domingo, fevereiro 25, 2007

UM PARECER DESFAVORÁVEL

Pela boca do rio entraram, em outros tempos, corsários normandos e norte-africanos, homens de barba ruiva, de pele tisnada, os olhos inchados de cólera e as mãos prolongando-se em aceradas lâminas, sequiosos de sangue e de saque. Desembarcavam nas praias, incendiavam o sossego e as casas das gentes, não poupavam a honra das mulheres nem o espaço venerável dos templos. O povo sofria, resignado, as agruras impostas por estas hordas que chegavam do mar, pois não havia forças capazes de lhes fazer frente.
Pouco a pouco, porém, foi-se organizando a defesa dos povos. Construíram-se atalaias, mobilizaram-se guarnições militares. Mais tarde, com o advento da artilharia pirobalística, converteram-se as torres de vigia em sólidos baluartes, corpos de pedra que protegiam com as suas peças de fogo a vida laboriosa das populações. Assim apareceram a Torre de Cascais e a Fortaleza de São Vicente a Par de Belém, albergando esta, sob o rendilhado manuelino de pedra, um poder de artilharia dissuasor das investidas de corsários e beligerantes.
Vieram depois, entre os séculos dezasseis e dezoito, as outras fortalezas: Nossa Senhora da Luz de Cascais, o Forte de São Julião da Barra – testemunha do odioso martírio de Gomes Freire de Andrade – , a Fortaleza de São Lourenço da Cabeça Seca ou Torre do Bugio, o Forte de Nossa Senhora das Mercês de Catalazete, S. Bruno de Caxias, São João das Maias, Santo Amaro, Santo António do Estoril – onde um vetusto ditador se despenhou de uma cadeira, alterando de forma irreversível o curso frouxo da História.
No século vinte, apesar da penúria do erário e da fraqueza do corpo militar, a defesa da entrada do rio não foi descurada. Subiu às colinas, estabeleceu-se em postos de observação dotados de holofotes que atravessavam a espessura das noites, em baterias de artilharia de costa bem acima do nível do mar, locais privilegiados para vigiar e fazer fogo, pois outras eram, nesses tempos já modernos, as ameaças esperadas: poderosos navios de guerra, massas de aço avassaladoras, rasgando os céus com o poder fulminante das suas peças.
É a partir da década de sessenta que o aumento populacional dá lugar a um grande crescimento da construção civil na orla do mar. As casas, edificadas em urbanizações servidas pelo caminho de ferro da Sociedade Estoril, alastravam como manchas na paisagem da costa: Laveiras, Espargal, Nova Oeiras, Lombos, Rana, Galiza, Alapraia, Monte Estoril e tantas outras localidades. Multiplicavam-se os edifícios de cimento com os seus alvéolos habitacionais, enquanto as baterias de artilharia, estrategicamente implantadas nas varandas dos montes, viam surgir diante de si a ameaça dessas edificações que lhes roubavam o campo de visão sobre o leito do mar, tolhendo-lhes os exercícios de tiro tenso e tiro curvo ensaiados em laboriosas manobras militares. O perigo já não vinha da superfície marítima, mas de terra firme.
Foi então que a unidade de artilharia de costa passou a ter maior atenção aos processos de licenciamento das novas urbanizações. Os oficiais analisavam os dossiês, informavam o comando, e este, no desempenho dos seus poderes, ditava a sorte dos projectos. Perguntavam os construtores para que serviam aquelas canhoneiras mal dissimuladas nas encostas dos montes, atrapalhando-lhes os negócios e atrasando o progresso das terras, se, em caso de guerra, logo seriam aniquiladas pela aviação inimiga? Ninguém sabia ou queria responder, e eles lá se iam conformando, aparentemente, com as determinações que vinham de cima.
Só que esta raça de gente que se mete a levantar casas, a ligar cimento com ferro em especulativos empreendimentos, nunca descansa quando se trata de levar a sua avante. Havia, num lugar da freguesia da Parede, uma urbanização que crescia a olhos vistos, ameaçando acabar com a operacionalidade das unidades de artilharia. Já os prédios iam adiantados, altos como palmeiras, quando o processo chegou à mesa de trabalho do oficial encarregado de o apreciar. Aquilo era uma espécie de facto consumado. O militar folheou o vasto dossiê pejado de desenhos à escala, memória descritiva e justificativa, projectos de arquitectura, plantas de ruas, praças e pracetas. Cada milímetro de solo era avidamente aproveitado, construindo-se em altura o mais possível, pois o preço do metro quadrado estava pela horas da morte e os apartamentos eram tão necessários como pão para a boca. Consultou as cartas topográficas, compulsou o relevo pelas curvas de nível, apurou a altura dos edifícios, foi para o terreno armado de teodolito e telémetro. Fez contas, lidou com senos e cosenos, entregou-se a cálculos logarítmicos, e tudo apontava para a inviabilização daquelas construções. Informação ao comandante: Excelentíssimo Senhor Comandante, Coronel da Arma de Artilharia, por estas e estas razões, atentos os superiores interesses da defesa militar, tendo em conta as posições dos postos de observação e das baterias tais e tais, com vista a garantir as condições operacionais das mesmas não é de autorizar o levantamento da urbanização no volume e altura constantes do projecto, pelo que se deverá notificar de imediato o construtor a fim de interromper a obra – Vossa Excelência, no entanto, no seu alto critério, decidirá como melhor entender. Assinado: fulano de tal, capitão.
Nunca mais se soube que despacho merecera o parecer desfavorável do diligente oficial, mas estranhou-se que, passado algum tempo, o crescimento dos prédios continuasse a desenrolar-se numa orgia frenética de betoneiras e guinchos de içar, de camionetas a chegarem com novos materiais, de andaimes que singravam na direcção astral como se quisessem acometer os céus com os seus postes e tábuas sebentos de tinta e restos de argamassa. Pediu o oficial para ser recebido pelo comandante. Sim senhor, tinha lido o parecer, um texto fundamentado, preciso, correcto, tecnicamente bem elaborado, mas nada a fazer: outros interesses mais altos se levantavam. O país não podia parar, as fábricas de cimento tinham de continuar a produzir cimento, a siderurgia não podia abrandar a sua produção de ferro e aço, a indústria vidreira, as cerâmicas, as empresas de cabos eléctricos tinham de continuar a fabricar e a vender para não fecharem as portas. A construção civil era o motor da economia – lá diziam os entendidos – e as pessoas precisavam de casas para morarem. Para mais, tratava-se de uma urbanização muito bem projectada, próxima da praia, onde seria gostoso viver, fruindo os saudáveis ares do mar.
Foi talvez por esta afeição manifestada a respeito da nova urbanização, ou por qualquer outra causa não determinada, que se mudou a família do comandante para um dos melhores apartamentos lá construídos. A este propósito houve logo quem insinuasse, quem emitisse juízos de sentido dúbio, e houve também – gente mais ousada! – quem chegasse a proferir afirmações inequívocas, a verberar condutas, falando de interesses ocultos e compadrios. Sempre tivemos muita inveja por esse país fora! A verdade, porém, é que o comandante vive hoje naquele esplêndido apartamento construído na urbanização que lhe entaipou postos de observação e baterias, enquanto o oficial autor do parecer desfavorável continua a morar na sua modesta casa de sempre.
D.E.

domingo, fevereiro 11, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 3 )

Perguntei no Hotel Ceylan pelo representante do sebo, tendo-me sido indicada uma esplanada da Plaza Mayor onde ele costumava almoçar sempre que vinha a Salamanca. Pela descrição feita, não tive dificuldade em descobri-lo. Comia, quando o encontrei, uma tortilha e uma salada mista – refeição frugal para tão vastas carnes – acompanhando o repasto de um tinto Rioja Campo Viejo. Apresentei-me, pedi licença para uma breve conversa, dando como referência o alfarrabista de Lisboa. O homem acabou de deglutir a fritura de ovos, sorveu a última folha de alface, pediu uma taça ao empregado e encheu-ma de vinho. Depois, escarafunchou com um palito as recônditas fendas da região dental, limpou o bigode com um guardanapo de pano branco, abanou-se com um jornal dobrado ao meio como se fosse um leque, e, enquanto me ouvia, passava a mão pela aridez da calva e espraiava os olhos pelas fachadas dos edifícios setecentistas, refulgentes de arcadas e varandas, como se eu não estivesse ali e as minhas palavras viessem de uma instalação sonora em algum ponto ignorado da praça.
Terminada a exposição das minhas razões, fiquei longos segundos à espera que me dirigisse a palavra. Foi quando me lembrei de que não voltara a falar com Cláudia desde o dia anterior, quando saí de Lisboa, nem tão-pouco ela me respondera à mensagem que lhe deixei no telemóvel. Completamente absorvido pelo motivo que me levara a Salamanca, nunca mais me tinha lembrado de lhe telefonar.
O homem, como uma dádiva do céu, deixou cair os olhos, finalmente, sobre a minha humilde pessoa, reiterando tudo o que o alfarrabista me havia dito. Que não havia nenhum manuscrito de Camões entre os livros e documentos por ele adquiridos, e que tudo aquilo, livralhada e demais papéis, eram peças de lana-caprina, coisas sem interesse, havendo, no entanto, algo merecedor de registo: um fragmento de um códice datado do século dezasseis – mas, na verdade, uma descarada falsificação feita uns trezentos anos mais tarde – onde se aludia a uma cópia do Parnaso de Luís de Camões feita por um monge salmantino por encomenda de uma família da alta nobreza castelhana, cujo nome, infelizmente, se apresentava ilegível. Fora essa a razão que o trouxera a Salamanca e não o desconchavo da edição apócrifa do Quixote, notícia que deixara espalhar em Lisboa para despistar a concorrência. E aproveitou, uma vez que estava necessitado de um ajudante de campo e eu, por razões sentimentais e curiosidade pessoal, me interessava pelo assunto, para pedir a minha colaboração no sentido de o ajudar a atingir os seus objectivos: identificar a ancestral família e tentar encontrar a preciosa cópia. Quanto aos livros e papéis que estavam na arca do meu tio, já tinham sido enviados para São Paulo, por via aérea, para o sebo que lhe pagava o ordenado, a fim de que, por descargo de consciência, fossem avaliados através de processos científicos, embora isso não o preocupasse muito, pois certamente não se enganara no juízo que deles fizera, além de que, nas Américas, esses papéis bafientos da velha Europa, verdadeiros ou falsos, eram sempre dinheiro em caixa.
Emocionei-me de alegria ao ouvir as suas palavras. Por duas razões: a primeira, por ser para mim uma espécie de reabilitação da boa imagem do meu tio – um pouco abalada desde que comecei a dar conta do fiasco da arca -, pois era uma prova de que havia um fundo de verdade quando falava no manuscrito de Camões, mesmo não existindo tal manuscrito ou existindo apenas pela referência que lhe era feita no fragmento do falso códice; a segunda, por me permitir continuar a sonhar com uma descoberta de enorme significado histórico e cultural, algo que, a verificar-se, iria lançar sobre a minha pessoa a admiração de todos os amantes da cultura. Dei comigo a pensar no orgulho que Cláudia iria sentir por mim - eu que não passava de uma figura apagada, exercendo uma desqualificada profissão, enquanto ela brilhava na sua carreira académica – e antecipei o gozo de ouvir os seus elogios, imaginando-a a contar aos colegas da universidade o papel desempenhado pelo marido em tão importante achado.
Aceitei a proposta de colaboração do representante do sebo e telefonei a Cláudia. Esperava encontrá-la ansiosa pelo meu telefonema, feliz por saber de mim, por me poder ouvir, mas a conversa foi fria, como as águas do Tormes em pleno Inverno.
(Continua)
D.E.

