Do blogue Insónia, de Henrique Fialho (www.antologiadoesquecimento.blogspot.com), retiro esta imagem de Serge Gainsbourg e Jane Birkin. Como deixou escrito um judicioso comentarista do mesmo blogue, isto sim, era modernidade...
domingo, setembro 28, 2008
sábado, setembro 20, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( IX )

Porém, esta personagem quase sem cultura lia o livro de Cesário Verde até lhe arderem os olhos (poema III de O Guardador de Rebanhos), sabia dos cantos literários dos pastores de Virgílio (poema XII do mesmo livro) e numa entrevista supostamente dada em Vigo criticava Junqueiro e Pascoaes e chamava idiota a Verhaeren.
O que mais se encontra nos escritos de Alberto Caeiro é pensamento puro, filosofia. Uma complexidade que não se conforma com a simplicidade e a espontaneidade anunciadas. Paradoxos fascinantes do drama em gente pessoano.
domingo, setembro 07, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VIII )

Vinte e dois anos tinha a escritora quando viveu a paixão dos irmãos Anna e Miguel. Como pano de fundo, uma Nápoles da Contra-Reforma povoada de Sextas-Feiras Santas e de Cristos de gesso, um ambiente de penumbra e drama digno dos pincéis de Caravaggio.
Discorrendo sobre o tema do incesto, diz-nos a autora no seu posfácio a Anna, Soror…: (…) o facto de se pertencer a dois clãs inimigos, como Romeu e Julieta, raramente é sentido nas nossas civilizações como um obstáculo intransponível; o adultério banalizado perdeu, além disso, muito do seu prestígio graças à facilidade do divórcio; o amor entre duas pessoas do mesmo sexo saiu em parte da clandestinidade. Só o incesto continua a ser inconfessável e quase impossível de provar, mesmo onde suspeitamos que exista. É contra as falésias mais abruptas que mais violentamente se lança a vaga.
É isso. A vaga só é branda nas planuras da praia. Não tolera o desafio dos rochedos nem as escarpas dos sentimentos.
quinta-feira, agosto 28, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VII )

Leio agora o ciclo romanesco A Velha Casa – um misto de ficção e autobiografia que o autor considerava a obra capital da sua produção literária. Vou no terceiro livro – Os Avisos do Destino – e passo por episódios já encontrados em Confissão dum Homem Religioso ou nas Páginas do Diário Íntimo, escritos autobiográficos, como se o imaginário não fizesse sentido sem a luz do real, como se à vida não bastasse vivê-la e sempre se tornasse necessário dar-lhe visos de sonho. Este homem sonhou de mais e viveu de menos. Ou, pensando melhor, talvez tenha vivido na plenitude, se é verdade que, como disse o Poeta, o sonho comanda a vida.
Ficou conhecido por José Régio, um pseudónimo tirado do seu nome José Maria dos Reis Pereira. E nem aqui se distanciou de si mesmo.
segunda-feira, agosto 18, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( VI )

Dificilmente se encontrará em outro romance, como neste de Gustave Flaubert, um libelo tão impiedoso contra os charlatães da medicina.
Dir-se-á que se estava no século XIX, tempo de ideais e filosofias mas de limitado progresso das ciências médicas. É verdade. De resto, não faltam casos de convicções pseudocientíficas na ficção literária de Oitocentos. Veja-se, por exemplo, O Primo Basílio e a morte de Luísa, a “febre cerebral” de que foi acometida, sendo-lhe rapada toda a cabeça para mais eficaz resultado das compressas húmidas com que pretendiam debelar-lhe o mal. Veja-se o uso indiscriminado das flebotomias, a crença nos resultados dos sinapismos e das ventosas, as garrafas de medicamentos preparadas por génios de botica do tipo Eusébio Macário.
A negligência médica de Charles Bovary foi instigada pela inanidade científica do farmacêutico Homais. Ainda hoje os grandes erros médicos resultam, na maioria dos casos, de uma conjugação de equívocos entre a medicina e a farmacêutica – uma indústria poderosa que delapida milhões em estratégias de marketing perante a postura reverencial de investigadores e instituições universitárias. O corrupio de delegados de propaganda médica à porta dos consultórios e os congressos organizados em hotéis de luxo configuram uma medicina submetida à lógica do lucro, onde conta mais o dinheiro que a felicidade das pessoas. E não devia ser assim.
domingo, agosto 17, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( V )

Leio em Borges: Las Calles de Buenos Aires / ya son mi entraña. Fico com a cidade dentro de mim. E penso: como ainda há gente que insiste em partir de férias!
sábado, agosto 09, 2008
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 14 )
De um dia para o outro as paredes da aldeia encheram-se de cartazes com as fotografias dos líderes políticos, enquanto o chão se coalhava de coloridos rectângulos de papel, de diversos tamanhos, mostrando os programas dos partidos e as listas de candidatura. Largas faixas de pano atravessavam as ruas à altura dos beirais dos telhados, suspensas pelas extremidades nos candeeiros de iluminação pública, deixando cair sobre os moradores relâmpagos de frases curtas e incisivas, apelos ao voto e ínvias promessas de felicidade. Era a máquina da propaganda eleitoral em toda a sua força.
Logo nos primeiros dias da campanha, o Presidente da Câmara veio à aldeia em demanda de votos para um novo mandato. Trouxe consigo, para recrear o povo, um conhecido grupo coral de mineiros que desfilou pelo largo principal com a dolência dos seus cantares, os homens movendo-se muito lentamente, de braços dados, com os fatos de ganga, os capacetes escuros e as lanternas, os lenços vermelhos atados ao pescoço e estendidos em triângulo sobre a largura dos ombros. Entre a população, para que não houvesse dúvidas de quem organizara o evento, distribuíam-se esferográficas, sacos de plástico e outros brindes gravados com o nome e a fotografia do candidato. À noite, na sociedade recreativa, foi oferecido um jantar aos eleitores, tendo discursado o Presidente da Junta, um representante dos donos do empreendimento e, por último, muito inflamado, o Presidente da Câmara.
Foi enquanto este fazia a sua alocução que se soube do falecimento de Daniel. Acontecera durante a tarde, mas só à noite, quando entraram em casa para lhe levar o jantar, deram com o corpo estendido sobre a cama, como se estivesse a dormir, o pescoço e os membros superiores já tomados pela rigidez post mortem. Entre os amigos e vizinhos que participavam do repasto, a notícia foi passando de mesa em mesa, gerando-se alguma perturbação e natural desinteresse pelas palavras do orador. Este, estranhando o comportamento do auditório, fez uma pausa, ao mesmo tempo que sorvia uns golos de água, procurando saber junto de um assessor qual o motivo daquele rumor que percorria a sala. E tendo sido informado do sucedido, logo abriu um parêntesis na oratória para se associar ao pesar da aldeia pelo falecimento daquele seu filho, o que foi feito com grande eloquência e aparente emoção, embora não conhecesse o defunto de nenhum lado e nem sequer soubesse o seu nome. Assim, desta forma e por estas singulares razões, é que Daniel recebeu homenagens fúnebres, do alto de um palanque, no dia da sua morte. Foi mais uma vítima da subida das águas.
