das minhas razões, fiquei longos segundos à espera que me dirigisse a palavra. Foi quando me lembrei de que não voltara a falar com Cláudia desde o dia anterior, quando saí de Lisboa, nem tão-pouco ela me respondera à mensagem que lhe deixei no telemóvel. Completamente absorvido pelo motivo que me levara a Salamanca, nunca mais me tinha lembrado de lhe telefonar.
O homem, como uma dádiva do céu, deixou cair os olhos, finalmente, sobre a minha humilde pessoa, reiterando tudo o que o alfarrabista me havia dito. Que não havia nenhum manuscrito de Camões entre os livros e documentos por ele adquiridos, e que tudo aquilo, livralhada e demais papéis, eram peças de lana-caprina, coisas sem interesse, havendo, no entanto, algo merecedor de registo: um fragmento de um códice datado do século dezasseis – mas, na verdade, uma descarada falsificação feita uns trezentos anos mais tarde – onde se aludia a uma cópia do Parnaso de Luís de Camões feita por um monge salmantino por encomenda de uma família da alta nobreza castelhana, cujo nome, infelizmente, se apresentava ilegível. Fora essa a razão que o trouxera a Salamanca e não o desconchavo da edição apócrifa do Quixote, notícia que deixara espalhar em Lisboa para despistar a concorrência. E aproveitou, uma vez que estava necessitado de um ajudante de campo e eu, por razões sentimentais e curiosidade pessoal, me interessava pelo assunto, para pedir a minha colaboração no sentido de o ajudar a atingir os seus objectivos: identificar a ancestral família e tentar encontrar a preciosa cópia. Quanto aos livros e papéis que estavam na arca do meu tio, já tinham sido enviados para São Paulo, por via aérea, para o sebo que lhe pagava o ordenado, a fim de que, por descargo de consciência, fossem avaliados através de processos científicos, embora isso não o preocupasse muito, pois certamente não se enganara no juízo que deles fizera, além de que, nas Américas, esses papéis bafientos da velha Europa, verdadeiros ou falsos, eram sempre dinheiro em caixa.
Emocionei-me de alegria ao ouvir as suas palavras. Por duas razões: a primeira, por ser para mim uma espécie de reabilitação da boa imagem do meu tio – um pouco abalada desde que comecei a dar conta do fiasco da arca -, pois era uma prova de que havia um fundo de verdade quando falava no manuscrito de Camões, mesmo não existindo tal manuscrito ou existindo apenas pela referência que lhe era feita no fragmento do falso códice; a segunda, por me permitir continuar a sonhar com uma descoberta de enorme significado histórico e cultural, algo que, a verificar-se, iria lançar sobre a minha pessoa a admiração de todos os amantes da cultura. Dei comigo a pensar no orgulho que Cláudia iria sentir por mim - eu que não passava de uma figura apagada, exercendo uma desqualificada profissão, enquanto ela brilhava na sua carreira académica – e antecipei o gozo de ouvir os seus elogios, imaginando-a a contar aos colegas da universidade o papel desempenhado pelo marido em tão importante achado.
Aceitei a proposta de colaboração do representante do sebo e telefonei a Cláudia. Esperava encontrá-la ansiosa pelo meu telefonema, feliz por saber de mim, por me poder ouvir, mas a conversa foi fria, como as águas do Tormes em pleno Inverno.
(Continua)
D.E.

domingo, fevereiro 04, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 2 )

Na manhã do dia seguinte, mal saí do turno de vigilância nocturna na sede do banco, encaminhei-me para os lados do Bairro Alto. Tomando o Cais do Sodré, subi a Rua do Alecrim, passei pelo Largo de Camões – olhando com enternecimento a estátua de bronze do Poeta – e metendo-me pela Rua da Misericórdia comecei a indagar junto de lojas de antiguidades e alfarrabistas sobre quem poderia ter comprado a arca. Os comerciantes que abordei, declarando-se desolados por não lhes ter calhado em sorte um tal negócio, iam-me citando nomes e locais de outras lojas, procurando ajudar-me na minha busca. Cheguei a um estabelecimento da Rua da Trindade cujo proprietário, conhecedor como ninguém do mercado em que se movia, me remeteu para casa de um alfarrabista descendente de uma velha família de judeus sefarditas, fugida para Itália nos tempos do rei D. Manuel I, mas regressada, cem anos mais tarde, por graça régia de um dos Filipes, na qualidade de administradores do erário público e colectores de impostos – o que dá para perceber como já nessa época a administração central tinha de esquecer inimizades e abrir os cordões à bolsa para contratar no sector privado gestores competentes em matéria fiscal. Os membros desta família acabaram por fazer carreira, através de sucessivas gerações, em diversos serviços dependentes do Conselho da Fazenda do Reino, e embora alguns deles tivessem sido sujeitos a tratos de polé pela Inquisição do senhor D. João V, a verdade é que lograram permanecer no país até aos nossos dias em situação económica sempre muito desafogada.
Cheguei à fala com o dito alfarrabista, um velho miudinho e enfezado – resultado, talvez, dos antiquíssimos genes desenvolvidos na frugalidade alimentar do maná do deserto – e por ele vim a saber que tinha de facto adquirido a arca aos herdeiros do meu tio, convencido de que estava a comprar ouro de lei, mas que, analisado o seu conteúdo com mais detalhe, chegara à conclusão de que havia feito um mau negócio. E foi-me contando: a arca era de pau carunchoso, qual sândalo, qual carapuça; os livros, de reduzido interesse, eram rendilhados de folhas que se desfaziam mal se lhes tocava; os manuscritos não passavam de falsificações, tão grosseiras que até pareciam ter sido feitas com canetas de tinta permanente; os pergaminhos não tinham pergaminhos; o astrolábio não era astrolábio; forais e cartas régias só na Torre do Tombo; o punhal matador da bela Inês era de uma cutelaria de Toledo, sim senhor, mas não ultrapassava a idade do mais novo dos seus netos. Resumindo: um fiasco. Pagara por tudo aquilo dez réis de mel coado, garantiu-me, mas mesmo assim ficara-lhe atravessado na garganta o desastrado negócio, algo que nunca lhe tinha sucedido em muitos anos de actividade mercantil. Perguntei-lhe então pelo manuscrito de Camões, o célebre Parnaso de que fala Diogo do Couto na Oitava Década da Ásia, e o olhos miudinhos do aliado de Javé faiscaram de gozo, despejando-me na cara uma gargalhada bíblica. Que também lhe tinham falado nisso os que lhe levaram a arca, mas que nem por um só momento havia acreditado em semelhante dislate.
Quis ver a arca para me certificar de que falava verdade, mas o meu interlocutor tirou-me daí o sentido. O lenho carunchoso ainda estava em seu poder, à espera da avaliação de um restaurador de móveis, mas o recheio tinha sido vendido pelo preço de aquisição ao representante de um sebo brasileiro de São Paulo que andava pela Ibéria em demanda de uma edição apócrifa do Quixote de Cervantes, encontrando-se hospedado no Hotel Borges, no Chiado. Explicou-me que sebo é o nome dado pelos brasileiros a um estabelecimento que compra e vende livros antigos e que o dito representante do sebo paulistano era um cavalheiro de meia-idade, calvo e gordo, que usava bigode e palitava os dentes, um pouco mais alucinado que o profissional típico do ramo. Mostrou-me o cartão que lhe deixara: fulano tal, consultor bibliográfico.
Hotel Borges comigo, um groom quase infantil que me abriu a porta, um recepcionista ensonado por detrás do balcão.
- Esse senhor saiu esta manhã – disse-me o empregado – mas volta para a semana. Já deixou a reserva feita, pois teve de ir a um leilão de livros antigos em Salamanca. Vai ficar instalado no Hotel Ceylan, fui eu mesmo que lhe fiz a marcação.
Não quis saber de mais nada e fui para casa com o objectivo de fazer a mala e rumar a Salamanca. Dei conta, quando cheguei, que Cláudia não tinha dormido em casa nessa noite, pois a cama estava feita como eu a deixara de véspera depois do meu sono diurno. Achei estranho, porque quando saí para o banco, antes da meia-noite, estava ela sentada ao computador, trabalhando na sua tese. Procurei saber o que teria acontecido, ligando-lhe para o telefone móvel, mas não respondeu. Telefonei para o seu departamento na universidade: que sim, que estava ao serviço nesse dia, nenhum problema. Avisei então o meu chefe sobre a impossibilidade de comparecer ao trabalho durante o resto da semana. Meti-me no carro e pus-me a caminho de Espanha.