domingo, fevereiro 04, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 2 )

Na manhã do dia seguinte, mal saí do turno de vigilância nocturna na sede do banco, encaminhei-me para os lados do Bairro Alto. Tomando o Cais do Sodré, subi a Rua do Alecrim, passei pelo Largo de Camões – olhando com enternecimento a estátua de bronze do Poeta – e metendo-me pela Rua da Misericórdia comecei a indagar junto de lojas de antiguidades e alfarrabistas sobre quem poderia ter comprado a arca. Os comerciantes que abordei, declarando-se desolados por não lhes ter calhado em sorte um tal negócio, iam-me citando nomes e locais de outras lojas, procurando ajudar-me na minha busca. Cheguei a um estabelecimento da Rua da Trindade cujo proprietário, conhecedor como ninguém do mercado em que se movia, me remeteu para casa de um alfarrabista descendente de uma velha família de judeus sefarditas, fugida para Itália nos tempos do rei D. Manuel I, mas regressada, cem anos mais tarde, por graça régia de um dos Filipes, na qualidade de administradores do erário público e colectores de impostos – o que dá para perceber como já nessa época a administração central tinha de esquecer inimizades e abrir os cordões à bolsa para contratar no sector privado gestores competentes em matéria fiscal. Os membros desta família acabaram por fazer carreira, através de sucessivas gerações, em diversos serviços dependentes do Conselho da Fazenda do Reino, e embora alguns deles tivessem sido sujeitos a tratos de polé pela Inquisição do senhor D. João V, a verdade é que lograram permanecer no país até aos nossos dias em situação económica sempre muito desafogada.
Cheguei à fala com o dito alfarrabista, um velho miudinho e enfezado – resultado, talvez, dos antiquíssimos genes desenvolvidos na frugalidade alimentar do maná do deserto – e por ele vim a saber que tinha de facto adquirido a arca aos herdeiros do meu tio, convencido de que estava a comprar ouro de lei, mas que, analisado o seu conteúdo com mais detalhe, chegara à conclusão de que havia feito um mau negócio. E foi-me contando: a arca era de pau carunchoso, qual sândalo, qual carapuça; os livros, de reduzido interesse, eram rendilhados de folhas que se desfaziam mal se lhes tocava; os manuscritos não passavam de falsificações, tão grosseiras que até pareciam ter sido feitas com canetas de tinta permanente; os pergaminhos não tinham pergaminhos; o astrolábio não era astrolábio; forais e cartas régias só na Torre do Tombo; o punhal matador da bela Inês era de uma cutelaria de Toledo, sim senhor, mas não ultrapassava a idade do mais novo dos seus netos. Resumindo: um fiasco. Pagara por tudo aquilo dez réis de mel coado, garantiu-me, mas mesmo assim ficara-lhe atravessado na garganta o desastrado negócio, algo que nunca lhe tinha sucedido em muitos anos de actividade mercantil. Perguntei-lhe então pelo manuscrito de Camões, o célebre Parnaso de que fala Diogo do Couto na Oitava Década da Ásia, e o olhos miudinhos do aliado de Javé faiscaram de gozo, despejando-me na cara uma gargalhada bíblica. Que também lhe tinham falado nisso os que lhe levaram a arca, mas que nem por um só momento havia acreditado em semelhante dislate.
Quis ver a arca para me certificar de que falava verdade, mas o meu interlocutor tirou-me daí o sentido. O lenho carunchoso ainda estava em seu poder, à espera da avaliação de um restaurador de móveis, mas o recheio tinha sido vendido pelo preço de aquisição ao representante de um sebo brasileiro de São Paulo que andava pela Ibéria em demanda de uma edição apócrifa do Quixote de Cervantes, encontrando-se hospedado no Hotel Borges, no Chiado. Explicou-me que sebo é o nome dado pelos brasileiros a um estabelecimento que compra e vende livros antigos e que o dito representante do sebo paulistano era um cavalheiro de meia-idade, calvo e gordo, que usava bigode e palitava os dentes, um pouco mais alucinado que o profissional típico do ramo. Mostrou-me o cartão que lhe deixara: fulano tal, consultor bibliográfico.
Hotel Borges comigo, um groom quase infantil que me abriu a porta, um recepcionista ensonado por detrás do balcão.
- Esse senhor saiu esta manhã – disse-me o empregado – mas volta para a semana. Já deixou a reserva feita, pois teve de ir a um leilão de livros antigos em Salamanca. Vai ficar instalado no Hotel Ceylan, fui eu mesmo que lhe fiz a marcação.
Não quis saber de mais nada e fui para casa com o objectivo de fazer a mala e rumar a Salamanca. Dei conta, quando cheguei, que Cláudia não tinha dormido em casa nessa noite, pois a cama estava feita como eu a deixara de véspera depois do meu sono diurno. Achei estranho, porque quando saí para o banco, antes da meia-noite, estava ela sentada ao computador, trabalhando na sua tese. Procurei saber o que teria acontecido, ligando-lhe para o telefone móvel, mas não respondeu. Telefonei para o seu departamento na universidade: que sim, que estava ao serviço nesse dia, nenhum problema. Avisei então o meu chefe sobre a impossibilidade de comparecer ao trabalho durante o resto da semana. Meti-me no carro e pus-me a caminho de Espanha.

(Continua)
D.E.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

UM SEBO DE SÃO PAULO E O MEU AMOR EM PERIGO ( 1 )

Gilberto, meu tio, dizia ter no sótão, dentro de uma arca, uma vasta colecção de livros e códices antiquíssimos, rolos de pergaminho grafados em latim, cópias de forais e cartas régias, um astrolábio que se salvara do naufrágio da nau S. Bento no Cabo da Boa Esperança, além de duas peças que designava como as mais valiosas de todo o acervo: a lâmina com que o verdugo Pacheco degolou D. Inês de Castro, e um manuscrito inédito de Camões – com grande número de elegias, odes, éclogas e canções – que lhe fora furtado em Lisboa quando se preparava para o entregar na oficina do impressor. Isto era o que dizia o tio Gilberto, pois a arca, com o seu valioso recheio, nunca ninguém a viu. Vivia escondida nos desvãos do sótão, inacessível a olhos de estranhos, embora fosse usada muitas vezes como argumento de autoridade nas dissertações com que o velho tio deslumbrava as visitas de casa. Tinha como tema predilecto nessas dissertações a história do ignominioso atentado dos Távoras contra a augusta pessoa do rei D. José I, embora também costumasse perorar sobre jesuítas e outros parasitas clericais. E sempre que algum assombrado ouvinte, embora esmagado pela erudição, deixava transparecer qualquer dúvida sobre a matéria expendida, o meu tio Gilberto invocava a arca e os seus arcanos – que estavam lá, dizia ele, todos os documentos em que se baseava para a defesa das suas teses.
Não foi feliz este meu tio. Nem com os filhos que a sorte lhe destinou – refractários aos interesses e saberes do pai – nem com os anos de velhice, que poderiam ter sido longos e cheios de interessantes conversas aos serões se não lhe tivesse sobrevindo, mal entrado na reforma, umas dessas doenças que nos habituámos a qualificar de prolongadas, mas que sem detença e grandes prolongamentos o lançou no forno crematório do cemitério do Alto de S. João.
Morto o tio Gilberto, lançadas ao vento as suas cinzas, soube vagamente que a arca e o seu recheio tinham sido vendidos por bom dinheiro a um antiquário do Bairro Alto, informação que acabei por dar como certa e confirmada, visto que os meus primos apareceram logo com uns BMW novos, acabados de sair do stand, e, nesse ano, tiraram duas semanas de férias nas praias do nordeste brasileiro, eles que não tinham por hábito alargar os seus destinos balneares além de Carcavelos ou da Costa da Caparica. Afinal, concluí, a arca continha mesmo as valiosas peças de que falava o tio Gilberto. De outra forma, não teria proporcionado o encaixe financeiro que parecia fazer as delícias dos meus primos. E eu senti vergonha de algumas vezes não só ter duvidado da importância que ele lhe atribuía, como até da sua elementar existência.
Acontece que pela altura do passamento do tio Gilberto, Cláudia, a minha mulher, fazia um fulgurante doutoramento cuja tese – A Expansão Portuguesa no Oriente Durante o Século XVI - lhe levava arrastadas horas de trabalho entre a universidade e a biblioteca, trazendo para casa, nas dissimuladas gavetas do seu portátil, grande quantidade de informação que trabalhava pela noite fora. Concedia-me nesse difícil transe a benesse de um simples encontro semanal nas delícias do tálamo, oportunidade que eu saboreava como escassa, mas que aceitava e compreendia, dado o carácter absorvente do seu trabalho e a reconhecida dedicação com que se lhe entregava.
Diga-se que existia entre mim e Cláudia, não obstante nos amarmos muito, um grande desnível de habilitações académicas e de estatuto profissional. Enquanto ela dava aulas na universidade e preparava o seu doutoramento em História, eu tinha fracassado no curso universitário, ocupando-me em trabalhos precários, inadequados à minha formação, como, por exemplo, vigilante nocturno de uma empresa de segurança ou vendedor de soluções de informática em mercado residencial. Foi numa manhã em que regressado a casa após uma noite de vigília na sede de uma instituição bancária, a horas em que Cláudia já havia saído para a universidade, abeirando-me da sua mesa de trabalho vi aberto o grosso volume da Oitava Década da Ásia, de Diogo do Couto, em cujo livro quinto, capítulo nono, ela tinha sublinhado a seguinte passagem:

Neste Inverno começou Luis de Camões a compor hum livro muito docto de muita erudição que intitulou Parnaso de Luis de Camões, porque continha muita poesia, filosofia, e outras ciencias, o qual lhe desapareceo, e nunqua pude em Portugal saber delle.