Entretanto, havia um problema que preocupava os donos do empreendimento e que o Presidente da Câmara pretendia resolver como grande trunfo eleitoral: era o caso daquele estranho povo de pastores que fora desapossado das suas terras para nelas se edificar a nova aldeia. O conflito com os habitantes de Novo Vilarinho, ocupantes forçados dos seus ancestrais lugares de pastoreio, tinha ficado em suspenso depois da intervenção da Guarda e de algum trabalho negocial feito com os líderes da revolta. A paz, no entanto, não parecia segura. Os pastores continuavam a reclamar um território alternativo para a subsistência dos seus rebanhos, pretensão que se revelava bem difícil de satisfazer, dado o valor económico entretanto adquirido pelas terras com as infra-estruturas de regadio que a barragem permitira criar.
As exigências dos pastores eram apoiadas por algumas forças políticas da oposição e pelas organizações ambientalistas, correntes de opinião que os donos do empreendimento se tinham habituado a não menosprezar no complexo processo que precedera a construção da barragem e o enchimento da albufeira. Agora, porém, que a obra tinha atingido os seus objectivos primários, que o grande lago era uma realidade e as populações deslocadas se acomodavam às suas novas casas, já eles pareciam não recear qualquer sucesso que lhes embaraçasse os planos, os quais consistiam na rápida expansão das áreas irrigadas e no incremento da produção de electricidade para todo o país e até para o exterior. Portanto, bem poderiam clamar no deserto os descrentes da sua política de progresso. Tinham aceitado salvar uma grande quantidade de oliveiras centenárias e uns poucos monumentos megalíticos; deixaram sob as águas as pedras escuras do milenar castelo, mas puseram a salvo a igreja matriz e as campas do cemitério; os deslocados haviam sido alojados numa aldeia nova, dispondo de locais de culto religioso, de espaços de convívio, de médicos e de apoio psicológico; ninguém tinha ficado mal e a verdade é que só praticamente os velhos, uma espécie em vias de extinção, demonstravam alguma resistência em se adaptarem à nova realidade. Havia então que resolver, como se de um pequeno detalhe se tratasse, a questão dos pastores e dos seus rebanhos, ou, melhor dizendo, dar a ideia de resolver, pois entregar a uma horda de queijeiros e produtores de lã terras com aptidão para uma agricultura de alto rendimento, era solução que não ousavam admitir.
Conhecedor das estratégias do empreendimento, apelou o Presidente da Câmara à cooperação entre as diferentes culturas. E falou de formação profissional, de reconversão para uma agricultura moderna, chamando a atenção para aquela força de trabalho – a dos pastores – que, devidamente formada, poderia responder aos desafios lançados pelos novos investidores, muitos deles vindos do país vizinho, gente com ideias avançadas, com uma visão apurada da economia e dos mais exigentes modelos empresariais. De todos estes juízos se ia compondo a intervenção do autarca, seguro de que não faltariam as ajudas e os fundos comunitários para obrar no seu concelho a revolução tranquila com que sonhava. E as suas palavras pareciam agradar, tanto quanto era possível avaliar pelos aplausos que ia recebendo.
Apenas um homem, um jovem psicólogo em serviço na aldeia, se levantou do seu lugar, como que revoltado, quando o discurso presidencial atingia o seu clímax. Saiu intempestivamente da sala, tornando-se assunto de muitas conversas naquela noite e nos dias que se seguiram.
Logo nos primeiros dias da campanha, o Presidente da Câmara veio à aldeia em demanda de votos para um novo mandato. Trouxe consigo, para recrear o povo, um conhecido grupo coral de mineiros que desfilou pelo largo principal com a dolência dos seus cantares, os homens movendo-se muito lentamente, de braços dados, com os fatos de ganga, os capacetes escuros e as lanternas, os lenços vermelhos atados ao pescoço e estendidos em triângulo sobre a largura dos ombros. Entre a população, para que não houvesse dúvidas de quem organizara o evento, distribuíam-se esferográficas, sacos de plástico e outros brindes gravados com o nome e a fotografia do candidato. À noite, na sociedade recreativa, foi oferecido um jantar aos eleitores, tendo discursado o Presidente da Junta, um representante dos donos do empreendimento e, por último, muito inflamado, o Presidente da Câmara.
Foi enquanto este fazia a sua alocução que se soube do falecimento de Daniel. Acontecera durante a tarde, mas só à noite, quando entraram em casa para lhe levar o jantar, deram com o corpo estendido sobre a cama, como se estivesse a dormir, o pescoço e os membros superiores já tomados pela rigidez post mortem. Entre os amigos e vizinhos que participavam do repasto, a notícia foi passando de mesa em mesa, gerando-se alguma perturbação e natural desinteresse pelas palavras do orador. Este, estranhando o comportamento do auditório, fez uma pausa, ao mesmo tempo que sorvia uns golos de água, procurando saber junto de um assessor qual o motivo daquele rumor que percorria a sala. E tendo sido informado do sucedido, logo abriu um parêntesis na oratória para se associar ao pesar da aldeia pelo falecimento daquele seu filho, o que foi feito com grande eloquência e aparente emoção, embora não conhecesse o defunto de nenhum lado e nem sequer soubesse o seu nome. Assim, desta forma e por estas singulares razões, é que Daniel recebeu homenagens fúnebres, do alto de um palanque, no dia da sua morte. Foi mais uma vítima da subida das águas.
Entretanto, havia um problema que preocupava os donos do empreendimento e que o Presidente da Câmara pretendia resolver como grande trunfo eleitoral: era o caso daquele estranho povo de pastores que fora desapossado das suas terras para nelas se edificar a nova aldeia. O conflito com os habitantes de Novo Vilarinho, ocupantes forçados dos seus ancestrais lugares de pastoreio, tinha ficado em suspenso depois da intervenção da Guarda e de algum trabalho negocial feito com os líderes da revolta. A paz, no entanto, não parecia segura. Os pastores continuavam a reclamar um território alternativo para a subsistência dos seus rebanhos, pretensão que se revelava bem difícil de satisfazer, dado o valor económico entretanto adquirido pelas terras com as infra-estruturas de regadio que a barragem permitira criar.
As exigências dos pastores eram apoiadas por algumas forças políticas da oposição e pelas organizações ambientalistas, correntes de opinião que os donos do empreendimento se tinham habituado a não menosprezar no complexo processo que precedera a construção da barragem e o enchimento da albufeira. Agora, porém, que a obra tinha atingido os seus objectivos primários, que o grande lago era uma realidade e as populações deslocadas se acomodavam às suas novas casas, já eles pareciam não recear qualquer sucesso que lhes embaraçasse os planos, os quais consistiam na rápida expansão das áreas irrigadas e no incremento da produção de electricidade para todo o país e até para o exterior. Portanto, bem poderiam clamar no deserto os descrentes da sua política de progresso. Tinham aceitado salvar uma grande quantidade de oliveiras centenárias e uns poucos monumentos megalíticos; deixaram sob as águas as pedras escuras do milenar castelo, mas puseram a salvo a igreja matriz e as campas do cemitério; os deslocados haviam sido alojados numa aldeia nova, dispondo de locais de culto religioso, de espaços de convívio, de médicos e de apoio psicológico; ninguém tinha ficado mal e a verdade é que só praticamente os velhos, uma espécie em vias de extinção, demonstravam alguma resistência em se adaptarem à nova realidade. Havia então que resolver, como se de um pequeno detalhe se tratasse, a questão dos pastores e dos seus rebanhos, ou, melhor dizendo, dar a ideia de resolver, pois entregar a uma horda de queijeiros e produtores de lã terras com aptidão para uma agricultura de alto rendimento, era solução que não ousavam admitir.