(Continua)
D.E.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 1 )

Gilberto, meu tio, dizia ter no sótão, dentro de uma arca, uma vasta colecção de livros e códices antiquíssimos, rolos de pergaminho grafados em latim, cópias de forais e cartas régias, um astrolábio que se salvara do naufrágio da nau S. Bento no Cabo da Boa Esperança, além de duas peças que designava como as mais valiosas de todo o acervo: a lâmina com que o verdugo Pacheco degolou D. Inês de Castro, e um manuscrito inédito de Camões – com grande número de elegias, odes, éclogas e canções – que lhe fora furtado em Lisboa quando se preparava para o entregar na oficina do impressor. Isto era o que dizia o tio Gilberto, pois a arca, com o seu valioso recheio, nunca ninguém a viu. Vivia escondida nos desvãos do sótão, inacessível a olhos de estranhos, embora fosse usada muitas vezes como argumento de autoridade nas dissertações com que o velho tio deslumbrava as visitas de casa. Tinha como tema predilecto nessas dissertações a história do ignominioso atentado dos Távoras contra a augusta pessoa do rei D. José I, embora também costumasse perorar sobre jesuítas e outros parasitas clericais. E sempre que algum assombrado ouvinte, embora esmagado pela erudição, deixava transparecer qualquer dúvida sobre a matéria expendida, o meu tio Gilberto invocava a arca e os seus arcanos – que estavam lá, dizia ele, todos os documentos em que se baseava para a defesa das suas teses.
Não foi feliz este meu tio. Nem com os filhos que a sorte lhe destinou – refractários aos interesses e saberes do pai – nem com os anos de velhice, que poderiam ter sido longos e cheios de interessantes conversas aos serões se não lhe tivesse sobrevindo, mal entrado na reforma, umas dessas doenças que nos habituámos a qualificar de prolongadas, mas que sem detença e grandes prolongamentos o lançou no forno crematório do cemitério do Alto de S. João.
Morto o tio Gilberto, lançadas ao vento as suas cinzas, soube vagamente que a arca e o seu recheio tinham sido vendidos por bom dinheiro a um antiquário do Bairro Alto, informação que acabei por dar como certa e confirmada, visto que os meus primos apareceram logo com uns BMW novos, acabados de sair do stand, e, nesse ano, tiraram duas semanas de férias nas praias do nordeste brasileiro, eles que não tinham por hábito alargar os seus destinos balneares além de Carcavelos ou da Costa da Caparica. Afinal, concluí, a arca continha mesmo as valiosas peças de que falava o tio Gilberto. De outra forma, não teria proporcionado o encaixe financeiro que parecia fazer as delícias dos meus primos. E eu senti vergonha de algumas vezes não só ter duvidado da importância que ele lhe atribuía, como até da sua elementar existência.
Acontece que pela altura do passamento do tio Gilberto, Cláudia, a minha mulher, fazia um fulgurante doutoramento cuja tese – A Expansão Portuguesa no Oriente Durante o Século XVI - lhe levava arrastadas horas de trabalho entre a universidade e a biblioteca, trazendo para casa, nas dissimuladas gavetas do seu portátil, grande quantidade de informação que trabalhava pela noite fora. Concedia-me nesse difícil transe a benesse de um simples encontro semanal nas delícias do tálamo, oportunidade que eu saboreava como escassa, mas que aceitava e compreendia, dado o carácter absorvente do seu trabalho e a reconhecida dedicação com que se lhe entregava.
Diga-se que existia entre mim e Cláudia, não obstante nos amarmos muito, um grande desnível de habilitações académicas e de estatuto profissional. Enquanto ela dava aulas na universidade e preparava o seu doutoramento em História, eu tinha fracassado no curso universitário, ocupando-me em trabalhos precários, inadequados à minha formação, como, por exemplo, vigilante nocturno de uma empresa de segurança ou vendedor de soluções de informática em mercado residencial. Foi numa manhã em que regressado a casa após uma noite de vigília na sede de uma instituição bancária, a horas em que Cláudia já havia saído para a universidade, abeirando-me da sua mesa de trabalho vi aberto o grosso volume da Oitava Década da Ásia, de Diogo do Couto, em cujo livro quinto, capítulo nono, ela tinha sublinhado a seguinte passagem:

Neste Inverno começou Luis de Camões a compor hum livro muito docto de muita erudição que intitulou Parnaso de Luis de Camões, porque continha muita poesia, filosofia, e outras ciencias, o qual lhe desapareceo, e nunqua pude em Portugal saber delle.