Estas linhas do continuador de João de Barros nas Décadas da Ásia fizeram-me pensar de imediato na arca do tio Gilberto e no manuscrito do Épico que ele dizia estar lá guardado. Será que se tratava desse precioso livro que, segundo o historiador, Luís de Camões ia compondo em Moçambique enquanto não encontrava meios para pagar a viagem de regresso à Pátria? Se assim fosse, por mais dinheiro que os meus primos tivessem recebido do antiquário a quem venderam a arca, tratar-se-ia sempre de uma soma insignificante, face à importância daquele manuscrito. Um livro perdido de Camões, uma preciosa obra lírica, entregue dentro de uma arca a um obscuro comerciante de antiguidades por dois BMW de último modelo e umas semanas de férias no Brasil. Fiquei indignado com semelhante atentado à cultura, estarrecido perante a possibilidade de aquele tesouro poder cair em mãos erradas. E resolvi agir.

(Continua)

D.E.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 3 )

- A senhora tem de decidir, por favor, o que pretende escrever – disse-lhe ele em determinada altura. E ela ficou cativada por aquela observação tão cheia de delicadeza que até fazia dela a escritora – assim se apresentaria, de facto, na capa do livro! – quando na realidade não passava de uma informante da história, alguém que recorria aos serviços de um ghost-writer por não ser capaz de desenvolver um texto aceitável, apenas uma escrita incipiente, imprópria para aparecer em letra de forma mesmo nas páginas da mais obscura edição. E pensou que o escritor, além daquele pormenor interessante das mãos, devia ser uma pessoa sensível, dador e merecedor de afectos, sentindo pejo em transmitir-lhe os incidentes mais lamentáveis da sua vida conjugal. Começava a pensar que o importante na vida não era alimentar a memória dos episódios infelizes, mas conservar no coração o que tinha havido de bom, aquilo de que podia lembrar-se com satisfação, pois esse seria o melhor caminho para ultrapassar os reveses e poder voltar a amar. Ainda andou por ali uns dias, na oficina de escrita, a atrapalhar o labor do criativo, sem saber muito bem o que fazer, sempre fascinada por aquelas mãos que a transportavam a outra idade, a um tempo distante e perfumado, até ao momento em que o escritor, em estado de desânimo, resolveu desvincular-se do contrato de prestação de serviços por falta de cooperação da cliente.
Arrumaram as coisas a bem, pagando-lhe ela as horas perdidas, deixando ele a porta aberta para, em outro momento, com um projecto mais definido, poderem voltar a colaborar.
Durante as semanas seguintes, sempre que passava pelo centro comercial não se dispensava de ir visitar a oficina de escrita. Acenava ao escritor do lado de cá do balcão, e se ele estava disponível e lhe vinha estender a mão num gesto de amizade, ela ficava uns segundos a olhá-la, quase emocionada, como se visse uma pedra rara ou uma flor.
E, coisa extraordinária, algo se enraizava nela que a fazia sentir-se outra mulher: uma liberdade interior, uma disponibilidade para amar, fora das amargas lembranças e dos humores negativos. Começou a ler os grandes poetas do amor, tanto os modernos como os antigos, como se procurasse nessas  leituras uma espécie de exercício de manutenção da alma, com a mesma disposição de quem frequenta o ginásio ou pratica um desporto para manter a forma física. Foi então que descobriu as Rimas de Petrarca. Conhecia-o como o poeta da paixão por Laura, um amor jamais consumado, mas que, apesar disso, sempre morou na sua poesia, mesmo depois da morte da mulher amada. Começou a ler com emoção esses poemas onde, por vezes, descobria figuras e formas de dizer também usadas por Camões. Tocou-a em especial o soneto Se amor não é, qual é meu sentimento?, talvez por ter a ver com as suas dúvidas sobre algo que sentia nascer, um misto de contentamento e insatisfação, um desassossego brando que a levava por pensamentos e sonhos há muito tempo distantes de si. De tantas vezes o ler, já o tinha decorado:

Se amor não é, qual é meu sentimento?
mas se é amor, por Deus, que cousa e qual?
se boa, que é do efeito ásp’ro e mortal?
se é má, o que é que adoça tal tormento?

Se ardo a bom grado, onde é pranto e lamento?
e se a mau grado, o lamentar que val’?
Ó viva morte, ó deleitoso mal,
tanto em mim podes sem consentimento?

E em sem razão me queixo, se o tolero.
E em tão contrários ventos, frágil barca
me leva em alto mar e sem governo,

tão cheia de erros, de saber tão parca,
que eu mesmo nem sequer sei o que quero,
e a tremer no estio, ardo de inverno.


Dirigiu-se à oficina de escrita para agendar uma reunião com o escritor. Ele teria de lhe escrever um conto, um simples conto, que fosse a expressão viva do sentimento que aquele soneto lhe despertava. Abrir-se-ia com ele, mostrar-lhe-ia a alma apaixonada, e a sua escrita ágil derramar-se-ia nas folhas de papel como uma promessa de felicidade.
Veio o dia aprazado. Os olhos do escritor correram os catorze versos do soneto com o mesmo sobressalto do versejador a quem dão um mote difícil para compor um poema, tentando apanhar uma brecha onde estribar a prosa, uma palavra ou uma expressão que soltasse a torrente da escrita. Chupou o cachimbo e coçou a orelha, como costumava fazer antes de proferir uma das suas austeras sentenças ou de se lançar ao trabalho da escrita, mas nenhuma musa veio em seu auxílio. Ainda olhou para as lombadas da estante povoadas pela sombra de Paulo Coelho, como se implorasse a ajuda do plumitivo para tão aflitiva situação. Mas nada. Embatucou como um estudante a quem fazem uma pergunta numa prova oral e, desconhecendo a resposta, lança o olhar aturdido sobre as carrancas do júri examinador. Ela ficou à espera do juízo sobre o poema e a sua proposta de narrativa, admirada da hesitação que lhe via no rosto, e não foi preciso muito para descobrir que ele nunca daria conta do recado. O espírito de Petrarca, de que estava cheia, não tinha tocado a alma do escrevente do alheio. Sentiu pena, mas, ao mesmo tempo, aceitou-o como facto natural. Sabia que havia outros caminhos e outras viagens. E olhando as mãos do escritor abandonadas sobre o tampo da secretária, imóveis, como se um medo ou um grande mal lhe tivessem tolhido os movimentos, já não via nelas a mesma beleza de outros dias. Poderia enganar-se, mas pareciam-lhe apenas umas mãos vulgares, mais ou menos iguais a tantas outras que conhecia.
D.E.
Nota: A tradução do poema de Francesco Petrarca (1304- 1374) é de Vasco Graça Moura.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

AMADEO E O ESTUDANTE DE ARTE


O estudante de arte perdeu a visita de estudo da Faculdade à exposição de Amadeo porque andava demasiado ocupado com a organização do seu jantar de aniversário. Todos sabemos o trabalho que dá organizar um jantar de aniversário: escolher o restaurante, dirigir os convites, confirmar as presenças, assegurar os meios de transporte necessários. São horas e horas de porfiado labor, de dedicação severa. Por essa razão, apenas por essa razão, o estudante de arte falhou o encontro com as 260 obras expostas. Mas que importância poderão ter o álbum XX Dessins, a Cozinha de Manhufe, o Armory Shaw de Nova Iorque, a Procissão do Corpus Christi, mais o cubismo, o pontilhismo, o expressionismo e todos os revérberos da arte perante a luminosa tela dos 21 anos? Pouca importância, concedo. Não é por isso, pois, que vou deixar de te amar, meu filho.
D.E.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 2 )

Fez notar o escritor, logo na primeira sessão de trabalho, que para interessar o vasto público na leitura do livro não bastaria contar a história da sua infeliz experiência matrimonial, pois tratando-se de episódios da vida de uma pessoa desconhecida, ninguém, para além do círculo restrito de familiares e amigos, se disporia a queimar os olhos em semelhante prosa. Seria necessário que o leitor ou a leitora pudessem retirar do texto algum ensinamento. O livro, para lá de contar uma história, deveria ter um conteúdo pedagógico capaz de ajudar quem se encontrasse em situação idêntica. E assim, decidiram-se por uma estrutura de composição que teria no final de cada capítulo umas curtas notas de aconselhamento e pequenos exercícios de aplicação para testar a assimilação das lições de vida apresentadas. Uma espécie de livro de auto-ajuda, como está bem de ver.
O escritor, diga-se, era desses artistas que não interpõem entre o nascimento das palavras e o papel que lhes serve de berço os esgares de plástico dos teclados, os revérberos dos ecrãs e o matraquear das impressoras a jacto de tinta. Escrevia à mão, num cursivo inglês moderadamente inclinado, como se as palavras se desfizessem em permanentes reverências ao papel que as acolhia.
Ela começou a maravilhar-se com aquela escrita que brotava com tanta facilidade a partir dos episódios por si relatados, a apreciar a elegância das linhas correctamente dispostas sobre as folhas, saindo daquelas mãos cuja beleza entretanto descobrira, aqueles dedos esguios de unhas brilhantes, umas mãos que lhe lembravam as do marido nos tempos distantes de enamorada. Apaixonara-se por ele, entre outras coisas, pela beleza das mãos. O escritor também as tinha bonitas, e assim, deixando-se levar por ternas memórias, ela ficava a olhá-las como se fossem as mesmas que antigamente lhe percorriam as zonas erógenas do corpo ou se detinham, apaziguadoras, sobre o balcão sereno dos seus ombros. E começou a manifestar-se nela, num sentimento que crescia de sessão para sessão, uma falta de vontade para evocar os maus tempos do casamento, apetecendo-lhe antes saborear a lembrança dos momentos felizes. Por essa razão, a progressão do trabalho marcava passo numa espécie de anticlímax todo feito de memórias felizes e derrogações do que importava narrar.
- Se isto continua assim, minha senhora, ainda encheremos mais páginas que as da  Recherche – observava com ironia o profissional da escrita, lembrando-lhe de que o livro não deveria ir além das cem páginas, sendo forçoso, por isso, entrar rapidamente na matéria principal. E interrompiam a sessão.
Ela voltava no dia seguinte, e bem tentava falar dos episódios sombrios, daquele tempo em que o amor, já irremediavelmente perdido, dera lugar à falta de respeito e à violência entre os cônjuges. Fora essa a sua intenção inicial, o motivo que a levara a pensar no livro. Mas à vista das mãos do escritor, perante a forma elegante como se apresentavam e moviam sobre a secretária, escrevendo ou esperando pelos elementos que ela lhe transmitia, só se lembrava dos momentos de ternura e dos deleites proporcionados por outras mãos de semelhante beleza. E não lhe saía nada do que interessava, só se lembrava dos tempos do amor, insistindo com notas e factos que não fazendo progredir o trabalho começavam a exasperar o paciente criador artístico.