Conhecedor das estratégias do empreendimento, apelou o Presidente da Câmara à cooperação entre as diferentes culturas. E falou de formação profissional, de reconversão para uma agricultura moderna, chamando a atenção para aquela força de trabalho – a dos pastores – que, devidamente formada, poderia responder aos desafios lançados pelos novos investidores, muitos deles vindos do país vizinho, gente com ideias avançadas, com uma visão apurada da economia e dos mais exigentes modelos empresariais. De todos estes juízos se ia compondo a intervenção do autarca, seguro de que não faltariam as ajudas e os fundos comunitários para obrar no seu concelho a revolução tranquila com que sonhava. E as suas palavras pareciam agradar, tanto quanto era possível avaliar pelos aplausos que ia recebendo.
Apenas um homem, um jovem psicólogo em serviço na aldeia, se levantou do seu lugar, como que revoltado, quando o discurso presidencial atingia o seu clímax. Saiu intempestivamente da sala, tornando-se assunto de muitas conversas naquela noite e nos dias que se seguiram.
domingo, julho 27, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( IV )

Lembremo-nos de que Amélia, à noite, quando recolhia ao seu quarto exaltada pelos serões familiares onde Amaro pontificava, se punha a ler os Cânticos a Jesus, um livrinho devoto em que o Filho de Deus é invocado segundo um erotismo de alucinação: Oh! Vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quere-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! Queima-me! Vem! Esmaga-me! Possui-me! (Cap. VI).
Por outro lado, no Capítulo XVIII é Amaro que erotiza a sacra representação de Nossa Senhora, colocando sobre os ombros de Amélia a capa de cetim azul, bordada de estrelas, que devia adornar a imagem da Virgem: Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora – diz.
Tudo requebros que nos chegam dos Santos Evangelhos: Maria Madalena lavando os pés do Senhor, secando-os com os seus cabelos perfumados; a Samaritana dando de beber (ou dando-se a beber) a Jesus junto do poço de Jacob.
Hoje, felizmente, são mais terrenos entre os ministros de Deus os inexoráveis apelos da carne. Já dizia o Padre-Mestre a Amaro no citado Capítulo XVIII: Homem! É o que a gente leva de melhor deste mundo!
domingo, junho 22, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( III )

Levou-a à força pelos alcantis das Terras do Demo, fazendo-a passar de donzela a dona num cardenho lúgubre perdido nos píncaros das serranias.
Quando o progenitor da jovem, seu tio e segundo pai, lhe saltou ao caminho em reparação de tão grave afronta, o pérfido Malhadas apontou-lhe o bacamarte ao peito e disse:
- Tenha-se, senão morre!
Assim se pagavam naquele Portugal de antanho os desvelos de tio e pai adoptivo. Porque António Malhadinhas nunca foi boa rês. Tinha uma língua afiada e uma faca ágil com que não se coibia de fazer estrago no coração ou nas tripas de quem contra ele levantasse contenda.
E, no entanto, a vida deste homem poderia ter sido diferente se um pouco antes do desaforado rapto se tivesse deixado ir na corrente de felicidade que lhe augurava a doce e terna Rita. Ter-se-ia talvez convertido num agricultor sisudo, cioso do chão de onde lhe manava o sustento, e não no renitente recoveiro sempre disposto a correr os sendeiros de Barrelas a Aveiro mordido pela febre da veniaga, em busca do lucro rápido nas transacções de sal, presuntos e azeite.
Por estas razões dá que pensar O Malhadinhas. Como seriam as nossas vidas se não tivéssemos seguido, em determinado momento, a voz desse raptor que temos dentro de nós? E nos tivéssemos deixado ir, simplesmente, na doce promessa dos olhos ternos que rejeitámos? Estaríamos melhor, estaríamos pior? Seríamos de certeza diferentes.
D.E.
quarta-feira, junho 04, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( II )

Em baixo corria o Lima, o lendário Letes, o rio do esquecimento dos Calaicos.
Madeleine chegou de Paris para umas férias com os primos Barbelas, uma estirpe decadente, apesar de tudo uns furos acima da parentela dos Beringelas, rudes senhores de Entre Douro e Minho envilecidos no trabalho mecânico das conservas de enguias e trutas assalmonadas.
Se o cavaleiro virgem de Santa Comba tivesse encontrado Madeleine, ter-se-ia apaixonado por ela como aconteceu com o cavaleiro autêntico da história. Era bem conhecida a sua atracção por senhoras parisienses, assim como a facilidade com que as convidava a passar férias na sua quinta e vinhedos do viçoso Dão.
Madeleine foi um raio de sol que rompeu o espesso nevoeiro dos domínios senhoriais da Torre da Barbela. É uma personagem excitante, alegre e desinibida, muito acima dos visos trágicos de Izabella, da postura belicosa de Dom Raymundo, da carnalidade do Abade da Moutosa ou da bastardia risível do Menino Sancho.
Madeleine estava morta e bem morta, e nisso era completamente diferente do Dr. Mirinho, um primo tecnocrata que, estando morto, até parecia vivo.
É por parecerem vivos que os tecnocratas são perigosos. O cavaleiro da história montava o cavalo Vilancete e dava a guante às garras do seu falcão Abelardo. Hoje, na nossa Torre, tecnocratas aparentemente vivos montam os velozes cavalos do poder e dão-se igualmente a artes de falcoaria.
Mortos, autenticamente mortos, seriam ao menos suportáveis.
D.E.
domingo, junho 01, 2008
A IMPERTINÊNCIA DE SENTIR ( I )

“Le gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide.”
Lembrei-me do relógio – deus sinistro, aterrador, impassível –, metonímia do tempo fugaz e de imagens que se escoam nas retinas frágeis, a propósito do romance “As Horas Nuas”, de Lygia Fagundes Telles, livro que li mais uma vez no passado sábado, a horas vestidas de futebol, na comunidade de leitores da Biblioteca Municipal do Seixal.
Rosa Ambrósio, a diva, padecia o flagelo da idade nos cones de água do contador do tempo; Rahul, um felino de patas almofadadas que atravessara a vertigem das eras, derramava nos sofás o seu corpo de sombra e luz; Ananta continuava desaparecida; Cordélia amava; Dionísia sofria. Dos outros não me apetece falar, o Gregório que me desculpe.
Como ando a participar no boicote ingénuo às gasolineiras, fui e vim na boleia de uma carruagem que não se perturba com a subida dos preços dos combustíveis.
Sim, julgo entender a inscrição no portal de “Clepsidra”:
“Eu vi a luz em um país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme…”
E peixe, vai haver peixe para as sardinhadas de Junho?
D.E.
quarta-feira, abril 16, 2008
A SUBIDA DAS ÁGUAS (13)
Naquela manhã, Josué saiu cedo de casa. Desde o dia da última sessão de terapia que não se sentia bem – uma dor de cabeça que lhe moía as têmporas e não dava sinais de regredir, apesar dos comprimidos que andava a tomar há mais de uma semana. Fechou a porta, embrulhou a chave no lenço como era seu hábito, e seguiu pelas ruas, um pouco ao acaso, sentindo que o espaço aberto e o ar fresco do dia lhe davam uma dose suplementar de resistência, uma outra força para enfrentar o sofrimento.