Estas linhas do continuador de João de Barros nas Décadas da Ásia fizeram-me pensar de imediato na arca do tio Gilberto e no manuscrito do Épico que ele dizia estar lá guardado. Será que se tratava desse precioso livro que, segundo o historiador, Luís de Camões ia compondo em Moçambique enquanto não encontrava meios para pagar a viagem de regresso à Pátria? Se assim fosse, por mais dinheiro que os meus primos tivessem recebido do antiquário a quem venderam a arca, tratar-se-ia sempre de uma soma insignificante, face à importância daquele manuscrito. Um livro perdido de Camões, uma preciosa obra lírica, entregue dentro de uma arca a um obscuro comerciante de antiguidades por dois BMW de último modelo e umas semanas de férias no Brasil. Fiquei indignado com semelhante atentado à cultura, estarrecido perante a possibilidade de aquele tesouro poder cair em mãos erradas. E resolvi agir.

(Continua)

D.E.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 3 )

- A senhora tem de decidir, por favor, o que pretende escrever – disse-lhe ele em determinada altura. E ela ficou cativada por aquela observação tão cheia de delicadeza que até fazia dela a escritora – assim se apresentaria, de facto, na capa do livro! – quando na realidade não passava de uma informante da história, alguém que recorria aos serviços de um ghost-writer por não ser capaz de desenvolver um texto aceitável, apenas uma escrita incipiente, imprópria para aparecer em letra de forma mesmo nas páginas da mais obscura edição. E pensou que o escritor, além daquele pormenor interessante das mãos, devia ser uma pessoa sensível, dador e merecedor de afectos, sentindo pejo em transmitir-lhe os incidentes mais lamentáveis da sua vida conjugal. Começava a pensar que o importante na vida não era alimentar a memória dos episódios infelizes, mas conservar no coração o que tinha havido de bom, aquilo de que podia lembrar-se com satisfação, pois esse seria o melhor caminho para ultrapassar os reveses e poder voltar a amar. Ainda andou por ali uns dias, na oficina de escrita, a atrapalhar o labor do criativo, sem saber muito bem o que fazer, sempre fascinada por aquelas mãos que a transportavam a outra idade, a um tempo distante e perfumado, até ao momento em que o escritor, em estado de desânimo, resolveu desvincular-se do contrato de prestação de serviços por falta de cooperação da cliente.
Arrumaram as coisas a bem, pagando-lhe ela as horas perdidas, deixando ele a porta aberta para, em outro momento, com um projecto mais definido, poderem voltar a colaborar.
Durante as semanas seguintes, sempre que passava pelo centro comercial não se dispensava de ir visitar a oficina de escrita. Acenava ao escritor do lado de cá do balcão, e se ele estava disponível e lhe vinha estender a mão num gesto de amizade, ela ficava uns segundos a olhá-la, quase emocionada, como se visse uma pedra rara ou uma flor.
E, coisa extraordinária, algo se enraizava nela que a fazia sentir-se outra mulher: uma liberdade interior, uma disponibilidade para amar, fora das amargas lembranças e dos humores negativos. Começou a ler os grandes poetas do amor, tanto os modernos como os antigos, como se procurasse nessas  leituras uma espécie de exercício de manutenção da alma, com a mesma disposição de quem frequenta o ginásio ou pratica um desporto para manter a forma física. Foi então que descobriu as Rimas de Petrarca. Conhecia-o como o poeta da paixão por Laura, um amor jamais consumado, mas que, apesar disso, sempre morou na sua poesia, mesmo depois da morte da mulher amada. Começou a ler com emoção esses poemas onde, por vezes, descobria figuras e formas de dizer também usadas por Camões. Tocou-a em especial o soneto Se amor não é, qual é meu sentimento?, talvez por ter a ver com as suas dúvidas sobre algo que sentia nascer, um misto de contentamento e insatisfação, um desassossego brando que a levava por pensamentos e sonhos há muito tempo distantes de si. De tantas vezes o ler, já o tinha decorado:

Se amor não é, qual é meu sentimento?
mas se é amor, por Deus, que cousa e qual?
se boa, que é do efeito ásp’ro e mortal?
se é má, o que é que adoça tal tormento?

Se ardo a bom grado, onde é pranto e lamento?
e se a mau grado, o lamentar que val’?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
tanto em mim podes sem consentimento?

E em sem razão me queixo, se o tolero.
E em tão contrários ventos, frágil barca
me leva em alto mar e sem governo,

tão cheia de erros, de saber tão parca,
que eu mesmo nem sequer sei o que quero,
e a tremer no estio, ardo de inverno.


Dirigiu-se à oficina de escrita para agendar uma reunião com o escritor. Ele teria de lhe escrever um conto, um simples conto, que fosse a expressão viva do sentimento que aquele soneto lhe despertava. Abrir-se-ia com ele, mostrar-lhe-ia a alma apaixonada, e a sua escrita ágil derramar-se-ia nas folhas de papel como uma promessa de felicidade.
Veio o dia aprazado. Os olhos do escritor correram os catorze versos do soneto com o mesmo sobressalto do versejador a quem dão um mote difícil para compor um poema, tentando apanhar uma brecha onde estribar a prosa, uma palavra ou uma expressão que soltasse a torrente da escrita. Chupou o cachimbo e coçou a orelha, como costumava fazer antes de proferir uma das suas austeras sentenças ou de se lançar ao trabalho da escrita, mas nenhuma musa veio em seu auxílio. Ainda olhou para as lombadas da estante povoadas pela sombra de Paulo Coelho, como se implorasse a ajuda do plumitivo para tão aflitiva situação. Mas nada. Embatucou como um estudante a quem fazem uma pergunta numa prova oral e, desconhecendo a resposta, lança o olhar aturdido sobre as carrancas do júri examinador. Ela ficou à espera do juízo sobre o poema e a sua proposta de narrativa, admirada da hesitação que lhe via no rosto, e não foi preciso muito para descobrir que ele nunca daria conta do recado. O espírito de Petrarca, de que estava cheia, não tinha tocado a alma do escrevente do alheio. Sentiu pena, mas, ao mesmo tempo, aceitou-o como facto natural. Sabia que havia outros caminhos e outras viagens. E olhando as mãos do escritor abandonadas sobre o tampo da secretária, imóveis, como se um medo ou um grande mal lhe tivessem tolhido os movimentos, já não via nelas a mesma beleza de outros dias. Poderia enganar-se, mas pareciam-lhe apenas umas mãos vulgares, mais ou menos iguais a tantas outras que conhecia.
D.E.
Nota: A tradução do poema de Francesco Petrarca (1304- 1374) é de Vasco Graça Moura.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