(Continua)

D.E.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

SE AMOR NÃO É, QUAL É MEU SENTIMENTO? ( 1 )


Ela nem queria acreditar: num desvão do corredor do centro comercial, num daqueles pontos do labirinto onde, no caso de incêndio, ninguém conseguiria dar com a saída de emergência, acabara de abrir, no mesmo espaço onde já se tinham finado negócios de engomadaria e peças de arte africana, uma loja completamente remodelada com um balcão, duas secretárias e uma vistosa estante, apresentando no vidro da montra o seguinte letreiro:

OFICINA DE ESCRITA
Dê-nos a sua ideia e nós passamo-la a escrito!


Se não fosse o saco dos congelados acabados de adquirir no minimercado, teria entrado de imediato. Calculou, porém, que seria demorada a entrevista, que pretenderiam conhecer em pormenor o seu projecto, e ela teria de abrir o jogo, de ir ao fundo da questão e indagar sobre honorários, processos de trabalho, prazos de execução, pedir informações sobre os custos de edição, de lançamento e de distribuição. Tudo isso levaria bastante tempo, descongelariam as ervilhas e as postas de peixe, lá se ia o governo da semana. Depois, já preenchera um caderno com vários apontamentos, uma boa dúzia de frases lapidares e algumas ideias feitas, o melhor seria voltar em outra altura com todos os elementos e discutir o assunto sem precipitações.
Andou uma semana a pensar na melhor forma de abordar o caso. Tinha uma grande vontade de escrever aquele livro, mas as frases que iam nascendo no caderno não eram encorajadoras. Sentia a dificuldade do ofício de escrever: as armadilhas do léxico, as figuras de estilo, a descrição dos ambientes, a técnica narrativa em cada um dos seus momentos – exposição, complicação, clímax, epílogo – , aprendidos num manual de escrita criativa que comprara e lera quando ainda alimentava ilusões de poder realizar o trabalho por sua conta e risco.
Aprazou a visita à loja para um certo dia ao fim da tarde, à hora em que o centro comercial se enche de tépidos odores a café e bolos.
O escritor que a atendeu – um apreciador de Paulo Coelho, a avaliar pelos metros de estante, junto da sua secretária, onde desfilavam as mais variadas edições do prolífero autor – ouviu com atenção, tomando pequenas notas, o projecto de escrita por ela proposto. Depois, deteve-se uns instantes numa fermentação de pensamentos elevados, de reflexões austeras, mordendo o cachimbo e coçando a orelha. Finalmente, olhando-a com um ar infinitamente compreensivo, assentiu:
- A senhora precisa de ajuda, nós vamos ajudar.
Abriu então as argolas de um dossiê e extraiu dele uma bolsa de plástico com várias folhas de papel: contrato de prestação de serviços, preçário, relação de custos editoriais, e um pequeno inquérito para avaliar, no final do trabalho, o grau de satisfação do cliente.
Que o preço era puxado percebeu ela, quando, já em casa, se deitou a fazer contas com a máquina de calcular. Porém, considerando a hipótese de uma edição de quinhentos exemplares, mais de trinta vendidos na família, outros tantos no local de trabalho, uma boa dose junto de vizinhos e amigos, mais os que se escoariam através da distribuidora, sempre cobriria parte das despesas. E o dinheiro não era o mais importante. Eram outros os objectivos que a moviam. Da mesma forma que aquele político injustamente despedido das suas funções, apeado levianamente do poder quando dispunha de maioria parlamentar estável, sentiu necessidade de denunciar em livro a cabala de que fora vítima, também ela, mulher e mãe de família, desprezada pelo marido ao fim de tantos anos de fidelidade conjugal, se sentia obrigada a explicar, para que todos soubessem e, amanhã, os filhos e netos não viessem a ser intoxicados por uma falsa versão dos acontecimentos, o fio de sucessos que havia conduzido à ruptura matrimonial e à consumação do divórcio.
(Continua)

D.E.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

NATIVIDADE


Manifestando a minha curiosa imunodeficiência perante o espírito natalício, aqui vos deixo esta NATIVIDADE profundamente barroca de JOSEFA DE AYALA, mais conhecida por JOSEFA DE ÓBIDOS, nascida em Sevilha a 20 de Fevereiro de 1630 e falecida em Óbidos a 22 de Julho de 1684, figura maior da pintura portuguesa do século XVII.

terça-feira, dezembro 19, 2006

UMA HISTÓRIA DE NATAL : As Tribulações de um Dador Benévolo

Assediava-o uma inusitada vontade de praticar o bem, de amar o próximo como a si mesmo, de se abrir a rasgos de generosidade em relação a indigentes e outros desprotegidos da sorte. Quem o conhecia – amador da sua pessoa acima de todas as coisas – só podia atribuir tal modificação ao espírito do Natal, à ambiência da quadra festiva que se vivia. Os feéricos ornamentos das ruas, os apelos à paz e ao amor feitos naquelas canções cheias de emoção que a rádio e as instalações sonoras das superfícies comerciais com tanta insistência difundiam, só podiam contribuir para reforçar os laços de solidariedade entre os homens, para fazer despertar os tesouros da fraternidade, enchendo-lhe o coração de bons sentimentos e benévolas disposições. Depois de todo um ano em que atraiçoou amizades, atropelou direitos alheios, mentiu e guerreou, era extraordinário sentir o maravilhoso estado de alma que nele se manifestava.
Naquele Natal, a maior das boas acções que tinha projectado praticar era uma dádiva de sangue. Havia tantos acidentes na estrada, tantos idosos a necessitarem de intervenções cirúrgicas e de transfusões e, por outro lado, como os serviços de saúde não cessavam de informar, tanta falta de sangue de todos os tipos, que estava firmemente disposto a tornar-se um dador benévolo.
Numa manhã da semana que antecedia o dia de Natal, arfando de amor pelo próximo, rumou ao serviço de recolha de sangue do hospital da sua área. Tirou a senha, esperou pelo atendimento. Não demorou muito a sentar-se diante de uma jovem médica, bonita e inquiridora.
- Idade?
- 29 anos.
- Estado civil?
- Solteiro.
- Sofre de alguma doença crónica?
- Não.
- Alguma vez teve contactos sexuais com homens?
Aturdiu-se com esta pergunta.
- Sim ou não? – insistiu ela.
- Não!
- Alguma vez utilizou drogas por via endovenosa?
- Não.
- Quantos parceiros sexuais teve nos últimos seis meses?
Aqui, hesitou na resposta, um pouco perturbado. Não se importava nada de manifestar o número de mulheres com quem praticara sexo nos últimos tempos. Afinal até era daqueles que tomavam nota na agenda de cada vez que uma nova experiência tinha lugar. Não fazia segredo das suas conquistas e tinha sempre aberta, para quem quisesse ver, a sala dos troféus. Mas incomodava-o que a questão lhe fosse apresentada de forma tão neutra e profissional por aquela jovem médica de rosto atraente e corpo bem feito, e, sobretudo, que ela não tivesse juntado ao radical da palavra “parceiros” o morfema de género feminino “a” adequado à sua condição de heterossexual. Lá respondeu, enfatizando a palavra “parceiras”.
- Em alguma dessas experiências prescindiu do uso de preservativo?
Meteu a mão na consciência, até estava com vergonha de responder, mas logo se abriu perante a insistência da inquiridora. E foi aí que as coisas começaram a complicar-se. Tinha tido não uma, mas várias relações de risco, o que não quadrava com os padrões comportamentais definidos para a aceitação dos dadores benévolos. Ainda por cima fizera uma tatuagem nas costas, adorno corporal que pareceu não agradar à médica.
- Bem, para já não podemos aceitar o seu sangue. Vamos ter de fazer análises.
Esmagado pela rejeição, tartamudeou umas palavras de súplica. Que não havia nada de mal com o seu sangue, que era um homem saudável, que aceitassem a dádiva e logo fariam as competentes análises. Veriam como era sangue de primeira.
- E pensa o senhor que o hospital se pode dar ao luxo de gastar bolsas de recolha e demais consumíveis com sangue que poderá não estar em condições? Até parece que não conhece o rigor das restrições orçamentais – retorquiu a jovem médica, preparando a seringa a fim de realizar a colheita para análise.
Saiu cabisbaixo. Ainda passou pela salinha anexa para comer umas bolachas e beber um cálice de vinho do Porto. Estava mesmo a precisar.
Dispusera-se a cumprir uma boa acção que pudesse integrá-lo de forma exemplar na onda de fraternidade própria da quadra natalícia, e era impedido de o fazer por um sumaríssimo inquérito que lhe descobrira uma tatuagem nas costas e uns quantos episódios de sexo inseguro. Francamente, já não se podia viver plenamente o espírito do Natal…
No caminho para casa ia meditando, pesaroso, na melhor forma de ultrapassar aquele revés. Distribuir comida aos sem-abrigo do bairro? Dar esmola para as obras de caridade da igreja? Comprar uma caixa de postais de boas-festas da Unicef? Alguma solução teria de encontrar para concretizar o seu projecto de solidariedade para com os desvalidos da sorte. E não poderia passar daquela semana que ainda faltava para o dia de Natal, pois estaria decerto completamente ocupado consigo próprio e com os seus projectos pessoais em todo o tempo das cinquenta e uma semanas que se seguiam.