Atravessou o largo, passou rente à sociedade recreativa, tomando a rua que vai até ao terreiro da igreja e ao cemitério. Ali, sentou-se num degrau do cruzeiro a olhar a fachada do templo com o seu alpendre de telha-vã e a sua torre sineira. A manhã era uma várzea de luz e o voo dos pássaros riscava nos ares prenúncios de Primavera. Atrás, para lá do bloco escuro do museu, entrava pelos campos uma língua de água cinzenta e grossa, a superfície levemente ondulada, as pequenas ondas desfazendo-se numa babujem frouxa de encontro às pedras da margem. E pensou: Por pouco a água não lambia os muros do cemitério. Josué reparou nos ciprestes projectados na direcção do céu, e, por um instante, veio-lhe à memória o passamento de Jacob, o primeiro dos companheiros a partir depois da subida das águas. Repeliu a dolorosa lembrança e, levantando-se, recomeçou a andar, esboçando uma saudação fugaz para um grupo de forasteiros que atravessava o terreiro na direcção do museu.
Àquela hora, poucos moradores andavam pelas ruas, apenas se viam carros com pessoas de fora, gente que vinha de passeio ver a aldeia e os seus habitantes com o mesmo sentido de curiosidade de quem se dispõe a observar algo de inteiramente novo: uma ilha nascida no oceano por um qualquer fenómeno de origem vulcânica, uma cidade levantada depois de um cataclismo sísmico. E aprendiam, no livro aberto do museu, os nomes dos monumentos que para sempre tinham ficado sob as águas do lago: os menires e as antas, o castelo, as artes da pesca fluvial, os barcos do rio, as chaminés e os telhados das casas, tudo o que era a vida e a alma do povo. Os forasteiros, reparou, traziam máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, riam e falavam alto, gravavam, contra os desvios da memória, as imagens felizes de que são feitas as viagens.
Josué deixou o terreiro da igreja e voltou à rua, percorrendo-a na direcção contrária, no sentido do centro da aldeia. Ao chegar junto dos muros da pequena praça de touros, encontrou Daniel, ensimesmado, alheio a tudo o que o rodeava, como se já não fizesse parte daquele espaço e daquele tempo. Daniel, que sempre fora forte e soubera aceitar com estoicismo a infeliz condição de deslocado, tinha sofrido muito com a loucura de Jonas, seu companheiro de cavaco e pescarias. Começou a receber apoio psicológico no centro social do empreendimento, mas logo deixou de ir às sessões, ainda que muito instado para nelas comparecer. Vivia sozinho, e eram voluntários de uma qualquer instituição de apoio social que diariamente lhe vinham trazer as refeições e fazer os arranjos da casa. Daniel, que em tempos fora o mais querido de todos os camaradas, que andara com eles pelos caminhos do sonho, enfrentando provações que sempre soubera ultrapassar com dignidade, era naquele momento uma ruína de homem que inspirava a mais dolorosa das comiserações. Josué aproximou-se dele e abraçou-o. Colhia naquele transe todo o sentido de um adeus definitivo, os seus braços sobre os ombros murchos do companheiro, puxando-o para si como se quisesse metê-lo no coração, as palavras que não era capaz de dizer, os olhos turvos de febre ou de choro, e uma vontade de se deixar ficar ali no indizível transporte daquele abraço. Despedia-se, mas não sabia qual dos dois ia partir.
A manhã ia já adiantada. Na rua principal, a caravana automóvel de um partido político estendia nos ares, a partir de altifalantes roufenhos amarrados ao tejadilho de um carro, uma corda de palavras de ordem e cantilenas de esperança. Só então Josué percebeu que tinha começado a campanha eleitoral.
Atravessou o largo, passou rente à sociedade recreativa, tomando a rua que vai até ao terreiro da igreja e ao cemitério. Ali, sentou-se num degrau do cruzeiro a olhar a fachada do templo com o seu alpendre de telha-vã e a sua torre sineira. A manhã era uma várzea de luz e o voo dos pássaros riscava nos ares prenúncios de Primavera. Atrás, para lá do bloco escuro do museu, entrava pelos campos uma língua de água cinzenta e grossa, a superfície levemente ondulada, as pequenas ondas desfazendo-se numa babujem frouxa de encontro às pedras da margem. E pensou: Por pouco a água não lambia os muros do cemitério. Josué reparou nos ciprestes projectados na direcção do céu, e, por um instante, veio-lhe à memória o passamento de Jacob, o primeiro dos companheiros a partir depois da subida das águas. Repeliu a dolorosa lembrança e, levantando-se, recomeçou a andar, esboçando uma saudação fugaz para um grupo de forasteiros que atravessava o terreiro na direcção do museu.
Àquela hora, poucos moradores andavam pelas ruas, apenas se viam carros com pessoas de fora, gente que vinha de passeio ver a aldeia e os seus habitantes com o mesmo sentido de curiosidade de quem se dispõe a observar algo de inteiramente novo: uma ilha nascida no oceano por um qualquer fenómeno de origem vulcânica, uma cidade levantada depois de um cataclismo sísmico. E aprendiam, no livro aberto do museu, os nomes dos monumentos que para sempre tinham ficado sob as águas do lago: os menires e as antas, o castelo, as artes da pesca fluvial, os barcos do rio, as chaminés e os telhados das casas, tudo o que era a vida e a alma do povo. Os forasteiros, reparou, traziam máquinas fotográficas e câmaras de vídeo, riam e falavam alto, gravavam, contra os desvios da memória, as imagens felizes de que são feitas as viagens.
Josué deixou o terreiro da igreja e voltou à rua, percorrendo-a na direcção contrária, no sentido do centro da aldeia. Ao chegar junto dos muros da pequena praça de touros, encontrou Daniel, ensimesmado, alheio a tudo o que o rodeava, como se já não fizesse parte daquele espaço e daquele tempo. Daniel, que sempre fora forte e soubera aceitar com estoicismo a infeliz condição de deslocado, tinha sofrido muito com a loucura de Jonas, seu companheiro de cavaco e pescarias. Começou a receber apoio psicológico no centro social do empreendimento, mas logo deixou de ir às sessões, ainda que muito instado para nelas comparecer. Vivia sozinho, e eram voluntários de uma qualquer instituição de apoio social que diariamente lhe vinham trazer as refeições e fazer os arranjos da casa. Daniel, que em tempos fora o mais querido de todos os camaradas, que andara com eles pelos caminhos do sonho, enfrentando provações que sempre soubera ultrapassar com dignidade, era naquele momento uma ruína de homem que inspirava a mais dolorosa das comiserações. Josué aproximou-se dele e abraçou-o. Colhia naquele transe todo o sentido de um adeus definitivo, os seus braços sobre os ombros murchos do companheiro, puxando-o para si como se quisesse metê-lo no coração, as palavras que não era capaz de dizer, os olhos turvos de febre ou de choro, e uma vontade de se deixar ficar ali no indizível transporte daquele abraço. Despedia-se, mas não sabia qual dos dois ia partir.
A manhã ia já adiantada. Na rua principal, a caravana automóvel de um partido político estendia nos ares, a partir de altifalantes roufenhos amarrados ao tejadilho de um carro, uma corda de palavras de ordem e cantilenas de esperança. Só então Josué percebeu que tinha começado a campanha eleitoral.
D.E.
quinta-feira, fevereiro 28, 2008
A SUBIDA DAS ÁGUAS (12)
Ester veio hoje ao meu gabinete pela terceira vez. É difícil não reparar nos seus olhos de uma claridade quase líquida, ainda belos, surpreendentes numa mulher já tão avançada na carreira dos anos. Admiro-lhe a forma elegante como se senta, a saia cinzenta de fino corte, a blusa vistosa sob o casaco de malha onde radia a fortuita luminescência de uns botões de madrepérola.