AMADEO E O ESTUDANTE DE ARTE


O estudante de arte perdeu a visita de estudo da Faculdade à exposição de Amadeo porque andava demasiado ocupado com a organização do seu jantar de aniversário. Todos sabemos o trabalho que dá organizar um jantar de aniversário: escolher o restaurante, dirigir os convites, confirmar as presenças, assegurar os meios de transporte necessários. São horas e horas de porfiado labor, de dedicação severa. Por essa razão, apenas por essa razão, o estudante de arte falhou o encontro com as 260 obras expostas. Mas que importância poderão ter o álbum XX Dessins, a Cozinha de Manhufe, o Armory Shaw de Nova Iorque, a Procissão do Corpus Christi, mais o cubismo, o pontilhismo, o expressionismo e todos os revérberos da arte perante a luminosa tela dos 21 anos? Pouca importância, concedo. Não é por isso, pois, que vou deixar de te amar, meu filho.
D.E.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 2 )

Fez notar o escritor, logo na primeira sessão de trabalho, que para interessar o vasto público na leitura do livro não bastaria contar a história da sua infeliz experiência matrimonial, pois tratando-se de episódios da vida de uma pessoa desconhecida, ninguém, para além do círculo restrito de familiares e amigos, se disporia a queimar os olhos em semelhante prosa. Seria necessário que o leitor ou a leitora pudessem retirar do texto algum ensinamento. O livro, para lá de contar uma história, deveria ter um conteúdo pedagógico capaz de ajudar quem se encontrasse em situação idêntica. E assim, decidiram-se por uma estrutura de composição que teria no final de cada capítulo umas curtas notas de aconselhamento e pequenos exercícios de aplicação para testar a assimilação das lições de vida apresentadas. Uma espécie de livro de auto-ajuda, como está bem de ver.
O escritor, diga-se, era desses artistas que não interpõem entre o nascimento das palavras e o papel que lhes serve de berço os esgares de plástico dos teclados, os revérberos dos ecrãs e o matraquear das impressoras a jacto de tinta. Escrevia à mão, num cursivo inglês moderadamente inclinado, como se as palavras se desfizessem em permanentes reverências ao papel que as acolhia.
Ela começou a maravilhar-se com aquela escrita que brotava com tanta facilidade a partir dos episódios por si relatados, a apreciar a elegância das linhas correctamente dispostas sobre as folhas, saindo daquelas mãos cuja beleza entretanto descobrira, aqueles dedos esguios de unhas brilhantes, umas mãos que lhe lembravam as do marido nos tempos distantes de enamorada. Apaixonara-se por ele, entre outras coisas, pela beleza das mãos. O escritor também as tinha bonitas, e assim, deixando-se levar por ternas memórias, ela ficava a olhá-las como se fossem as mesmas que antigamente lhe percorriam as zonas erógenas do corpo ou se detinham, apaziguadoras, sobre o balcão sereno dos seus ombros. E começou a manifestar-se nela, num sentimento que crescia de sessão para sessão, uma falta de vontade para evocar os maus tempos do casamento, apetecendo-lhe antes saborear a lembrança dos momentos felizes. Por essa razão, a progressão do trabalho marcava passo numa espécie de anticlímax todo feito de memórias felizes e derrogações do que importava narrar.
- Se isto continua assim, minha senhora, ainda encheremos mais páginas que as da  Recherche – observava com ironia o profissional da escrita, lembrando-lhe de que o livro não deveria ir além das cem páginas, sendo forçoso, por isso, entrar rapidamente na matéria principal. E interrompiam a sessão.
Ela voltava no dia seguinte, e bem tentava falar dos episódios sombrios, daquele tempo em que o amor, já irremediavelmente perdido, dera lugar à falta de respeito e à violência entre os cônjuges. Fora essa a sua intenção inicial, o motivo que a levara a pensar no livro. Mas à vista das mãos do escritor, perante a forma elegante como se apresentavam e moviam sobre a secretária, escrevendo ou esperando pelos elementos que ela lhe transmitia, só se lembrava dos momentos de ternura e dos deleites proporcionados por outras mãos de semelhante beleza. E não lhe saía nada do que interessava, só se lembrava dos tempos do amor, insistindo com notas e factos que não fazendo progredir o trabalho começavam a exasperar o paciente criador artístico.

(Continua)

D.E.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 1 )


Ela nem queria acreditar: num desvão do corredor do centro comercial, num daqueles pontos do labirinto onde, no caso de incêndio, ninguém conseguiria dar com a saída de emergência, acabara de abrir, no mesmo espaço onde já se tinham finado negócios de engomadaria e peças de arte africana, uma loja completamente remodelada com um balcão, duas secretárias e uma vistosa estante, apresentando no vidro da montra o seguinte letreiro:

OFICINA DE ESCRITA
Dê-nos a sua ideia e nós passamo-la a escrito!