D.E.

domingo, dezembro 10, 2006

CARTA AO PAI NATAL

Ex.mo Senhor,
Devo dizer-lhe, em primeiro lugar, que não encontrará nesta carta as expressões afectuosas e de submissa pedinchice que está habituado a receber dos seus inúmeros admiradores espalhados por todo o orbe. De facto, não só não nutro qualquer simpatia pela rotunda e esdrúxula pessoa de V. Exa., como, por razões que adiante compreenderá, não me é permitido aceitá-lo como representante supremo desta época festiva em que nos habituámos a viver e a comemorar o nascimento do Filho de Deus.
Certamente se recordará que na meninice dos homens e mulheres que, neste país, têm hoje cinquenta e mais anos de idade, nunca a pessoa de V. Exa. era chamada para a entrega de prendas ou brinquedos na noite mágica de Natal. Tínhamos para isso uma figura bem mais credível e ajustada à quadra – o Menino Jesus – a quem não escrevíamos cartas, pois tratando-se de um recém-nascido não poderia naturalmente lê-las, mas a quem rezávamos de joelhos no chão, junto às chaminés de nossas casas, pedindo o carrinho de corda, o triciclo, a boneca de cartão ou os chocolates. A personalidade de V. Exa. era praticamente desconhecida das nossas infantis pessoas, só nos chegando notícia sua, eventualmente, através de algum postal de boas-festas remetido do eldorado americano por um qualquer parente ali emigrado.
Nestas últimas décadas, beneficiando da cumplicidade dos poderes constituídos, tem V. Exa. assumido a representação simbólica do Natal. Paulatinamente, como quem não quer a coisa, foi matando o Menino Jesus que sempre habitara os nossos sonhos de criança – um crime tão bárbaro e nefando como a própria morte do Jesus adulto – insinuando-se junto das novas gerações através de agressivas campanhas de publicidade organizadas pelas grandes multinacionais dos electrodomésticos, das consolas, dos jogos de computador e de toda a classe de brinquedos. V. Exa. vendeu a ternura do Natal aos capitalistas da SONY e da NITENDO, aos fabricantes de sonhos de latão e aos oragos anunciadores de promessas de felicidade descartável. Quem o quer ver é a enviar as suas legiões de clones para a porta das superfícies comerciais, incentivando o consumo desregrado, promovendo o endividamento das famílias e assediando as criancinhas com beijos babados de infame consumismo.
Acresce que a figura e os modos apresentados por V. Exa. são do mais grotesco que se pode imaginar. Ri de uma forma estúpida e desconchavada, veste um fato ridículo que mais parece a farpela de um palhaço, não faz a barba, há quem diga que cheira mal dos pés, e, suprema ironia, garantem-nos que desce pelas chaminés para distribuir as prendas e os brinquedos, quando, com a gordura que ostenta, nem pela porta da garagem seria capaz de passar. Depois, contam-nos que viaja num trenó puxado por renas, entre a Lapónia, sua terra de origem, e os lares de cada um de nós, quando é sabido que tal trenó não existe, é pura ficção para dar um toque de romantismo à sua existência árida, pois as únicas viagens que faz, sabemo-lo bem, fá-las de avião entre as grandes praças financeiras, controlando a evolução dos seus negócios e recebendo as chorudas comissões que lhe são atribuídas pelos fabricantes de brinquedos e de electrodomésticos de todo o mundo.
Não tenho dúvidas que, com V. Exa., o Natal, na sua pureza, está irremediavelmente perdido. Porque o Natal não pode ser este falso esplendor de bens de consumo, sabiamente regido pelos interesses do capitalismo industrial e financeiro. O Natal não pode ser este vazio de alma, este deserto de emoções em redor da mesa farta e de uma árvore, dita de Natal, reverberando luminárias espúrias contra a luz verdadeira da estrela de Belém. Não bastava ter V. Exa. arrancado o Menino Jesus do coração dos homens; era preciso também que os reduzisse, como escravos, a um mero instrumento dos seus desígnios de lucro e enriquecimento ilegítimo.
É por tudo isto e pelo mais que se não diz por ser verdade – cito aqui, de cor, o poeta da Pedra Filosofal – que lhe escrevo estas modestas mas inflamadas linhas, como vivo protesto de quem não se conforma com a ditadura materialista que V. Exa. representa.
Sem outro assunto de momento, e na esperança de topar o menos possível com as execrandas réplicas de V. Exa. que por aí pululam neste período natalício, subscreve-se,

Este que sinceramente o abomina,


D.E.

quinta-feira, novembro 23, 2006

UM ESTRANHO HOMICÍDIO

Era seguido por um bode de grandes cornos e pêlo farto, tão chegado às suas pernas que mais parecia bicho de espécie canina. Se parava, logo o animal detinha o seu andamento; se estugava o passo, procurando deixar para trás o seguidor, este dava corda aos cascos e o focinho barbudo não desgrudava dos calcanhares do bípede.
Há uma hora que andava nisto, noite de Lua cheia, por carreiros e estradas de terra de regresso a casa.
O bode aparecera-lhe numa curva do caminho, inopinadamente, como se tivesse saído das funduras do chão. Primeiro, imaginara tratar-se de animal tresmalhado do rebanho ou fugido de algum curral, outra explicação não encontrava, mas depois, observando o seu estranho comportamento e sentido o bafo gelado que lhe deitava nas pernas foi levado para outro campo de ideações.
Aqui anda coisa do diabo, pensou, passando os dedos sob a camisa pelo espaço aberto entre os botões, tocando no crucifixo e no sino-saimão pendentes do fio de prata que trazia ao pescoço. Se fosse homem de rezas, ter-se-ia benzido e pedido auxílio a São Jorge, intrépido matador de dragões e outras bestas ruins. Como não era, meteu a mão no bolso das calças e fez uma figa.
Cada vez mais perturbado com a estranha situação em que se via, chegou ao pé de uma velha casa abandonada onde, poisado numa estaca de vinha, piava um mocho. No alpendre da casa, pendurado numa trave, um rolo de corda grossa, aparentemente sem préstimo, sugeriu-lhe a maneira de se livrar do pertinaz acompanhante. Fez um laço que passou pela cabeça do bode, apertou, deu uma segunda volta, e prendeu a extremidade da corda, com engenhoso nó, ao tronco sólido de uma figueira.
O caprino pareceu aceitar com brandura a vontade do humano, como se revisse nele o próprio pastor, e até facilitou, deixando-se conduzir para junto da árvore. Mas quando se sentiu preso e bem preso, tentando libertar-se sem sucesso, o colar de corda a estrangular-lhe a garganta, tomou-se de ímpetos bestiais, modos assustadores, escoiceando como muar, saltando como se tivesse molas, investindo a cornadura contra o lenho da figueira, pobre vegetal, nunca os da sua espécie haviam sentido algo de tão terrífico e extraordinário desde o dia em que Judas Iscariote, apóstolo falso, se dependurou nos ramos daquela antepassada distante. A um esticão poderoso que pareceu abalar toda a árvore rompeu-se a corda e o animal desarvorou estrada fora levando lume nos cascos e levantando uma grande nuvem de pó.
Lembrou-se então de histórias que lhe contavam quando era menino. O triste fado dos que vagueiam à noite pelos caminhos, transformados em bichos quadrúpedes, atormentando os passantes com a sua presença deletéria. Espojam-se ao pôr-do-sol em pegadas frescas de animais e deixam sair o lobisomem que lhes mora na alma. Convenceu-se de que havia tentado medir forças com um lobisomem, um desígnio estulto, que poder teria um pobre mortal para enfrentar seres e forças sobrenaturais? Mas, ao mesmo tempo, sentiu sair de cima de si um grande peso por se ter livrado daquela indesejada companhia.
Durou pouco a sensação de alívio. Ao chegar a uma encruzilhada, escassas centenas de metros adiante, distinguiu à luz do luar um vulto corpulento de homem que jazia no chão. Chegou-se ao pé para ver e aí gelou-se-lhe todo o sangue do corpo. Tinha os dedos dos pés e das mãos curvos como garras, os olhos abertos e revirados, grossos pêlos saindo-lhe da cara, a boca torcida num ricto de dor. Ao pescoço, estranguladora, a corda com que tinha acabado de prender o bode.
Fugiu apavorado, não conseguiu dormir em toda a noite. Sentia medo e um enorme peso na consciência pela responsabilidade que lhe cabia naquela morte.
No dia seguinte, ao ter notícia da descoberta do corpo, apresentou-se no posto da Guarda e deu-se como culpado do homicídio.
D.E.
(Imagem obtida em jangadabrasil.com.br)

quinta-feira, novembro 16, 2006

O ELOGIO DA LEITURA

Lendo o romance Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, dei com aquela parte do primeiro volume em que Françoise, criada da senhora Octave na sua casa de Combray, maneja uma faca para matar um frango que resiste desesperadamente, apesar de ter o pescoço já praticamente separado do corpo. É pelos olhos de um narrador quando adolescente que a imagem nos é transmitida pelo autor. Lembrei-me então dos tempos de infância e da forma como via e sentia a morte que destinávamos aos animais. O que me perturbava não era o facto de se matar um animal para nos servir de alimento, desígnio que achava natural, mas sim a profusão de formas e meios que existiam para o fazer, como se quiséssemos aproveitar as nossas necessidades de sobrevivência para ensaiarmos diferentes métodos de roubar a vida a cada uma das nossas vítimas. Via matar galos e galinhas com uma lâmina afiada que os degolava, lentamente, o sangue escorrendo para uma tigela de barro. Os coelhos eram abatidos com uma paulada atrás da cabeça, agarrados pelas patas traseiras. Aos pombos, de cuja carne se fazia uma saborosa canja, apertava-se-lhes o bico entre o polegar e o indicador por cima de um estrebuchar de penas. Os porcos eram deitados sobre um banco comprido, amarradas as patas, bem seguros por robustos braços de homem, para que uma faca poderosa pudesse sondar-lhes o coração, cavando o grosso canal por onde singrava o sangue até ao vazadouro do alguidar. Aos carneiros e ovelhas metia-se-lhes um ferro afiado pelo alto da cabeça, deixando o animal prostrado, olhos revirados e língua pendente de um canto da boca, escorrendo baba, pronto para ser aberto, esfolado e esquartejado. Encontrei mais tarde nestas diferentes formas de matar um reflexo da inteligência humana, uma arte capaz de estabelecer para cada vítima o modus faciendi adequado, bem diferente dos processos usados pelos chamados irracionais para matar as suas presas, sempre da mesma forma, segundo modelos de sobrevivência e conservação das espécies radicados nos mais básicos instintos. Quando encontramos pequenos chumbos na carne de lebres e perdizes, anzóis e pedaços de fio na boca de peixes, deparamos apenas com manifestações dessa arte de matar que a espécie humana tão bem cultiva. Em relação aos nossos semelhantes também se desenvolveram técnicas de morte que primam pela variedade, pela escolha criteriosa, oportuna e conveniente, fundadas em tradições e pressupostos de raiz cultural e religiosa. Se hoje ninguém morre crucificado é porque essa foi a forma de morte infligida ao que veio em nome de Deus, e praticá-la seria atentar contra o que de mais profundo existe na nossa moral cristã; mas recorrer à forca, como os sistemas penais do mundo ocidental sempre fizeram, e continuam a fazer, é servirmo-nos de um método de matar que a insídia de Judas Iscariote, dependurado na triste figueira, parece legitimar. Entre os povos tupis do Brasil, como podemos ler nos textos de escritores e poetas do primeiro romantismo brasileiro, a condenação à morte consumava-se com um golpe desferido na cabeça do condenado com o tacape, uma espécie de poderoso cacete. A morte por envenenamento, praticada ao longo dos séculos, tem raízes profundas na herança cultural da Antiguidade Clássica: Sócrates, o grande filósofo de que nos fala Platão, foi condenado a morrer por envenenamento. Envenenada morreu Fedra nas tragédias clássicas de Eurípides, Séneca e Racine. Morreram na fogueira milhares de vítimas da intolerância religiosa e política. António José da Silva, o Judeu, comediógrafo, foi queimado em auto-de-fé na presença de D. João V. Gomes Freire de Andrade, conspirador liberal, foi mandado enforcar, tendo sido queimado o seu cadáver, pelos que governavam o Reino em 1817, conforme ensina a História e nos é revelado, entre outros, pelo texto dramático de Sttau Monteiro Felizmente há luar. Ao longo dos tempos, distantes e recentes, muitos conheceram a morte diante de pelotões de fuzilamento, sentados em cadeiras eléctricas, injectados, garrotados, sob o fragor de bombardeamentos e explosões, em desterros de fome e de sede. Grande é a criatividade humana nesta arte de matar semelhantes e dissemelhantes.
Quando nos pomos a ler um roman-fleuve como o de Marcel Proust, pode bem suceder que a propósito de um tema ou passagem do livro nos surja um pequeno rio de pensamentos e palavras. Pode até não passar de um simples regato. Mas esse fluir de águas, essa corrente do espírito, maneira de viajarmos por tempos e espaços, é um dos grandes tesouros que habitam os livros. É despertarmos ideias e sentimentos que estão dentro de nós, ligarmos o fio das emoções, deixarmos correr a escrita. Falarmos de morte, cantando a vida. Esse é um elogio que deve ser feito à leitura.
D.E.