De todos os deslocados que foram encaminhados para a ajuda psicológica, é este o caso que menos me preocupa. Às vezes, durante a conversa que mantenho com ela, consegue ser jovial. Há momentos, porém, em que se lhe turba o brilho dos olhos e as rugas do rosto, em que quase não se repara, conferem-lhe uma inesperada expressão de melancolia. É nestes momentos que sinto tocar a zona escura da sua alma.
Escuto-a. Conta-me coisas antigas dos seus tempos de moça, quando era a mulher mais formosa da aldeia e não havia homem que, perante si, ousasse ficar indiferente. Tempos difíceis para quem, como ela, trabalhava nos campos. Uns emigravam, outros, para não se afundarem na miséria, desenvolviam as mais variadas estratégias de sobrevivência. Ester saiu de casa dos pais e foi viver por conta de um poderoso senhor da cidade, um homem que mandava nas polícias de todo o distrito, guardador da ordem pública e dos silentes rebanhos de gente.
Houve um período, porém, em que alastraram as reivindicações dos trabalhadores. No surto das greves, os homens e as mulheres ficavam em casa sem sair para os campos, as sementeiras a perderem-se pela renúncia dos braços. Era então que a Guarda procurava os desertores nos lugarejos ou nos tugúrios isolados onde viviam, metia-os em camionetas de caixa aberta à força do poder das espingardas e entregava-os nas terras dos senhores que ansiosamente esperavam pelos seus braços de aluguer. Ester acompanhou tudo da gaiola doirada onde vivia, serva e rainha na casa do poderoso senhor, e quando saiu a ordem para a detenção dos cabecilhas da revolta, correu a avisá-los, para que não os alcançasse o braço da lei. Salvou os perseguidos, mas perdeu-se a ela.
Ao longo das sessões, venho notando que evita falar dos seus problemas, razão por que vem, semanalmente, ao meu gabinete. Pergunto-lhe o que pensa da nova aldeia, do canal de televisão e dos serviços de apoio do empreendimento, tento pegar no infeliz episódio da destruição do televisor, mas ela torneia as minhas questões. Responde-me evasivamente e, quando menos se espera, já se afunda no pélago das memórias. Memórias de água, diz-me em certo momento, e eu sinto que não posso insistir mais, que tenho de ouvir as suas recordações até ao último minuto da sessão, e que essa será a única forma de a poder ajudar.
Fala-me de Josué, de Jonas, de Daniel, do infeliz Jacob que se finou na incandescência de uma tarde de Verão, à hora em que se fazia sentir, em toda a plenitude, o rescendor único das estevas do campo. Faz-me recuar aos tempos em que eram todos jovens, antes, muito antes de lhes submergirem as vidas e os afectos numa massa de água sustida por um paredão de cimento com noventa metros de altura. Fala-me de Salomé, a que repousa no leito do lago por o marido ter recusado a trasladação dos seus restos mortais. Salomé, uma mulher nervosa e beata que fez um filho fora do casamento e que saiu da aldeia por não ter sido capaz de enfrentar a reprovação geral dos conterrâneos. Voltou mais tarde, sem a criança, a qual, segundo ela, teria morrido. Verdade? Mentira? Nunca se soube ao certo. Salomé morreria uns anos mais tarde, ainda jovem, de um mal na barriga.
Ester continua a falar até que termine o tempo que lhe está reservado. Eu já conhecia o episódio da recusa da trasladação: o que foi seu marido, Josué, vem regularmente ao gabinete de ajuda psicológica. Só não sabia o nome da mulher, as circunstâncias da sua vida conjugal, nem da brevidade da sua vida.
Chamava-se Salomé. Era o nome de minha mãe.
D.E.
quarta-feira, janeiro 30, 2008
A SUBIDA DAS ÁGUAS (11)
Há três noites que Josué tem o mesmo sonho. Um sonho mais entre os muitos que costumam assediá-lo e com os quais se habituou a discernir o sentido obscuro e profundo das premonições.
Vai num barco de passageiros que navega as águas de um rio sob um céu azul por onde correm nuvens grossas e claras, a luz do sol atravessando-as como se fossem lentes, caindo em fogo sobre o dorso da terra. O rio às vezes é largo até não se verem as margens (um lago?); noutras, estreita-se tanto que quase não dá para continuar. Josué não se lembra da cara de nenhum dos companheiros de viagem, mas tem bem presente o reflexo de prata dos peixes enfrentando o ímpeto da corrente carregada de barro e limos. Não sabe para onde segue o barco, que destino demanda o inverosímil arrais.
A certa altura, Jonas aparece-lhe na margem segurando a cana de pesca, abrigado do sol sob o frágil rícino. Acena-lhe do barco, mas ele não o vê. Parece uma sombra. Apenas o fio de nylon lançado sobre o desassossego dos cardumes refulge à luz poderosa do dia.
Quando as margens se aproximam, vêem-se esteiros que se metem pelo corpo da terra, serpenteando entre montes, brumosos canais por onde o barco nunca se aventuraria a singrar.
À entrada de uma dessas línguas de água surge a figura de Ester, ainda jovem, debruçada numa espécie de varanda sobre a superfície do rio ou do lago, vestindo umas calças justas, os cabelos molhados como se tivesse acabado de sair do banho, os seios espetados sob a camisa leve e transparente, a pele muito branca. Ester também não responde ao aceno que ele lhe dirige, e, no entanto, não é um corpo de sombra como Jonas. Talvez seja ele, afinal, a verdadeira sombra. Por isso, por mais que procure chamar a atenção dos amigos que encontra, nunca o poderão atender os que estão do outro lado do sonho. Mas dá consigo a falar com Jacob, entretanto saído não sabe de onde, roxo e estropiado tal como ficou no transe da sua morte por electrocussão, a língua inchada saindo-lhe pela fenda da boca, os dedos negros como paus de carvão, os olhos baços, os cabelos em desalinho. Fala com ele, um mesmo código de linguagem fluindo entre ambos, um lento diálogo de sombras.
Josué está sentado no gabinete do psicólogo no centro social do empreendimento. Conta-lhe o sonho. O homem, ainda jovem, escuta-o com atenção. Depois de várias sessões de terapia, vencida a desconfiança inicial, sente-se agora à vontade com o terapeuta que lhe destinaram. É uma criatura simpática, de falas e modos delicados que, sem dúvida, procura ajudá-lo. Repara-lhe nas unhas das mãos, bem cuidadas, onde fulge o vago brilho de uma película de verniz. Tem ademanes curiosos, inusitados num homem, mas os olhos, os lábios e o formato do rosto são-lhe estranhamente familiares. Parece conhecê-lo há muito tempo.
No cabo do sonho Josué vê chegar Salomé, muito decaída, tal como era dias antes da sua morte. Junta-se a si e a Jacob e conversam os três como se não houvesse entre eles diferença de estado ou condição. Já então tinha desembarcado não sabe bem em que cais. Na margem do rio ou do lago desaparecera há muito a figura de Ester.
A sessão de terapia chega ao fim. Agora é o psicólogo que fala:
“Os sonhos têm janelas de onde é possível ver a realidade.”
E acrescenta:
“Sonho tantas vezes com a minha mãe, de quem mal me lembro, que é como se ela nunca me tivesse deixado.”
Josué recebeu o cartão com a data e a hora da sessão seguinte, guardando-o na frágil carteira de plástico. Saiu para a luz da manhã que desabava sobre a geometria das ruas. Doía-lhe a cabeça.