Se não fosse o saco dos congelados acabados de adquirir no minimercado, teria entrado de imediato. Calculou, porém, que seria demorada a entrevista, que pretenderiam conhecer em pormenor o seu projecto, e ela teria de abrir o jogo, de ir ao fundo da questão e indagar sobre honorários, processos de trabalho, prazos de execução, pedir informações sobre os custos de edição, de lançamento e de distribuição. Tudo isso levaria bastante tempo, descongelariam as ervilhas e as postas de peixe, lá se ia o governo da semana. Depois, já preenchera um caderno com vários apontamentos, uma boa dúzia de frases lapidares e algumas ideias feitas, o melhor seria voltar em outra altura com todos os elementos e discutir o assunto sem precipitações.
Andou uma semana a pensar na melhor forma de abordar o caso. Tinha uma grande vontade de escrever aquele livro, mas as frases que iam nascendo no caderno não eram encorajadoras. Sentia a dificuldade do ofício de escrever: as armadilhas do léxico, as figuras de estilo, a descrição dos ambientes, a técnica narrativa em cada um dos seus momentos – exposição, complicação, clímax, epílogo – , aprendidos num manual de escrita criativa que comprara e lera quando ainda alimentava ilusões de poder realizar o trabalho por sua conta e risco.
Aprazou a visita à loja para um certo dia ao fim da tarde, à hora em que o centro comercial se enche de tépidos odores a café e bolos.
O escritor que a atendeu – um apreciador de Paulo Coelho, a avaliar pelos metros de estante, junto da sua secretária, onde desfilavam as mais variadas edições do prolífero autor – ouviu com atenção, tomando pequenas notas, o projecto de escrita por ela proposto. Depois, deteve-se uns instantes numa fermentação de pensamentos elevados, de reflexões austeras, mordendo o cachimbo e coçando a orelha. Finalmente, olhando-a com um ar infinitamente compreensivo, assentiu:
- A senhora precisa de ajuda, nós vamos ajudar.
Abriu então as argolas de um dossiê e extraiu dele uma bolsa de plástico com várias folhas de papel: contrato de prestação de serviços, preçário, relação de custos editoriais, e um pequeno inquérito para avaliar, no final do trabalho, o grau de satisfação do cliente.
Que o preço era puxado percebeu ela, quando, já em casa, se deitou a fazer contas com a máquina de calcular. Porém, considerando a hipótese de uma edição de quinhentos exemplares, mais de trinta vendidos na família, outros tantos no local de trabalho, uma boa dose junto de vizinhos e amigos, mais os que se escoariam através da distribuidora, sempre cobriria parte das despesas. E o dinheiro não era o mais importante. Eram outros os objectivos que a moviam. Da mesma forma que aquele político injustamente despedido das suas funções, apeado levianamente do poder quando dispunha de maioria parlamentar estável, sentiu necessidade de denunciar em livro a cabala de que fora vítima, também ela, mulher e mãe de família, desprezada pelo marido ao fim de tantos anos de fidelidade conjugal, se sentia obrigada a explicar, para que todos soubessem e, amanhã, os filhos e netos não viessem a ser intoxicados por uma falsa versão dos acontecimentos, o fio de sucessos que havia conduzido à ruptura matrimonial e à consumação do divórcio.
(Continua)

D.E.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

NATIVIDADE


Manifestando a minha curiosa imunodeficiência perante o espírito natalício, aqui vos deixo esta NATIVIDADE profundamente barroca de JOSEFA DE AYALA, mais conhecida por JOSEFA DE ÓBIDOS, nascida em Sevilha a 20 de Fevereiro de 1630 e falecida em Óbidos a 22 de Julho de 1684, figura maior da pintura portuguesa do século XVII.

terça-feira, dezembro 19, 2006

UMA HISTÓRIA DE NATAL : As Tribulações de um Dador Benévolo

Assediava-o uma inusitada vontade de praticar o bem, de amar o próximo como a si mesmo, de se abrir a rasgos de generosidade em relação a indigentes e outros desprotegidos da sorte. Quem o conhecia – amador da sua pessoa acima de todas as coisas – só podia atribuir tal modificação ao espírito do Natal, à ambiência da quadra festiva que se vivia. Os feéricos ornamentos das ruas, os apelos à paz e ao amor feitos naquelas canções cheias de emoção que a rádio e as instalações sonoras das superfícies comerciais com tanta insistência difundiam, só podiam contribuir para reforçar os laços de solidariedade entre os homens, para fazer despertar os tesouros da fraternidade, enchendo-lhe o coração de bons sentimentos e benévolas disposições. Depois de todo um ano em que atraiçoou amizades, atropelou direitos alheios, mentiu e guerreou, era extraordinário sentir o maravilhoso estado de alma que nele se manifestava.
Naquele Natal, a maior das boas acções que tinha projectado praticar era uma dádiva de sangue. Havia tantos acidentes na estrada, tantos idosos a necessitarem de intervenções cirúrgicas e de transfusões e, por outro lado, como os serviços de saúde não cessavam de informar, tanta falta de sangue de todos os tipos, que estava firmemente disposto a tornar-se um dador benévolo.
Numa manhã da semana que antecedia o dia de Natal, arfando de amor pelo próximo, rumou ao serviço de recolha de sangue do hospital da sua área. Tirou a senha, esperou pelo atendimento. Não demorou muito a sentar-se diante de uma jovem médica, bonita e inquiridora.
- Idade?
- 29 anos.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Sofre de alguma doença crónica?
- Não.
- Alguma vez teve contactos sexuais com homens?
Aturdiu-se com esta pergunta.
- Sim ou não? – insistiu ela.
- Não!
- Alguma vez utilizou drogas por via endovenosa?
- Não.
- Quantos parceiros sexuais teve nos últimos seis meses?
Aqui, hesitou na resposta, um pouco perturbado. Não se importava nada de manifestar o número de mulheres com quem praticara sexo nos últimos tempos. Afinal até era daqueles que tomavam nota na agenda de cada vez que uma nova experiência tinha lugar. Não fazia segredo das suas conquistas e tinha sempre aberta, para quem quisesse ver, a sala dos troféus. Mas incomodava-o que a questão lhe fosse apresentada de forma tão neutra e profissional por aquela jovem médica de rosto atraente e corpo bem feito, e, sobretudo, que ela não tivesse juntado ao radical da palavra “parceiros” o morfema de género feminino “a” adequado à sua condição de heterossexual. Lá respondeu, enfatizando a palavra “parceiras”.
- Em alguma dessas experiências prescindiu do uso de preservativo?
Meteu a mão na consciência, até estava com vergonha de responder, mas logo se abriu perante a insistência da inquiridora. E foi aí que as coisas começaram a complicar-se. Tinha tido não uma, mas várias relações de risco, o que não quadrava com os padrões comportamentais definidos para a aceitação dos dadores benévolos. Ainda por cima fizera uma tatuagem nas costas, adorno corporal que pareceu não agradar à médica.
- Bem, para já não podemos aceitar o seu sangue. Vamos ter de fazer análises.
Esmagado pela rejeição, tartamudeou umas palavras de súplica. Que não havia nada de mal com o seu sangue, que era um homem saudável, que aceitassem a dádiva e logo fariam as competentes análises. Veriam como era sangue de primeira.
- E pensa o senhor que o hospital se pode dar ao luxo de gastar bolsas de recolha e demais consumíveis com sangue que poderá não estar em condições? Até parece que não conhece o rigor das restrições orçamentais – retorquiu a jovem médica, preparando a seringa a fim de realizar a colheita para análise.
Saiu cabisbaixo. Ainda passou pela salinha anexa para comer umas bolachas e beber um cálice de vinho do Porto. Estava mesmo a precisar.
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma exemplar na onda de fraternidade própria da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver plenamente o espírito do Natal…
No caminho para casa ia meditando, pesaroso, na melhor forma de ultrapassar aquele revés. Distribuir comida aos sem-abrigo do bairro? Dar esmola para as obras de caridade da igreja? Comprar uma caixa de postais de boas-festas da Unicef? Alguma solução teria de encontrar para concretizar o seu projecto de solidariedade para com os desvalidos da sorte. E não poderia passar daquela semana que ainda faltava para o dia de Natal, pois estaria decerto completamente ocupado consigo próprio e com os seus projectos pessoais em todo o tempo das cinquenta e uma semanas que se seguiam.