quinta-feira, novembro 02, 2006

CÂNTICO IMPERFEITO PARA UMA TABERNA DE PROVÍNCIA

Vemo-lo seco de carnes, curvado sobre a torneira da pipa, tremendo-lhe nos dedos ancilosados o copo de vidro grosso que o esguicho vai tingindo de escuro. Sob uma lâmpada frouxa, enquanto larga sobre a tábua do balcão o avio do freguês com nome e registo de fiados inscritos num destrambelhado caderno de folhas de papel pardo, dá para notar que tem barba de vários dias, um olho baço onde há muito não se detém um grão de luz, uma camisa esfiapada e umas calças que não sendo justas nem largas estão presas à cintura por uma volta dupla de barbante.
Do lado de dentro do balcão há um alguidar de tremoços que ressumam sal e servem para puxar a pinga, uma pia onde os copos se passam por água e umas poucas garrafas sujas de vinho tinto com espessas películas secas agarradas aos fundos.
Não dá para perceber se a telefonia da taberna toca alguma moda conhecida ou se debita noticiários espúrios. Nestes lugares onde nos encontramos é tudo silêncio. Só podemos entender o que se fala pelo movimento dos lábios, ou pela linguagem dos olhos, ou pelos rictos que desenham a cara dos homens, trabalhadores de enxada, jornaleiros da gleba contratados na praça pública, as mãos cheias de calos e as gargantas com uma sede igual à da terra.
Nas paredes singram aranhas desajeitadas, alojadas em panos de teias, e há insectos que vêm à luz e que os homens procuram afastar com movimentos bruscos da cabeça e dos braços.
Há um bom bocado que a noite deu em cair sobre os telhados e as paredes das casas, envolveu a torre da antiquíssima igreja, encheu de breu todas as ruas e praças, o coreto, os mármores brancos das lápides do cemitério, a capela de Nossa Senhora do Desterro, as pontes e a fonte. A luz que se côa através das cortinas das janelas e sai das raras montras de lojas de comércio não ousa contrariar o seu império.
Pelo declive que leva à linha do rio sobe agora uma névoa muito clara e lúcida que tirante os voos rasantes de querubins em nada fica a dever à que se expande pelas alamedas destes lugares de onde observamos. Só que aquela, carregada de humidade terrena, é fria e dá cabo dos ossos. Encosta-se então a porta como remédio para o desagasalho, os fregueses ficam do lado de dentro, quem se quiser chegar que empurre as tábuas e entre.
Corre o vinho e o tremoço, muito fiado. De vez em quando, uma moeda cai na gaveta como um badalo choco. Gostaríamos de poder ouvir o que os homens dizem.
Vemos agora umas meninas que assomam à porta por onde se passa da casa para o espaço público da taberna. São puxadas para trás por dois braços fortes de mulher. Aquele lugar não é para elas.
Começa a fazer-se tarde, há um pedaço de tempo que nenhum freguês demanda aviamento, seja de bebidas fermentadas, abafados ou produtos de destilaria, que de tudo há na taberna para satisfação da clientela. Também se vendem pirolitos e laranjadas, mas estas qualidades são as que saem menos, procuradas apenas por mulheres e crianças a horas diurnas. São magros os dinheiros dos homens e os fiados são para arrumar na primeira ocasião. Quando são, folheia-se o caderno de papel pardo, vê-se onde está o nome, a data, o estrago feito, e realiza-se a paga.
Agora é muito tarde. Entra-lhe no corpo moído uma modorra feita de todas as canseiras do dia. Está sentado num pequeno banco com uma mão apoiada na torneira da pipa, cabeceando às arremetidas do sono, prestes a render-se, dorido das horas de trabalho nas terras da vinha, sachando as ervas daninhas, curando, enxofrando. É então que um freguês menos escrupuloso lhe surripia um copo de bagaço.
Entretanto, a névoa já se tornou cerração. Os homens começam a sair da taberna, cada qual para seu lado, casas e tugúrios da vila, casais próximos e menos próximos, apalpando caminhos, os olhos piscos de nevoeiro e álcool. Quem tem pernas monta-se em velhas bicicletas pasteleiras, quem não tem leva-as seguras pelo guiador, como quem conduz um animal pela arreata.
Vemos no relógio da torre da igreja que já passa das onze. Amanhã o trabalho começa ao nascer do sol.
Sai o último freguês, fecha-se a porta. As meninas já dormem?
O nevoeiro cerrado toma conta de tudo. Brota do escorredoiro do rio numa nuvem de muitos braços, mete-se em todas as ruas e vielas, espalha-se nas praças e terreiros, branco, muito branco, como nestes lugares de onde lançamos o olhar sobre a vida e a condição dos homens.
Na taberna há ainda uma frincha de luz que se escoa por baixo da porta, a única que agora vemos na noite da vila, arcano sinal à procura do céu.
Estamos à tua espera.


D.E.

sexta-feira, outubro 27, 2006

O PERDÃO DOS PECADOS

I

Maria Madalena, és pecadora, mais pecadora do que a outra naquele tempo em que o Redentor andava pelos caminhos da Galileia, pelas margens do lago Tiberíades, em Genesaré e Cafarnaúm, a anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus. Essa desgraçada de quem saíram, de uma só vez, sete demónios que lhe comiam o espírito e envileciam o corpo, antes de se tornar pura e serva do Senhor como Joana e Susana, mulheres que deixaram o mal e seguiram o exemplo da dulcíssima Maria, mãe de Jesus, filha de São Joaquim e de Santa Ana, a que concebeu sem mácula de pecado. Maria Madalena, arrepende-te dos erros e dos vícios da carne, entra no rebanho do Senhor e salva a tua alma do fogo do Inferno, dos martírios de Belzebu e dos seus malignos apaniguados. Abre os olhos, fêmea impura, escrava da fornicação, pelo amor de Nosso Senhor abre os olhos, que o pior cego é aquele que não quer ver. Vai com a graça de Deus, mulher, e como satisfação penitencial reza cem pais-nossos e cem ave-marias, queima uma vela no altar de Nossa Senhora Auxiliadora. Eu te absolvo dos teus pecados.

II

Maria Madalena, viúva de quarenta anos, sem filhos, alugadora de quartos a estudantes do Instituto Politécnico, trazia sete aboletados em sua casa: um de contabilidade, outro de electrotecnia, dois de engenharia mecânica, e três de enfermagem, embora estes, por razões que adiante se compreenderão, não fossem vistos nem achados no progresso do emaranhado caso de que se ocupa o presente escrito.
Todos os sete estudantes que estanciavam em casa de Maria Madalena faziam-no em regime de dormida simples, o que quer dizer, sem refeições e tratamento de roupas, embora, em boa verdade, as dormidas proporcionadas pela diligente hospedeira fossem tudo menos simples, como desde cedo foi do domínio público e a descrição destes insólitos sucessos se encarregará de evidenciar.
Numa cidade de província tudo se sabe, nada se esconde: as notícias espalham-se pelas ruas e tabernas, pelos jardins e adros das igrejas, ninguém fica indiferente à sua viscosa propagação.

III


O auto de averiguações foi mandado abrir pelos Serviços Sociais Escolares: coisa de inquiridores, inquiridos, testemunhas e escrivão do auto, todos nomeados em ordem de serviço com a assinatura de quem para tal tinha autoridade. É que a casa de Maria Madalena, como outras casas da cidade, funcionava como extensão da residência social escolar para estudantes economicamente desfavorecidos, por esta ter esgotado, há muito, a capacidade de oferta de alojamentos.
Apuraram os inquiridores, logo que se lançaram no seu árduo trabalho, que em vez de dormidas singelas, em honestas camas de solteiros, de lençóis limpos e acolhedores edredões, o ideal para repor as forças e motivar os estudos, adquirir os saberes e alcançar as almejadas formaturas, eram servidos os estudantes com prestações extraordinárias, cómodos não contratados, benesses que só o poderiam ser em certo sentido muito fora da moral vigente e do senso comum das pessoas de bem.
O escrivão do auto, um funcionário minucioso à beira da reforma por limite de idade, encarregou-se de lavrar nas folhas de papel azul de vinte e cinco linhas, com inexcedível zelo, todos os factos e ocorrências resultantes das inquirições.