Vai num barco de passageiros que navega as águas de um rio sob um céu azul por onde correm nuvens grossas e claras, a luz do sol atravessando-as como se fossem lentes, caindo em fogo sobre o dorso da terra. O rio às vezes é largo até não se verem as margens (um lago?); noutras, estreita-se tanto que quase não dá para continuar. Josué não se lembra da cara de nenhum dos companheiros de viagem, mas tem bem presente o reflexo de prata dos peixes enfrentando o ímpeto da corrente carregada de barro e limos. Não sabe para onde segue o barco, que destino demanda o inverosímil arrais.
A certa altura, Jonas aparece-lhe na margem segurando a cana de pesca, abrigado do sol sob o frágil rícino. Acena-lhe do barco, mas ele não o vê. Parece uma sombra. Apenas o fio de nylon lançado sobre o desassossego dos cardumes refulge à luz poderosa do dia.
Quando as margens se aproximam, vêem-se esteiros que se metem pelo corpo da terra, serpenteando entre montes, brumosos canais por onde o barco nunca se aventuraria a singrar.
À entrada de uma dessas línguas de água surge a figura de Ester, ainda jovem, debruçada numa espécie de varanda sobre a superfície do rio ou do lago, vestindo umas calças justas, os cabelos molhados como se tivesse acabado de sair do banho, os seios espetados sob a camisa leve e transparente, a pele muito branca. Ester também não responde ao aceno que ele lhe dirige, e, no entanto, não é um corpo de sombra como Jonas. Talvez seja ele, afinal, a verdadeira sombra. Por isso, por mais que procure chamar a atenção dos amigos que encontra, nunca o poderão atender os que estão do outro lado do sonho. Mas dá consigo a falar com Jacob, entretanto saído não sabe de onde, roxo e estropiado tal como ficou no transe da sua morte por electrocussão, a língua inchada saindo-lhe pela fenda da boca, os dedos negros como paus de carvão, os olhos baços, os cabelos em desalinho. Fala com ele, um mesmo código de linguagem fluindo entre ambos, um lento diálogo de sombras.
Josué está sentado no gabinete do psicólogo no centro social do empreendimento. Conta-lhe o sonho. O homem, ainda jovem, escuta-o com atenção. Depois de várias sessões de terapia, vencida a desconfiança inicial, sente-se agora à vontade com o terapeuta que lhe destinaram. É uma criatura simpática, de falas e modos delicados que, sem dúvida, procura ajudá-lo. Repara-lhe nas unhas das mãos, bem cuidadas, onde fulge o vago brilho de uma película de verniz. Tem ademanes curiosos, inusitados num homem, mas os olhos, os lábios e o formato do rosto são-lhe estranhamente familiares. Parece conhecê-lo há muito tempo.
No cabo do sonho Josué vê chegar Salomé, muito decaída, tal como era dias antes da sua morte. Junta-se a si e a Jacob e conversam os três como se não houvesse entre eles diferença de estado ou condição. Já então tinha desembarcado não sabe bem em que cais. Na margem do rio ou do lago desaparecera há muito a figura de Ester.
A sessão de terapia chega ao fim. Agora é o psicólogo que fala:
“Os sonhos têm janelas de onde é possível ver a realidade.”
E acrescenta:
“Sonho tantas vezes com a minha mãe, de quem mal me lembro, que é como se ela nunca me tivesse deixado.”
Josué recebeu o cartão com a data e a hora da sessão seguinte, guardando-o na frágil carteira de plástico. Saiu para a luz da manhã que desabava sobre a geometria das ruas. Doía-lhe a cabeça.
D.E.
sexta-feira, novembro 30, 2007
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 10 )
Quando a luz do sol se extingue muito para lá da aldeia e da grande massa de água que tomou conta das terras, encontro-me quase sempre sentado na varanda da pensão da vila, a uns cinco quilómetros de distância do meu local de trabalho, e, folheando um livro ou percorrendo num caderno as notas que me habituei a tomar, não deixo de pensar na tristeza das gentes que me rodeiam e na falta de sentido das suas vidas. Homens e mulheres bem adiantados na roda dos anos, os olhos gastos de tudo o que viram e deixaram de ver, a memória submersa, arrastando-se pelo traçado rectilíneo da nova aldeia, violentamente limpa, sem encontrarem os caminhos da felicidade.
É esta a massa em que todos os dias afundo as mãos no meu trabalho de psicólogo ao serviço do empreendimento. Estou nestas funções há pouco mais de um ano, desde a altura em que se trasladaram os restos mortais das campas do cemitério e os habitantes da aldeia começaram a mudar-se para as casas novas.
Vi coisas que não vou esquecer tão cedo, como o caso daquele homem que recusou levantar os ossos da mulher. Não se lhe conseguiu arrancar uma palavra de remição, nenhuma fresta se abriu naquela alma por onde se pudesse lobrigar uma mágoa ou um motivo para o insólito procedimento, nenhuma ajuda se lhe conseguiu dar. É por isso que, muitas vezes, descreio daquilo que faço: anos e anos a encher a cabeça de teorias, a afinar conceitos, a idealizar o momento de começar a aplicar os conhecimentos adquiridos, para, uma vez no terreno, não ser capaz de ajudar quem precisa.
Este homem foi o primeiro que, revoltado com as emissões diárias de propaganda a respeito dos benefícios do empreendimento, resolveu destruir o aparelho de televisão. Outros o seguiram. E, no entanto, bastava não ligarem os televisores ou deixarem de os sintonizar no respectivo canal para evitarem as promessas de progresso e felicidade com que os assediavam: uma nova aldeia com modernos equipamentos para toda a população, água em abundância para rega e produção de energia eléctrica, novas vias de acesso à região, melhor assistência médica. A destruição dos televisores foi alastrando de casa em casa numa espécie de automutilação sucessiva, como se os seus donos fossem incapazes de suportar ao pé de si, ainda que desconectados mas à distância de um distraído clique, aqueles aparelhos de onde poderia jorrar, a qualquer instante, o vómito abominável da falsidade. Acompanhei alguns destes casos. Não resolvi nenhum de forma aceitável.
Vou a caminho dos trinta e dois anos. Parece-me às vezes que sou ainda jovem, outras que já vi e vivi de mais. Não foi fácil chegar onde cheguei. Nunca conheci o meu pai, nunca me foi dito o seu nome, e da minha mãe não guardo mais que a vaga lembrança dos meus cinco anos de idade. Cresci agarrado às saias da minha avó, enquanto viveu. Depois ampararam-me e fui-me amparando. Fiz-me homem antes de tempo.
Um dia dei conta da solidão em mim e da nenhuma vontade em sair dela. Gosto de viver sozinho, nunca pensei em casar.
Agora que estamos no Verão costumo muitas vezes sair à noite. Atravesso a fronteira (outros caminhos, outros lugares) para ir cear aos restaurantes das cidades mais próximas do país vizinho, para tomar uma bebida num bar e, calhando, ter um encontro fugaz com alguém, longe do ambiente fechado da vila e da pensão onde resido, longe do meu local de trabalho, um desses encontros que duram um pedaço da noite e sempre me devolvem, no fim dos seus breves lampejos, à minha irrevogável condição de solitário. Regresso sempre à pensão a tempo de dormir umas horas, de tomar um duche, e às nove da manhã já estou no centro de apoio psicológico do empreendimento a fazer o meu trabalho.