D.E.

domingo, dezembro 10, 2006

CARTA AO PAI NATAL

Ex.mo Senhor,
Devo dizer-lhe, em primeiro lugar, que não encontrará nesta carta as expressões afectuosas e de submissa pedinchice que está habituado a receber dos seus inúmeros admiradores espalhados por todo o orbe. De facto, não só não nutro qualquer simpatia pela rotunda e esdrúxula pessoa de V. Exa., como, por razões que adiante compreenderá, não me é permitido aceitá-lo como representante supremo desta época festiva em que nos habituámos a viver e a comemorar o nascimento do Filho de Deus.
Certamente se recordará que na meninice dos homens e mulheres que, neste país, têm hoje cinquenta e mais anos de idade, nunca a pessoa de V. Exa. era chamada para a entrega de prendas ou brinquedos na noite mágica de Natal. Tínhamos para isso uma figura bem mais credível e ajustada à quadra – o Menino Jesus – a quem não escrevíamos cartas, pois tratando-se de um recém-nascido não poderia naturalmente lê-las, mas a quem rezávamos de joelhos no chão, junto às chaminés de nossas casas, pedindo o carrinho de corda, o triciclo, a boneca de cartão ou os chocolates. A personalidade de V. Exa. era praticamente desconhecida das nossas infantis pessoas, só nos chegando notícia sua, eventualmente, através de algum postal de boas-festas remetido do eldorado americano por um qualquer parente ali emigrado.
Nestas últimas décadas, beneficiando da cumplicidade dos poderes constituídos, tem V. Exa. assumido a representação simbólica do Natal. Paulatinamente, como quem não quer a coisa, foi matando o Menino Jesus que sempre habitara os nossos sonhos de criança – um crime tão bárbaro e nefando como a própria morte do Jesus adulto – insinuando-se junto das novas gerações através de agressivas campanhas de publicidade organizadas pelas grandes multinacionais dos electrodomésticos, das consolas, dos jogos de computador e de toda a classe de brinquedos. V. Exa. vendeu a ternura do Natal aos capitalistas da SONY e da NITENDO, aos fabricantes de sonhos de latão e aos oragos anunciadores de promessas de felicidade descartável. Quem o quer ver é a enviar as suas legiões de clones para a porta das superfícies comerciais, incentivando o consumo desregrado, promovendo o endividamento das famílias e assediando as criancinhas com beijos babados de infame consumismo.
Acresce que a figura e os modos apresentados por V. Exa. são do mais grotesco que se pode imaginar. Ri de uma forma estúpida e desconchavada, veste um fato ridículo que mais parece a farpela de um palhaço, não faz a barba, há quem diga que cheira mal dos pés, e, suprema ironia, garantem-nos que desce pelas chaminés para distribuir as prendas e os brinquedos, quando, com a gordura que ostenta, nem pela porta da garagem seria capaz de passar. Depois, contam-nos que viaja num trenó puxado por renas, entre a Lapónia, sua terra de origem, e os lares de cada um de nós, quando é sabido que tal trenó não existe, é pura ficção para dar um toque de romantismo à sua existência árida, pois as únicas viagens que faz, sabemo-lo bem, fá-las de avião entre as grandes praças financeiras, controlando a evolução dos seus negócios e recebendo as chorudas comissões que lhe são atribuídas pelos fabricantes de brinquedos e de electrodomésticos de todo o mundo.
Não tenho dúvidas que, com V. Exa., o Natal, na sua pureza, está irremediavelmente perdido. Porque o Natal não pode ser este falso esplendor de bens de consumo, sabiamente regido pelos interesses do capitalismo industrial e financeiro. O Natal não pode ser este vazio de alma, este deserto de emoções em redor da mesa farta e de uma árvore, dita de Natal, reverberando luminárias espúrias contra a luz verdadeira da estrela de Belém. Não bastava ter V. Exa. arrancado o Menino Jesus do coração dos homens; era preciso também que os reduzisse, como escravos, a um mero instrumento dos seus desígnios de lucro e enriquecimento ilegítimo.
É por tudo isto e pelo mais que se não diz por ser verdade – cito aqui, de cor, o poeta da Pedra Filosofal – que lhe escrevo estas modestas mas inflamadas linhas, como vivo protesto de quem não se conforma com a ditadura materialista que V. Exa. representa.
Sem outro assunto de momento, e na esperança de topar o menos possível com as execrandas réplicas de V. Exa. que por aí pululam neste período natalício, subscreve-se,

Este que sinceramente o abomina,


D.E.