IV


Aos tantos dias do mês tal do ano tal, nesta cidade de, na casa de hóspedes conhecida pelo nome de Casa de Maria Madalena, sita na Rua dos Prazeres, número dez, primeiro andar, onde há três quartos cedidos aos Serviços Sociais Escolares deste conceituado Instituto Politécnico, alojando-se neles, em regime de dormida simples, por carência de rendimentos dos respectivos agregados familiares, conforme processos tempestivamente apresentados ao Excelentíssimo Senhor Director e oportunamente deferidos em conformidade, os estudantes tais e tais, dos cursos tais e tais, foi feita a vistoria das instalações e inquirida a citada Maria de Magdala, digo, Maria Madalena, viúva, de quarenta anos, natural da freguesia dos Mártires desta cidade. Às perguntas formuladas pelos senhores inquiridores sobre a matéria em apreço, declarou ter partilhado a sua cama com alguns dos estudantes ali alojados, dormindo com eles, e tendo apresentado como justificação para o insólito comportamento o desejo de proporcionar maior comodidade aos jovens instalados na sua casa, visto que todos os outros quartos, à excepção do seu, estão virados a norte, sendo muito permeáveis aos frios da madrugada. Mais declarou que sempre o fizera como de mãe para filho, movida por desejo de servir e vontade de minorar o desconforto de jovens que se encontram apartados das suas famílias.
Ouvidos os estudantes de contabilidade, electrotecnia e engenharia mecânica, todos confirmaram terem dormido várias noites acompanhados da citada Maria Madalena pelas mesmas razões que a hospedeira aduziu, não sendo capazes de precisar dias, ou melhor, noites em que tal ocorreu, e salientando que mesmo que lhes chamassem nomes, daqueles que pudessem ofendê-los na sua virilidade, não deixariam de garantir não os ter movido qualquer fogosidade lúbrica ou desejo de tirarem prazer sexual de uma senhora com idade para ser sua progenitora, pessoa que sempre respeitaram como os bons filhos respeitam a mãe de família.
Ouvidos em seguida os três estudantes de enfermagem, todos disseram não saber de nada nem nunca terem visto nada, e que sempre dormiram nas suas camas individuais, não precisando de dormir acompanhados da sua hospedeira, pessoa que estimam, se não como mãe pelo menos como tia ou prima em segundo grau, pois frequentando uma turma com cerca de trinta candidatas a enfermeiras, encontrariam aí, sempre que precisassem, um campo mais fecundo e entusiasmante para satisfação daquelas subentendidas necessidades, matéria que foi declarada espontaneamente pelos inquiridos e deverá, segundo o nosso modesto entender, ser objecto de uma completa averiguação junto da área escolar do referido curso de enfermagem, para salvaguarda do bom nome e imagem moral da classe sócio-profissional das enfermeiras, a qual, por dizeres como este e famas de não comprovado proveito é tradicionalmente lançada nas ruas da amargura pelo vulgo ignaro.
Ouvida na mesma data, mas já na sede destes serviços, a testemunha Maria das Dores, empregada de limpeza, que cumpria serviço entre as oito e as onze da manhã, fazendo camas e lavando o chão dos quartos e das casas de banho, se apurou e, como tal, fica exarado, para que seja dado o atinente seguimento processual, os factos e ocorrências que se passam a indicar. Ponto um: que a proprietária da casa não só proporcionava roupa limpa de cama e colchões de qualidade aceitável, como aquecimento nos quartos e adequado isolamento das frinchas das portas e janelas, não se tendo provado que os quartos fossem frios e que por isso os estudantes implicados tivessem de ir granjear brasido no quarto da Maria Madalena. Ponto dois: que várias vezes foi visto pela supracitada Maria da Dores, ao entrar ao serviço, estudantes a dormirem na cama com a hospedeira, e que pelo menos em uma vez, numa manhã do mês de Dezembro cujo dia não sabe indicar, até estavam dois deitados com ela. Ponto três: que a Maria Madalena sempre dissera à empregada de limpeza para não falar no assunto a ninguém, para não lhe estragarem a vida, mas que a serviçal achara conveniente não se calar por se aperceber que os pobres rapazes estavam a afundar-se nos seus estudos com a ilusão dos deleites que diariamente, ou melhor dizendo, nocturnamente lhes eram proporcionados pela hospedeira com grave prejuízo da sua formação moral e pesado dano para as famílias que se sacrificam para lhes pagarem os estudos. E mais não se apurou.
Inquirida ainda uma segunda testemunha, aos tantos dias do mês tal do mesmo ano, de nome Teresinha do Espírito Santo, doméstica, moradora no andar inferior ao da Maria Madalena, dormindo com o seu legítimo esposo, funcionário da repartição de finanças, em quarto situado por baixo do da hospedeira já inquirida, declarou ter ouvido durante várias noites estrepitosos exercícios de cama com grande cópia de gemidos de fêmea e resfôlegos de machos, situação possível devido à má qualidade da construção que não dispõe de placa entre os pisos com a espessura e isolamento exigidos por lei, o que muito a incomodou, a ela e ao seu digníssimo esposo, pessoa nada dada a desconcertos de tão vil natureza, e que muito o prejudicaram, pela falta de descanso, no cumprimento dos seus deveres laborais.
E assim foram inquiridos e ouvidos todos os implicados e testemunhas arroladas.
Termos em que são dados como provados os factos e ocorrências chegados ao conhecimento destes Serviços Sociais Escolares, e que determinaram a abertura do presente auto de averiguações, demonstrando-se que a casa da Maria Madalena não reúne as condições necessárias para albergar os jovens do Instituto Politécnico ali residentes, devendo os mesmos ser repartidos por outras unidades de acolhimento e cessar por cumprimento defeituoso o contrato estabelecido entre estes Serviços e a citada hospedeira.
No entanto, o Excelentíssimo Senhor Director do Instituto Politécnico, fazendo uso do seu alto critério, decidirá como melhor entender.
Aos tantos dias do mês tal, ano tal, neste Instituto e cidade de.
Os inquiridores, Fulano e Beltrano. O escrivão do auto, Sicrano.

V

Maria Madalena, minha filha, condenou-te a lei dos homens, mas os teus pecados já haviam sido perdoados pela justiça de Deus. Também pecou a irmã de Lázaro e de Marta, e não foi por isso que deixou de ungir os pés do Senhor com perfumes de nardo, enxugando-os com beijos de arrependimento e a seda dos seus cabelos.
Agora que te não permitem receber hóspedes, sejamos piedosos com a tua situação. Peço-te que, para não ficares privada do santo pão de cada dia, para que te não falte o sustento, aceites servir como governanta na residência dos senhores padres da Sé.
Sabes bem, minha filha, como são penosos os ofícios divinos. Se algum senhor padre chegar cansado e com sede, sê como a Samaritana quando encontrou Jesus junto ao poço de Jacob: dá-lhe de beber, que é a tua sede que sacias com a água viva da salvação. Se algum senhor padre chegar com fome, desejoso de comer, trata-o com atenção e afecto, pois é o pão que sustenta para sempre que tu mesma estás a comer.
Ama-os e segue-os, como as santas mulheres amaram e seguiram o Nazareno.
Cuida deles como se fossem de tua própria casa e nunca te arrependas do bem que fizeres em nome da obra do Senhor. Ámen.


D.E.

terça-feira, outubro 17, 2006

O BANHO DE ESTER, Théodore Chassériau (1819-1856)


ESTER, jovem judia, viveu no tempo do poderoso Assuero, soberano da Pérsia que reinava sobre cento e vinte e sete satrapias, desde a Índia à Etiópia.
Foi admitida no harém real como candidata a rainha. A rainha Vasti tinha sido deposta por desobediência, e o rei teve de encontrar uma substituta. Durante doze meses se preparou Ester, guardada pelo eunuco real e assistida por escravas fiéis, submetendo-se a tratamentos de beleza à base de óleo de mirra, bálsamos e cremes. L
evada à presença de Assuero no décimo mês, o mês de Tebet, foi escolhida como a mais bela, ocupando o lugar deixado vago pela insubmissa Vasti.
O que ela fez, como rainha, para salvar o povo de Deus das ameaças que sofria, é história interessante de se ler. Veremos a arbitrariedade dos poderosos, a reposição da justiça e, finalmente, o violento extermínio dos perseguidores pelos que tinham antes a condição de perseguidos.

(Bíblia Sagrada, Outros Livros Históricos, Ester: o poder ao serviço da justiça.)
D.E.

segunda-feira, outubro 16, 2006

ÁLVARO DE CAMPOS

Carta astral de ÁLVARO DE CAMPOS

Nasceu em Tavira no dia 15 de Outubro de 1890, à uma e meia da tarde, conforme comprova o horóscopo feito para essa hora. Formou-se em engenharia naval em Glasgow. Andou em viagem pelo Oriente, onde consumiu ópio e se encheu de tédio. Aprendeu latim com um tio padre que era das Beiras. Reconheceu como seu mestre Alberto Caeiro, de quem disse ser o único poeta do mundo inteiramente sincero. Passou um mandado de despejo aos mandarins da Europa. Execrou Anatole France, Bernard Show, H.G. Wells e Maeterlink. Foi futurista à Walt Whitman. Fala-se pouco da sua morte. Em 1929 dizia:

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Ontem, se fosse vivo, faria cento e dezasseis!
Com um dia de atraso aqui vai a homenagem, Mestre.
D.E.