Estas linhas são as primeiras de um diário que agora começo a escrever. Ainda que seja um diário sem datas, condenado a uma periodicidade irregular, ainda que, por isso mesmo, venha a ser tudo menos um diário, será uma forma de gravar os meus sentimentos, de me encontrar comigo, de acertar contas com a vida. Provavelmente falarei mais de aquilo que me rodeia e menos de o que em mim está. Tenho como certo que é pelos outros que passa o caminho para nós, e esta é apenas uma das muitas contradições que ainda não fui capaz de resolver.
É esta a massa em que todos os dias afundo as mãos no meu trabalho de psicólogo ao serviço do empreendimento. Estou nestas funções há pouco mais de um ano, desde a altura em que se trasladaram os restos mortais das campas do cemitério e os habitantes da aldeia começaram a mudar-se para as casas novas.
Vi coisas que não vou esquecer tão cedo, como o caso daquele homem que recusou levantar os ossos da mulher. Não se lhe conseguiu arrancar uma palavra de remição, nenhuma fresta se abriu naquela alma por onde se pudesse lobrigar uma mágoa ou um motivo para o insólito procedimento, nenhuma ajuda se lhe conseguiu dar. É por isso que, muitas vezes, descreio daquilo que faço: anos e anos a encher a cabeça de teorias, a afinar conceitos, a idealizar o momento de começar a aplicar os conhecimentos adquiridos, para, uma vez no terreno, não ser capaz de ajudar quem precisa.
Este homem foi o primeiro que, revoltado com as emissões diárias de propaganda a respeito dos benefícios do empreendimento, resolveu destruir o aparelho de televisão. Outros o seguiram. E, no entanto, bastava não ligarem os televisores ou deixarem de os sintonizar no respectivo canal para evitarem as promessas de progresso e felicidade com que os assediavam: uma nova aldeia com modernos equipamentos para toda a população, água em abundância para rega e produção de energia eléctrica, novas vias de acesso à região, melhor assistência médica. A destruição dos televisores foi alastrando de casa em casa numa espécie de automutilação sucessiva, como se os seus donos fossem incapazes de suportar ao pé de si, ainda que desconectados mas à distância de um distraído clique, aqueles aparelhos de onde poderia jorrar, a qualquer instante, o vómito abominável da falsidade. Acompanhei alguns destes casos. Não resolvi nenhum de forma aceitável.
Vou a caminho dos trinta e dois anos. Parece-me às vezes que sou ainda jovem, outras que já vi e vivi de mais. Não foi fácil chegar onde cheguei. Nunca conheci o meu pai, nunca me foi dito o seu nome, e da minha mãe não guardo mais que a vaga lembrança dos meus cinco anos de idade. Cresci agarrado às saias da minha avó, enquanto viveu. Depois ampararam-me e fui-me amparando. Fiz-me homem antes de tempo.
Um dia dei conta da solidão em mim e da nenhuma vontade em sair dela. Gosto de viver sozinho, nunca pensei em casar.
Agora que estamos no Verão costumo muitas vezes sair à noite. Atravesso a fronteira (outros caminhos, outros lugares) para ir cear aos restaurantes das cidades mais próximas do país vizinho, para tomar uma bebida num bar e, calhando, ter um encontro fugaz com alguém, longe do ambiente fechado da vila e da pensão onde resido, longe do meu local de trabalho, um desses encontros que duram um pedaço da noite e sempre me devolvem, no fim dos seus breves lampejos, à minha irrevogável condição de solitário. Regresso sempre à pensão a tempo de dormir umas horas, de tomar um duche, e às nove da manhã já estou no centro de apoio psicológico do empreendimento a fazer o meu trabalho.
Estas linhas são as primeiras de um diário que agora começo a escrever. Ainda que seja um diário sem datas, condenado a uma periodicidade irregular, ainda que, por isso mesmo, venha a ser tudo menos um diário, será uma forma de gravar os meus sentimentos, de me encontrar comigo, de acertar contas com a vida. Provavelmente falarei mais de aquilo que me rodeia e menos de o que em mim está. Tenho como certo que é pelos outros que passa o caminho para nós, e esta é apenas uma das muitas contradições que ainda não fui capaz de resolver.
D.E.
domingo, outubro 14, 2007
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 9 )
A mulher caminhava com uma criança nos braços sobre as pedras brancas e cinzentas do leito seco de um rio. Fazia-o com naturalidade, sem esforço, como se andasse sobre chão direito ou de há muito estivesse habituada à irregularidade daquele piso. Não dava para perceber que traços seriam os do seu rosto: uma folha de sombra caía-lhe do lenço da cabeça até à altura da boca, e apenas a delicadeza do corpo, vestido de saia e blusa, permitia colher uma vaga promessa de beleza.
A criança estava nua. Teria um ano, ou pouco mais.
A espaços, abriam-se no leito do rio grandes poças de água, olhos imóveis de um caudal antigo aprisionados na solidão das pedras. A mulher metia-se nessas ruínas da corrente pela altura dos joelhos, arregaçando a saia que apertava entre as pernas para que não se molhasse, e passava a criança pela água numa espécie de banho lustral: primeiro a cabeça com o seu tufo de caracóis castanhos-claros, depois todo o corpo até aos pequenos pés que se agitavam incessantemente. Podia ver-se, então, que era um menino. A sua cara saía das águas de olhos bem abertos, sem nenhum sinal de aflição, antes sorrindo, e com a língua de um vermelho vivo lambia os lábios e a região à volta da boca até encostar o corpo húmido ao peito da mãe que logo o começava a beijar na cabeça e nos ombros.
De um momento para o outro, porém, o céu turvou-se de grandes nuvens que obliteraram a luz do sol. Um bando de aves de penas eriçadas e bicos carregados de dentes veio poisar sobre os seixos do leito e beber sofregamente nas poças de água. Ao levantar voo, deixou sobre a pedras uma massa de excrementos que atraiu uma nuvem densa de insectos, obrigando a mulher a tirar o lenço da cabeça e a proteger com ele o rosto do menino.
Foi neste compasso do sonho que Josué lhe viu a cara – era Salomé. E acordou sobressaltado.
Levantou-se indisposto e veio para a rua apanhar o ar da noite. Um morcego passou-lhe sobre a cabeça num arremedo inquietante de voo e, por momentos, pensou que ainda balançava nas asas do sonho, e que nada do que via – as fachadas das casas, as copas das árvores, os muros dos quintais –, nada daquilo era fisicamente real, palpável, apenas imagens da vida reflectidas no espelho da alma, prontas a desfazerem-se à primeira luz da madrugada. E lamentou que um homem novo como ele, na força da vida, ficasse sobressaltado perante um sonho que parecia não dispor dos ingredientes necessários para se tornar pesadelo. É certo que havia os estranhos pássaros e a nuvem de insectos, ambos de certa forma ameaçadores, mas o que mais o perturbara fora a visão daquela mulher – a sua – com uma criança de tenra idade nos braços.
Josué sempre deu grande valor aos sinais do inconsciente. Durante os meses em que Salomé esteve fora de casa, sonhou uma vez com um mar que avançava sobre a aldeia até a submergir por completo, afogando-se nele as pessoas e os animais. E via os corpos sem vida a boiarem à tona de água, a serem comidos por aves necrófagas que desciam dos céus e por peixes enormes que vinham do fundo das águas com a sua gula de morte. Sentiu-se mal. Ao acordar parecia estar no prelúdio de um ataque cardíaco. Nunca mais esqueceria esse sonho mau.
