- A senhora tem de decidir, por favor, o que pretende escrever – disse-lhe ele em determinada altura. E ela ficou cativada por aquela observação tão cheia de delicadeza que até fazia dela a escritora – assim se apresentaria, de facto, na capa do livro! – quando na realidade não passava de uma informante da história, alguém que recorria aos serviços de um ghost-writer por não ser capaz de desenvolver um texto aceitável, apenas uma escrita incipiente, imprópria para aparecer em letra de forma mesmo nas páginas da mais obscura edição. E pensou que o escritor, além daquele pormenor interessante das mãos, devia ser uma pessoa sensível, dador e merecedor de afectos, sentindo pejo em transmitir-lhe os incidentes mais lamentáveis da sua vida conjugal. Começava a pensar que o importante na vida não era alimentar a memória dos episódios infelizes, mas conservar no coração o que tinha havido de bom, aquilo de que podia lembrar-se com satisfação, pois esse seria o melhor caminho para ultrapassar os reveses e poder voltar a amar. Ainda andou por ali uns dias, na oficina de escrita, a atrapalhar o labor do criativo, sem saber muito bem o que fazer, sempre fascinada por aquelas mãos que a transportavam a outra idade, a um tempo distante e perfumado, até ao momento em que o escritor, em estado de desânimo, resolveu desvincular-se do contrato de prestação de serviços por falta de cooperação da cliente.
Arrumaram as coisas a bem, pagando-lhe ela as horas perdidas, deixando ele a porta aberta para, em outro momento, com um projecto mais definido, poderem voltar a colaborar.
Durante as semanas seguintes, sempre que passava pelo centro comercial não se dispensava de ir visitar a oficina de escrita. Acenava ao escritor do lado de cá do balcão, e se ele estava disponível e lhe vinha estender a mão num gesto de amizade, ela ficava uns segundos a olhá-la, quase emocionada, como se visse uma pedra rara ou uma flor.
E, coisa extraordinária, algo se enraizava nela que a fazia sentir-se outra mulher: uma liberdade interior, uma disponibilidade para amar, fora das amargas lembranças e dos humores negativos. Começou a ler os grandes poetas do amor, tanto os modernos como os antigos, como se procurasse nessas leituras uma espécie de exercício de manutenção da alma, com a mesma disposição de quem frequenta o ginásio ou pratica um desporto para manter a forma física. Foi então que descobriu as Rimas de Petrarca. Conhecia-o como o poeta da paixão por Laura, um amor jamais consumado, mas que, apesar disso, sempre morou na sua poesia, mesmo depois da morte da mulher amada. Começou a ler com emoção esses poemas onde, por vezes, descobria figuras e formas de dizer também usadas por Camões. Tocou-a em especial o soneto Se amor não é, qual é meu sentimento?, talvez por ter a ver com as suas dúvidas sobre algo que sentia nascer, um misto de contentamento e insatisfação, um desassossego brando que a levava por pensamentos e sonhos há muito tempo distantes de si. De tantas vezes o ler, já o tinha decorado:
Arrumaram as coisas a bem, pagando-lhe ela as horas perdidas, deixando ele a porta aberta para, em outro momento, com um projecto mais definido, poderem voltar a colaborar.
Durante as semanas seguintes, sempre que passava pelo centro comercial não se dispensava de ir visitar a oficina de escrita. Acenava ao escritor do lado de cá do balcão, e se ele estava disponível e lhe vinha estender a mão num gesto de amizade, ela ficava uns segundos a olhá-la, quase emocionada, como se visse uma pedra rara ou uma flor.
E, coisa extraordinária, algo se enraizava nela que a fazia sentir-se outra mulher: uma liberdade interior, uma disponibilidade para amar, fora das amargas lembranças e dos humores negativos. Começou a ler os grandes poetas do amor, tanto os modernos como os antigos, como se procurasse nessas leituras uma espécie de exercício de manutenção da alma, com a mesma disposição de quem frequenta o ginásio ou pratica um desporto para manter a forma física. Foi então que descobriu as Rimas de Petrarca. Conhecia-o como o poeta da paixão por Laura, um amor jamais consumado, mas que, apesar disso, sempre morou na sua poesia, mesmo depois da morte da mulher amada. Começou a ler com emoção esses poemas onde, por vezes, descobria figuras e formas de dizer também usadas por Camões. Tocou-a em especial o soneto Se amor não é, qual é meu sentimento?, talvez por ter a ver com as suas dúvidas sobre algo que sentia nascer, um misto de contentamento e insatisfação, um desassossego brando que a levava por pensamentos e sonhos há muito tempo distantes de si. De tantas vezes o ler, já o tinha decorado:
Se amor não é, qual é meu sentimento?
mas se é amor, por Deus, que cousa e qual?
se boa, que é do efeito ásp’ro e mortal?
se é má, o que é que adoça tal tormento?
Se ardo a bom grado, onde é pranto e lamento?
e se a mau grado, o lamentar que val’?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
tanto em mim podes sem consentimento?
E em sem razão me queixo, se o tolero.
E em tão contrários ventos, frágil barca
me leva em alto mar e sem governo,
tão cheia de erros, de saber tão parca,
que eu mesmo nem sequer sei o que quero,
e a tremer no estio, ardo de inverno.