UM ALEPH NO SÓTÃO

Um Aleph é, segundo Borges, além da primeira letra do alfabeto da língua sagrada, um ponto do espaço onde estão contidos todos os pontos, um lugar onde se concentram todos os lugares do mundo, vistos na multiplicidade dos seus infinitos ângulos. Quem descobrir um Aleph terá acesso a tudo o que existe e não existe, será possuidor da verdade sobre a essência das coisas, verá cada pessoa por fora e por dentro, conhecerá todos os mares e todos os rios, os desertos e os vales férteis de todo o planeta.
Isto dizia-me, num dos habituais serões em sua casa, o meu amigo Sousa, enquanto ia fumando o cachimbo e bebendo generosos tragos de brandy Miguel Torres, um néctar destilado e engarrafado em Vilafranca del Penedés, Catalunha, que lhe chegava com regularidade, em caixas de seis unidades, através dos seus delegados comerciais de Barcelona.
O meu amigo era, além de bom anfitrião, um ávido leitor de Borges, e estava sempre disposto a inquietar a indigência das minhas aptidões especulativas com divagações do género das que o poeta argentino faz no Argumentum Ornithologicum ou em enigmáticas narrativas como O jardim dos caminhos que se bifurcam ou A biblioteca de Babel.
Devo dizer que apesar da minha velha amizade com o Sousa, vinda do tempo em que fui contabilista na editora de publicações esotéricas que ele dirigia, era por causa de Ester que frequentava os seus serões e me conformava a suportar o aborrecimento da suas invulgares conversas.
Ester era casada com o meu amigo e, se for perdoável a hipérbole, direi que podíamos ler mais nos seus olhos do que em todos os livros da vasta biblioteca de sua casa.
A sala onde nos reuníamos naqueles serões estava toda decorada com espelhos. Havia a um canto um tigre de loiça em tamanho natural, comprado em Moçambique, num bazar de um comerciante paquistanês, por um escritor que vira uma obra sua editada pelo Sousa. Um tabuleiro de xadrez com as peças em marfim repousava sobre uma mesa de jogo. E havia ainda, numa parede, o elemento decorativo de que eu mais gostava: uma tapeçaria de arte moderna, em tons de azul escuro e vermelho, sugerindo o inquietante perfil de um labirinto. Era junto de essa tapeçaria que Ester se costumava sentar. Eu ficava a olhar não sei bem se a obra de arte se a arte do corpo de Ester, a ler no livro aberto dos seus olhos, até o Sousa interromper o deslumbramento com referências a Teseu e Ariadne, a Dédalo e ao insaciável Minotauro, percorrendo a alameda dos mitos até chegar à família dos Palântidas, a Hipólito e a Fedra.
Imaginem o que é descobrirmos um Aleph, insistia ele, podermos saber de tudo e de todos, darmos conta do verdadeiro e do falso, conhecermos os esgares ínfimos da mentira, os rostos da traição… E eu arrepiava-me, temendo que algum inopinado Aleph pudesse alguma vez denunciar a minha indisfarçável atracção pelo corpo de Ester, ou até os pensamentos lúbricos que me corroíam a mente quando me punha a imaginá-la nua e a fazer amor, tocando a felicidade de estrepitosos orgasmos. Mas logo abjurava a irracionalidade dos meus temores, incomodado por me deixar sugestionar pela conversa do Sousa.
Ester atravessava os serões em silêncio. Apenas os olhos falavam. Não sei se leria nos meus.
Mas houve uma noite em que o meu amigo Sousa carregou de mais os balões de brandy. Como sempre, falou de Borges e de mitologia, mas a voz foi-se-lhe entaramelando, e quando se preparava para comparar a obra The God of the Labyrinth, de Herbert Quain, com os romances policiais de Agatha Christie, começou a sentir grandes dificuldades de expressão, não atinando com as palavras, deixando as frases a meio. Um pouco depois sobreveio-lhe um torpor fatal que o lançou nos braços de Morfeu. Ester e eu levámo-lo para o quarto, despimo-lo, metemo-lo entre lençóis.
Foi assim que fiquei sozinho com Ester. Apenas os espelhos, devassos, deitavam sobre nós os seus grandes olhos de luz. Ficámos sentados, ao lado um do outro, no sofá fronteiro à tapeçaria do labirinto. Nunca nos tínhamos habituado a falar, sempre nos limitáramos a ser ouvintes do Sousa, daí a dificuldade em iniciarmos uma conversa. Falaram os olhos, enquanto o Sousa ressonava no quarto. Os joelhos e os braços nus de Ester enchiam de reflexos o cristal dos espelhos. E havia o labirinto, qual o caminho que ia da sombra à claridade?
Ester parecia-me nessa noite mais bela e sensual, mas isso devia ser por a ter ali ao pé de mim, sozinha, disponível, afinal tão frágil.
Foi ela que estendeu o fio no chão, bastou segui-lo, no labirinto das emoções, para encontrar a luz. Depois já não soubemos nada de nós nem de ninguém, ia alta a madrugada quando a deixei.
O meu amigo Sousa telefonou-me uns dias mais tarde. Perguntei por Ester. Disse-me que tinha saído para casa da mãe, por uns tempos ou para o tempo todo da vida. Estranhei o tom da conversa. Mas o mais surpreendente foi a comunicação que me fez, com solenidade, de ter descoberto um Aleph no sótão de sua casa.
Imagina, dizia ele, um ponto que contem todos os pontos, onde podemos ver e saber de tudo. E fazia questão que fosse a sua casa, nessa noite, para subir ao sótão e no ângulo próprio certificar-me do seu grande achado.
Não sei se alguma vez cheguei a acreditar na possibilidade de existir um Aleph no sótão da casa do Sousa ou até de poder ser real essa alegada fantasia de Borges. Sou um céptico por natureza e não confundo literatura com realidade. Mas pelo sim pelo não, resolvi não ir. Aliás, nunca mais voltei a encontrar-me com o meu amigo. Mesmo que o enigmático ponto não passasse de uma invenção sua e não existisse portanto qualquer possibilidade de, por essa via, se vir a descobrir o que se passara entre mim e Ester, creio que o Sousa teria lido tudo com facilidade nos meus olhos. Como os olhos de Ester e de todos os puros, também os meus são um livro aberto.

D.E.

quinta-feira, outubro 05, 2006

UM DIÁRIO GORDO


Para a Violeta,
belíssima personagem do romance “Os meus sentimentos” de Dulce Maria Cardoso.



Conheço o amor de ouvir falar,

escrevia ela, uma frase lida num romance ou sussurrada na bruma do fim da tarde em algum domingo triste.

Os domingos são tristes quando estamos sós.

Era sempre pelas tardes de domingo que lhe chegava a nostalgia do que nunca tivera. Sentimentos contraditórios: lembranças de beijos não partilhados, flores silvestres que não colhera, palavras e risos não acontecidos, cartas e declarações de amor que nunca recebera.
Grandes são as saudades de aquilo que nunca tivemos.
Olhava no espelho o corpo sem graça, as linhas do rosto gastas na viagem do tempo, chegada a uma estação em que já pouco se espera: cinquenta anos. Bem podiam dizer que o amor é de todos os dias da vida: ela nunca o conhecera, apenas impressões que colhera nos livros e essas palavras doidas vogando nos ares, os ouvidos da alma afeiçoados a escutá-las, a caneta entre os dedos nervosos fixando a escrita no diário. Nunca foi bonita. Sempre descaiu um bom bocado para o lado do gordo: o IMC, índice de massa corporal, calcula-se da seguinte forma…e fazia as contas para se atormentar com a desmesura do resultado final. Invejava então os corpos pré-anorécticos das top models, a graça dos narizes e das boquinhas, a leveza das pernas e das ancas sobre as passerelles como se voassem a trespassar as nuvens. Em menina quis ser modelo, ou bailarina. Lembrava-se de ver na televisão a Twiggy, o cabelo louro cortado à rapaz e as pernas muito magras e compridas a romperem da mini-saia. E a Margot Fonteyn, no esplendor da sua meia-idade, a dançar o Lago dos Cisnes com aquele bailarino russo de quem já não recordava o nome.

Mulheres ou pássaros?, nunca tive a certeza.

Sentia-se acorrentada à brutalidade de um IMC de trinta e seis vírgula cinco, uma obesa de grau dois, risco severo de comorbilidade,

que palavra gorda!

Uma gorda presa ao chão como uma sapata de chumbo, um pássaro flácido e sem asas.

IMC = peso em quilogramas / altura em metros ao quadrado.

Escrevia nervosamente nas páginas do diário, um caderno em forma de livro atravessado por uma cinta de plástico que entrava na ranhura de um pequeno fecho, uma minúscula chave aprisionando a cinta e guardando de olhares indiscretos a intimidade da escrita. Era sempre aos domingos à tarde, ao fim da tarde, entre o testemunho do espelho e a consulta de uma velha balança desregulada com uma margem de erro de cerca de três quilos. Nada de importante: não chegava a quatro por cento do seu peso corporal. Abria as janelas e aspirava a leveza da bruma. Pensava em terapias para o mal: ginásio, clínica do Dr. Tallon, medicamentos, banda gástrica. A verdade é que não se decidia por nada e cada vez gostava mais de comer, cada vez comia mais. Uma compensação como qualquer outra. Lambuzava os lábios de chocolate, deglutia umas torradas com espessas coberturas de manteiga enquanto reduzia a escrito a perturbante inconsistência do sonho.

Quando chegarás, meu príncipe?

Nas folhas do diário, mudas, alastravam as manchas de gordura.


D.E.

domingo, outubro 01, 2006

Três poemas de JOSÉ LAURINDO LEAL DE GÓIS

FLOR DA ALVA

Aqui, a floresta derrama uma flor acesa.
Um grito sobre as marés. Escrevo, então,
a palavra amor, ou pedra.

Uma fatia de silêncio na madrugada
alva de panos.


PÁSSARO IMPOSSÍVEL

Há o lume, uma rosa revelada pela lava no rumor
da manhã. Nos percursos da memória, há esse roedor
de brumas, o coração, onde reside o motivo do voo:
Toda a música é voo, over dose de sons ou silêncios.

Como invencível fábrica de paixões fechadas,
tu conheces as variantes do sonho. O intervalo,
o compasso da vida, nem sempre musical.
Tu conheces a palavra metrónomo,
o voo impossível dos pássaros no fogo das ravinas.


LÂMPADA NO CORAÇÃO DO FOGO

Procuras frios animais no caminho das águas.
Um relógio na cadência da noite. Uma linguagem
no firmamento das palavras.
Desfazes nas mãos a orografia do pânico.
Uma sugestão musical, quase.

José Laurindo Leal de Góis nasceu no Funchal em 1954 e radicou-se em Lisboa na década de 80. Iniciou-se no jornalismo radiofónico entre 1973-75. Revelou-se, como poeta, no “Suplemento 2000”, e na página “Letras & Artes” do Jornal da Madeira. Colaborou na imprensa regional em espaços dedicados à crónica, ensaio e poesia. Integrou-se na Direcção do Ateneu Comercial do Funchal, em 1982. Pertence ao Movimento ILHA (1975).
Participou em Exposições Colectivas e Ciclos de Poesia, organizados pelas Actividades Culturais da Câmara Municipal do Funchal. Em Jogos Florais, Saraus e Recitais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Representou-se em projectos culturais, tais como, Olhares Atlânticos, Biblioteca Nacional-1991 e Leopardi na Madeira (1999).


(Poemas e dados biográficos extraídos do livro do autor “O Fogo e a Lágrima”, edição de CAMPO DAS LETRAS, 2003).