quarta-feira, janeiro 10, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 1 )


Ela nem queria acreditar: num desvão do corredor do centro comercial, num daqueles pontos do labirinto onde, no caso de incêndio, ninguém conseguiria dar com a saída de emergência, acabara de abrir, no mesmo espaço onde já se tinham finado negócios de engomadaria e peças de arte africana, uma loja completamente remodelada com um balcão, duas secretárias e uma vistosa estante, apresentando no vidro da montra o seguinte letreiro:

OFICINA DE ESCRITA
Dê-nos a sua ideia e nós passamo-la a escrito!


Se não fosse o saco dos congelados acabados de adquirir no minimercado, teria entrado de imediato. Calculou, porém, que seria demorada a entrevista, que pretenderiam conhecer em pormenor o seu projecto, e ela teria de abrir o jogo, de ir ao fundo da questão e indagar sobre honorários, processos de trabalho, prazos de execução, pedir informações sobre os custos de edição, de lançamento e de distribuição. Tudo isso levaria bastante tempo, descongelariam as ervilhas e as postas de peixe, lá se ia o governo da semana. Depois, já preenchera um caderno com vários apontamentos, uma boa dúzia de frases lapidares e algumas ideias feitas, o melhor seria voltar em outra altura com todos os elementos e discutir o assunto sem precipitações.
Andou uma semana a pensar na melhor forma de abordar o caso. Tinha uma grande vontade de escrever aquele livro, mas as frases que iam nascendo no caderno não eram encorajadoras. Sentia a dificuldade do ofício de escrever: as armadilhas do léxico, as figuras de estilo, a descrição dos ambientes, a técnica narrativa em cada um dos seus momentos – exposição, complicação, clímax, epílogo – , aprendidos num manual de escrita criativa que comprara e lera quando ainda alimentava ilusões de poder realizar o trabalho por sua conta e risco.
Aprazou a visita à loja para um certo dia ao fim da tarde, à hora em que o centro comercial se enche de tépidos odores a café e bolos.
O escritor que a atendeu – um apreciador de Paulo Coelho, a avaliar pelos metros de estante, junto da sua secretária, onde desfilavam as mais variadas edições do prolífero autor – ouviu com atenção, tomando pequenas notas, o projecto de escrita por ela proposto. Depois, deteve-se uns instantes numa fermentação de pensamentos elevados, de reflexões austeras, mordendo o cachimbo e coçando a orelha. Finalmente, olhando-a com um ar infinitamente compreensivo, assentiu:
- A senhora precisa de ajuda, nós vamos ajudar.
Abriu então as argolas de um dossiê e extraiu dele uma bolsa de plástico com várias folhas de papel: contrato de prestação de serviços, preçário, relação de custos editoriais, e um pequeno inquérito para avaliar, no final do trabalho, o grau de satisfação do cliente.
Que o preço era puxado percebeu ela, quando, já em casa, se deitou a fazer contas com a máquina de calcular. Porém, considerando a hipótese de uma edição de quinhentos exemplares, mais de trinta vendidos na família, outros tantos no local de trabalho, uma boa dose junto de vizinhos e amigos, mais os que se escoariam através da distribuidora, sempre cobriria parte das despesas. E o dinheiro não era o mais importante. Eram outros os objectivos que a moviam. Da mesma forma que aquele político injustamente despedido das suas funções, apeado levianamente do poder quando dispunha de maioria parlamentar estável, sentiu necessidade de denunciar em livro a cabala de que fora vítima, também ela, mulher e mãe de família, desprezada pelo marido ao fim de tantos anos de fidelidade conjugal, se sentia obrigada a explicar, para que todos soubessem e, amanhã, os filhos e netos não viessem a ser intoxicados por uma falsa versão dos acontecimentos, o fio de sucessos que havia conduzido à ruptura matrimonial e à consumação do divórcio.
(Continua)

D.E.

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá Manuel,

Bem escolhido o tema, apurada a tua escrita.
Quero a continuação!...

Um beijo.