Dirigiu-se à oficina de escrita para agendar uma reunião com o escritor. Ele teria de lhe escrever um conto, um simples conto, que fosse a expressão viva do sentimento que aquele soneto lhe despertava. Abrir-se-ia com ele, mostrar-lhe-ia a alma apaixonada, e a sua escrita ágil derramar-se-ia nas folhas de papel como uma promessa de felicidade.
Veio o dia aprazado. Os olhos do escritor correram os catorze versos do soneto com o mesmo sobressalto do versejador a quem dão um mote difícil para compor um poema, tentando apanhar uma brecha onde estribar a prosa, uma palavra ou uma expressão que soltasse a torrente da escrita. Chupou o cachimbo e coçou a orelha, como costumava fazer antes de proferir uma das suas austeras sentenças ou de se lançar ao trabalho da escrita, mas nenhuma musa veio em seu auxílio. Ainda olhou para as lombadas da estante povoadas pela sombra de Paulo Coelho, como se implorasse a ajuda do plumitivo para tão aflitiva situação. Mas nada. Embatucou como um estudante a quem fazem uma pergunta numa prova oral e, desconhecendo a resposta, lança o olhar aturdido sobre as carrancas do júri examinador. Ela ficou à espera do juízo sobre o poema e a sua proposta de narrativa, admirada da hesitação que lhe via no rosto, e não foi preciso muito para descobrir que ele nunca daria conta do recado. O espírito de Petrarca, de que estava cheia, não tinha tocado a alma do escrevente do alheio. Sentiu pena, mas, ao mesmo tempo, aceitou-o como facto natural. Sabia que havia outros caminhos e outras viagens. E olhando as mãos do escritor abandonadas sobre o tampo da secretária, imóveis, como se um medo ou um grande mal lhe tivessem tolhido os movimentos, já não via nelas a mesma beleza de outros dias. Poderia enganar-se, mas pareciam-lhe apenas umas mãos vulgares, mais ou menos iguais a tantas outras que conhecia.
mas se é amor, por Deus, que cousa e qual?
se boa, que é do efeito ásp’ro e mortal?
se é má, o que é que adoça tal tormento?
Se ardo a bom grado, onde é pranto e lamento?
e se a mau grado, o lamentar que val’?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
tanto em mim podes sem consentimento?
E em sem razão me queixo, se o tolero.
E em tão contrários ventos, frágil barca
me leva em alto mar e sem governo,
tão cheia de erros, de saber tão parca,
que eu mesmo nem sequer sei o que quero,
e a tremer no estio, ardo de inverno.
Dirigiu-se à oficina de escrita para agendar uma reunião com o escritor. Ele teria de lhe escrever um conto, um simples conto, que fosse a expressão viva do sentimento que aquele soneto lhe despertava. Abrir-se-ia com ele, mostrar-lhe-ia a alma apaixonada, e a sua escrita ágil derramar-se-ia nas folhas de papel como uma promessa de felicidade.
Veio o dia aprazado. Os olhos do escritor correram os catorze versos do soneto com o mesmo sobressalto do versejador a quem dão um mote difícil para compor um poema, tentando apanhar uma brecha onde estribar a prosa, uma palavra ou uma expressão que soltasse a torrente da escrita. Chupou o cachimbo e coçou a orelha, como costumava fazer antes de proferir uma das suas austeras sentenças ou de se lançar ao trabalho da escrita, mas nenhuma musa veio em seu auxílio. Ainda olhou para as lombadas da estante povoadas pela sombra de Paulo Coelho, como se implorasse a ajuda do plumitivo para tão aflitiva situação. Mas nada. Embatucou como um estudante a quem fazem uma pergunta numa prova oral e, desconhecendo a resposta, lança o olhar aturdido sobre as carrancas do júri examinador. Ela ficou à espera do juízo sobre o poema e a sua proposta de narrativa, admirada da hesitação que lhe via no rosto, e não foi preciso muito para descobrir que ele nunca daria conta do recado. O espírito de Petrarca, de que estava cheia, não tinha tocado a alma do escrevente do alheio. Sentiu pena, mas, ao mesmo tempo, aceitou-o como facto natural. Sabia que havia outros caminhos e outras viagens. E olhando as mãos do escritor abandonadas sobre o tampo da secretária, imóveis, como se um medo ou um grande mal lhe tivessem tolhido os movimentos, já não via nelas a mesma beleza de outros dias. Poderia enganar-se, mas pareciam-lhe apenas umas mãos vulgares, mais ou menos iguais a tantas outras que conhecia.
D.E.
Nota: A tradução do poema de Francesco Petrarca (1304- 1374) é de Vasco Graça Moura.
2 comentários:
Olá Manuel,
O teu conto, além de muito bem escrito, é belíssimo. Conseguiste, em cada uma das três partes em que o dividiste, manter a "chama" e o final resolve, com uma reviravolta de mestre, pôr o ponto final nos hipotéticos sinais que nos foste dando, como convém, ao longo dos capítulos anteriores.
Parabéns, "Escrevedor" de mão-cheia.
Um beijo.
Gosto. Muito.
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