quinta-feira, novembro 23, 2006

UM ESTRANHO HOMICÍDIO

Era seguido por um bode de grandes cornos e pêlo farto, tão chegado às suas pernas que mais parecia bicho de espécie canina. Se parava, logo o animal detinha o seu andamento; se estugava o passo, procurando deixar para trás o seguidor, este dava corda aos cascos e o focinho barbudo não desgrudava dos calcanhares do bípede.
Há uma hora que andava nisto, noite de Lua cheia, por carreiros e estradas de terra de regresso a casa.
O bode aparecera-lhe numa curva do caminho, inopinadamente, como se tivesse saído das funduras do chão. Primeiro, imaginara tratar-se de animal tresmalhado do rebanho ou fugido de algum curral, outra explicação não encontrava, mas depois, observando o seu estranho comportamento e sentido o bafo gelado que lhe deitava nas pernas foi levado para outro campo de ideações.
Aqui anda coisa do diabo, pensou, passando os dedos sob a camisa pelo espaço aberto entre os botões, tocando no crucifixo e no sino-saimão pendentes do fio de prata que trazia ao pescoço. Se fosse homem de rezas, ter-se-ia benzido e pedido auxílio a São Jorge, intrépido matador de dragões e outras bestas ruins. Como não era, meteu a mão no bolso das calças e fez uma figa.
Cada vez mais perturbado com a estranha situação em que se via, chegou ao pé de uma velha casa abandonada onde, poisado numa estaca de vinha, piava um mocho. No alpendre da casa, pendurado numa trave, um rolo de corda grossa, aparentemente sem préstimo, sugeriu-lhe a maneira de se livrar do pertinaz acompanhante. Fez um laço que passou pela cabeça do bode, apertou, deu uma segunda volta, e prendeu a extremidade da corda, com engenhoso nó, ao tronco sólido de uma figueira.
O caprino pareceu aceitar com brandura a vontade do humano, como se revisse nele o próprio pastor, e até facilitou, deixando-se conduzir para junto da árvore. Mas quando se sentiu preso e bem preso, tentando libertar-se sem sucesso, o colar de corda a estrangular-lhe a garganta, tomou-se de ímpetos bestiais, modos assustadores, escoiceando como muar, saltando como se tivesse molas, investindo a cornadura contra o lenho da figueira, pobre vegetal, nunca os da sua espécie haviam sentido algo de tão terrífico e extraordinário desde o dia em que Judas Iscariote, apóstolo falso, se dependurou nos ramos daquela antepassada distante. A um esticão poderoso que pareceu abalar toda a árvore rompeu-se a corda e o animal desarvorou estrada fora levando lume nos cascos e levantando uma grande nuvem de pó.
Lembrou-se então de histórias que lhe contavam quando era menino. O triste fado dos que vagueiam à noite pelos caminhos, transformados em bichos quadrúpedes, atormentando os passantes com a sua presença deletéria. Espojam-se ao pôr-do-sol em pegadas frescas de animais e deixam sair o lobisomem que lhes mora na alma. Convenceu-se de que havia tentado medir forças com um lobisomem, um desígnio estulto, que poder teria um pobre mortal para enfrentar seres e forças sobrenaturais? Mas, ao mesmo tempo, sentiu sair de cima de si um grande peso por se ter livrado daquela indesejada companhia.
Durou pouco a sensação de alívio. Ao chegar a uma encruzilhada, escassas centenas de metros adiante, distinguiu à luz do luar um vulto corpulento de homem que jazia no chão. Chegou-se ao pé para ver e aí gelou-se-lhe todo o sangue do corpo. Tinha os dedos dos pés e das mãos curvos como garras, os olhos abertos e revirados, grossos pêlos saindo-lhe da cara, a boca torcida num ricto de dor. Ao pescoço, estranguladora, a corda com que tinha acabado de prender o bode.
Fugiu apavorado, não conseguiu dormir em toda a noite. Sentia medo e um enorme peso na consciência pela responsabilidade que lhe cabia naquela morte.
No dia seguinte, ao ter notícia da descoberta do corpo, apresentou-se no posto da Guarda e deu-se como culpado do homicídio.
D.E.
(Imagem obtida em jangadabrasil.com.br)

quinta-feira, novembro 16, 2006

O ELOGIO DA LEITURA

Lendo o romance Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, dei com aquela parte do primeiro volume em que Françoise, criada da senhora Octave na sua casa de Combray, maneja uma faca para matar um frango que resiste desesperadamente, apesar de ter o pescoço já praticamente separado do corpo. É pelos olhos de um narrador quando adolescente que a imagem nos é transmitida pelo autor. Lembrei-me então dos tempos de infância e da forma como via e sentia a morte que destinávamos aos animais. O que me perturbava não era o facto de se matar um animal para nos servir de alimento, desígnio que achava natural, mas sim a profusão de formas e meios que existiam para o fazer, como se quiséssemos aproveitar as nossas necessidades de sobrevivência para ensaiarmos diferentes métodos de roubar a vida a cada uma das nossas vítimas. Via matar galos e galinhas com uma lâmina afiada que os degolava, lentamente, o sangue escorrendo para uma tigela de barro. Os coelhos eram abatidos com uma paulada atrás da cabeça, agarrados pelas patas traseiras. Aos pombos, de cuja carne se fazia uma saborosa canja, apertava-se-lhes o bico entre o polegar e o indicador por cima de um estrebuchar de penas. Os porcos eram deitados sobre um banco comprido, amarradas as patas, bem seguros por robustos braços de homem, para que uma faca poderosa pudesse sondar-lhes o coração, cavando o grosso canal por onde singrava o sangue até ao vazadouro do alguidar. Aos carneiros e ovelhas metia-se-lhes um ferro afiado pelo alto da cabeça, deixando o animal prostrado, olhos revirados e língua pendente de um canto da boca, escorrendo baba, pronto para ser aberto, esfolado e esquartejado. Encontrei mais tarde nestas diferentes formas de matar um reflexo da inteligência humana, uma arte capaz de estabelecer para cada vítima o modus faciendi adequado, bem diferente dos processos usados pelos chamados irracionais para matar as suas presas, sempre da mesma forma, segundo modelos de sobrevivência e conservação das espécies radicados nos mais básicos instintos. Quando encontramos pequenos chumbos na carne de lebres e perdizes, anzóis e pedaços de fio na boca de peixes, deparamos apenas com manifestações dessa arte de matar que a espécie humana tão bem cultiva. Em relação aos nossos semelhantes também se desenvolveram técnicas de morte que primam pela variedade, pela escolha criteriosa, oportuna e conveniente, fundadas em tradições e pressupostos de raiz cultural e religiosa. Se hoje ninguém morre crucificado é porque essa foi a forma de morte infligida ao que veio em nome de Deus, e praticá-la seria atentar contra o que de mais profundo existe na nossa moral cristã; mas recorrer à forca, como os sistemas penais do mundo ocidental sempre fizeram, e continuam a fazer, é servirmo-nos de um método de matar que a insídia de Judas Iscariote, dependurado na triste figueira, parece legitimar. Entre os povos tupis do Brasil, como podemos ler nos textos de escritores e poetas do primeiro romantismo brasileiro, a condenação à morte consumava-se com um golpe desferido na cabeça do condenado com o tacape, uma espécie de poderoso cacete. A morte por envenenamento, praticada ao longo dos séculos, tem raízes profundas na herança cultural da Antiguidade Clássica: Sócrates, o grande filósofo de que nos fala Platão, foi condenado a morrer por envenenamento. Envenenada morreu Fedra nas tragédias clássicas de Eurípides, Séneca e Racine. Morreram na fogueira milhares de vítimas da intolerância religiosa e política. António José da Silva, o Judeu, comediógrafo, foi queimado em auto-de-fé na presença de D. João V. Gomes Freire de Andrade, conspirador liberal, foi mandado enforcar, tendo sido queimado o seu cadáver, pelos que governavam o Reino em 1817, conforme ensina a História e nos é revelado, entre outros, pelo texto dramático de Sttau Monteiro Felizmente há luar. Ao longo dos tempos, distantes e recentes, muitos conheceram a morte diante de pelotões de fuzilamento, sentados em cadeiras eléctricas, injectados, garrotados, sob o fragor de bombardeamentos e explosões, em desterros de fome e de sede. Grande é a criatividade humana nesta arte de matar semelhantes e dissemelhantes.
Quando nos pomos a ler um roman-fleuve como o de Marcel Proust, pode bem suceder que a propósito de um tema ou passagem do livro nos surja um pequeno rio de pensamentos e palavras. Pode até não passar de um simples regato. Mas esse fluir de águas, essa corrente do espírito, maneira de viajarmos por tempos e espaços, é um dos grandes tesouros que habitam os livros. É despertarmos ideias e sentimentos que estão dentro de nós, ligarmos o fio das emoções, deixarmos correr a escrita. Falarmos de morte, cantando a vida. Esse é um elogio que deve ser feito à leitura.
D.E.

quinta-feira, novembro 02, 2006

CÂNTICO IMPERFEITO PARA UMA TABERNA DE PROVÍNCIA

Vemo-lo seco de carnes, curvado sobre a torneira da pipa, tremendo-lhe nos dedos ancilosados o copo de vidro grosso que o esguicho vai tingindo de escuro. Sob uma lâmpada frouxa, enquanto larga sobre a tábua do balcão o avio do freguês com nome e registo de fiados inscritos num destrambelhado caderno de folhas de papel pardo, dá para notar que tem barba de vários dias, um olho baço onde há muito não se detém um grão de luz, uma camisa esfiapada e umas calças que não sendo justas nem largas estão presas à cintura por uma volta dupla de barbante.
Do lado de dentro do balcão há um alguidar de tremoços que ressumam sal e servem para puxar a pinga, uma pia onde os copos se passam por água e umas poucas garrafas sujas de vinho tinto com espessas películas secas agarradas aos fundos.
Não dá para perceber se a telefonia da taberna toca alguma moda conhecida ou se debita noticiários espúrios. Nestes lugares onde nos encontramos é tudo silêncio. Só podemos entender o que se fala pelo movimento dos lábios, ou pela linguagem dos olhos, ou pelos rictos que desenham a cara dos homens, trabalhadores de enxada, jornaleiros da gleba contratados na praça pública, as mãos cheias de calos e as gargantas com uma sede igual à da terra.
Nas paredes singram aranhas desajeitadas, alojadas em panos de teias, e há insectos que vêm à luz e que os homens procuram afastar com movimentos bruscos da cabeça e dos braços.
Há um bom bocado que a noite deu em cair sobre os telhados e as paredes das casas, envolveu a torre da antiquíssima igreja, encheu de breu todas as ruas e praças, o coreto, os mármores brancos das lápides do cemitério, a capela de Nossa Senhora do Desterro, as pontes e a fonte. A luz que se côa através das cortinas das janelas e sai das raras montras de lojas de comércio não ousa contrariar o seu império.
Pelo declive que leva à linha do rio sobe agora uma névoa muito clara e lúcida que tirante os voos rasantes de querubins em nada fica a dever à que se expande pelas alamedas destes lugares de onde observamos. Só que aquela, carregada de humidade terrena, é fria e dá cabo dos ossos. Encosta-se então a porta como remédio para o desagasalho, os fregueses ficam do lado de dentro, quem se quiser chegar que empurre as tábuas e entre.
Corre o vinho e o tremoço, muito fiado. De vez em quando, uma moeda cai na gaveta como um badalo choco. Gostaríamos de poder ouvir o que os homens dizem.
Vemos agora umas meninas que assomam à porta por onde se passa da casa para o espaço público da taberna. São puxadas para trás por dois braços fortes de mulher. Aquele lugar não é para elas.
Começa a fazer-se tarde, há um pedaço de tempo que nenhum freguês demanda aviamento, seja de bebidas fermentadas, abafados ou produtos de destilaria, que de tudo há na taberna para satisfação da clientela. Também se vendem pirolitos e laranjadas, mas estas qualidades são as que saem menos, procuradas apenas por mulheres e crianças a horas diurnas. São magros os dinheiros dos homens e os fiados são para arrumar na primeira ocasião. Quando são, folheia-se o caderno de papel pardo, vê-se onde está o nome, a data, o estrago feito, e realiza-se a paga.
Agora é muito tarde. Entra-lhe no corpo moído uma modorra feita de todas as canseiras do dia. Está sentado num pequeno banco com uma mão apoiada na torneira da pipa, cabeceando às arremetidas do sono, prestes a render-se, dorido das horas de trabalho nas terras da vinha, sachando as ervas daninhas, curando, enxofrando. É então que um freguês menos escrupuloso lhe surripia um copo de bagaço.
Entretanto, a névoa já se tornou cerração. Os homens começam a sair da taberna, cada qual para seu lado, casas e tugúrios da vila, casais próximos e menos próximos, apalpando caminhos, os olhos piscos de nevoeiro e álcool. Quem tem pernas monta-se em velhas bicicletas pasteleiras, quem não tem leva-as seguras pelo guiador, como quem conduz um animal pela arreata.
Vemos no relógio da torre da igreja que já passa das onze. Amanhã o trabalho começa ao nascer do sol.
Sai o último freguês, fecha-se a porta. As meninas já dormem?
O nevoeiro cerrado toma conta de tudo. Brota do escorredoiro do rio numa nuvem de muitos braços, mete-se em todas as ruas e vielas, espalha-se nas praças e terreiros, branco, muito branco, como nestes lugares de onde lançamos o olhar sobre a vida e a condição dos homens.
Na taberna há ainda uma frincha de luz que se escoa por baixo da porta, a única que agora vemos na noite da vila, arcano sinal à procura do céu.
Estamos à tua espera.


D.E.