O que o sobressaltou naquela visão da mulher e da criança, foi talvez o elo que estabeleceu, ainda que inconscientemente, entre o contorno do sonho e o que lhe dissera Salomé quando regressou a casa: “O menino morreu”. Tinha sido há um ano, ou pouco mais. Ele ouviu e nem questionou o que ela lhe dizia, limitando-se a aceitá-la com uma bonomia inexplicável, mas que talvez resultasse de a imaginar arrependida, destroçada pela perda do filho e carente de um arrimo certo.
Josué sabe agora, com a certeza que só os sonhos podem dar, a razão por que todos os meses se ausenta de casa a sua mulher. Leu os sinais dessa revelação naquelas imagens do leito seco do rio. Mas essa certeza é, por enquanto, algo que não se atreve a dizer a si mesmo, uma verdade que ainda não tem palavras para falar, e que nem sabe quando terá, embora esteja seguro de que elas virão um dia, lentamente, como uma maré, subindo aos poucos os degraus da alma até a cobrir por completo, tal como no sonho mau o mar cobria toda a aldeia. Será apenas uma questão de tempo. Salomé continuará a dormir na sua cama, a tratar-lhe da roupa, a cozinhar para ele, a meter-lhe o almoço e a merenda na lancheira, a beijá-lo quando chega a casa ao fim do dia e a dar-lhe novas da mãe sempre que regressa das visitas que em cada mês lhe faz. Continuará a ser sua esposa dentro e fora de casa, ninguém na aldeia dará por nada, tudo parecerá natural, dentro das normais relações entre marido e mulher, até ao momento em que a verdade revelada ganhe o poder da voz. Talvez Josué não esteja absolutamente certo daquilo que sabe. Talvez prefira ir deixando correr o tempo para que se separe o azeite da água, o certo do errado, e poder aceitar o sonho em toda a sua plenitude. Porque se há quem acredite em sonhos, há também quem veja neles não mais que um pálido reflexo da vida, uma emergência confusa e inconsequente de sentimentos que estão dentro da alma e que só obliquamente ganham o direito de expressão. Que conclusões se extraem deles? O leito seco de um rio representa a corrente existencial onde o amor se perdeu. Mas a mulher com a criança nos braços, dando-lhe banho, cobrindo-a de beijos, é uma imagem viva e poderosa do amor. Há amores mais robustos que moram para sempre no coração dos homens, enquanto outros se extinguem a qualquer momento nos lances inesperados da vida.
A madrugada adiantava-se com o seu odor subtil de orvalho e ervas. Josué sentia-se transportado numa corrente que lhe ia restituindo a calma, uma onda que o levava para fora de si, até lugares distantes em inimagináveis patamares do tempo. Foi serenamente que entrou em casa. Deitou-se ao lado de Salomé que não dera sequer pela sua ausência, e, com os olhos ainda doridos da revelação, ousou dormir até ao romper do dia.
D.E.
A criança estava nua. Teria um ano, ou pouco mais.
A espaços, abriam-se no leito do rio grandes poças de água, olhos imóveis de um caudal antigo aprisionados na solidão das pedras. A mulher metia-se nessas ruínas da corrente pela altura dos joelhos, arregaçando a saia que apertava entre as pernas para que não se molhasse, e passava a criança pela água numa espécie de banho lustral: primeiro a cabeça com o seu tufo de caracóis castanhos-claros, depois todo o corpo até aos pequenos pés que se agitavam incessantemente. Podia ver-se, então, que era um menino. A sua cara saía das águas de olhos bem abertos, sem nenhum sinal de aflição, antes sorrindo, e com a língua de um vermelho vivo lambia os lábios e a região à volta da boca até encostar o corpo húmido ao peito da mãe que logo o começava a beijar na cabeça e nos ombros.
De um momento para o outro, porém, o céu turvou-se de grandes nuvens que obliteraram a luz do sol. Um bando de aves de penas eriçadas e bicos carregados de dentes veio poisar sobre os seixos do leito e beber sofregamente nas poças de água. Ao levantar voo, deixou sobre a pedras uma massa de excrementos que atraiu uma nuvem densa de insectos, obrigando a mulher a tirar o lenço da cabeça e a proteger com ele o rosto do menino.
Foi neste compasso do sonho que Josué lhe viu a cara – era Salomé. E acordou sobressaltado.
Levantou-se indisposto e veio para a rua apanhar o ar da noite. Um morcego passou-lhe sobre a cabeça num arremedo inquietante de voo e, por momentos, pensou que ainda balançava nas asas do sonho, e que nada do que via – as fachadas das casas, as copas das árvores, os muros dos quintais –, nada daquilo era fisicamente real, palpável, apenas imagens da vida reflectidas no espelho da alma, prontas a desfazerem-se à primeira luz da madrugada. E lamentou que um homem novo como ele, na força da vida, ficasse sobressaltado perante um sonho que parecia não dispor dos ingredientes necessários para se tornar pesadelo. É certo que havia os estranhos pássaros e a nuvem de insectos, ambos de certa forma ameaçadores, mas o que mais o perturbara fora a visão daquela mulher – a sua – com uma criança de tenra idade nos braços.
Josué sempre deu grande valor aos sinais do inconsciente. Durante os meses em que Salomé esteve fora de casa, sonhou uma vez com um mar que avançava sobre a aldeia até a submergir por completo, afogando-se nele as pessoas e os animais. E via os corpos sem vida a boiarem à tona de água, a serem comidos por aves necrófagas que desciam dos céus e por peixes enormes que vinham do fundo das águas com a sua gula de morte. Sentiu-se mal. Ao acordar parecia estar no prelúdio de um ataque cardíaco. Nunca mais esqueceria esse sonho mau.
O que o sobressaltou naquela visão da mulher e da criança, foi talvez o elo que estabeleceu, ainda que inconscientemente, entre o contorno do sonho e o que lhe dissera Salomé quando regressou a casa: “O menino morreu”. Tinha sido há um ano, ou pouco mais. Ele ouviu e nem questionou o que ela lhe dizia, limitando-se a aceitá-la com uma bonomia inexplicável, mas que talvez resultasse de a imaginar arrependida, destroçada pela perda do filho e carente de um arrimo certo.
Josué sabe agora, com a certeza que só os sonhos podem dar, a razão por que todos os meses se ausenta de casa a sua mulher. Leu os sinais dessa revelação naquelas imagens do leito seco do rio. Mas essa certeza é, por enquanto, algo que não se atreve a dizer a si mesmo, uma verdade que ainda não tem palavras para falar, e que nem sabe quando terá, embora esteja seguro de que elas virão um dia, lentamente, como uma maré, subindo aos poucos os degraus da alma até a cobrir por completo, tal como no sonho mau o mar cobria toda a aldeia. Será apenas uma questão de tempo. Salomé continuará a dormir na sua cama, a tratar-lhe da roupa, a cozinhar para ele, a meter-lhe o almoço e a merenda na lancheira, a beijá-lo quando chega a casa ao fim do dia e a dar-lhe novas da mãe sempre que regressa das visitas que em cada mês lhe faz. Continuará a ser sua esposa dentro e fora de casa, ninguém na aldeia dará por nada, tudo parecerá natural, dentro das normais relações entre marido e mulher, até ao momento em que a verdade revelada ganhe o poder da voz. Talvez Josué não esteja absolutamente certo daquilo que sabe. Talvez prefira ir deixando correr o tempo para que se separe o azeite da água, o certo do errado, e poder aceitar o sonho em toda a sua plenitude. Porque se há quem acredite em sonhos, há também quem veja neles não mais que um pálido reflexo da vida, uma emergência confusa e inconsequente de sentimentos que estão dentro da alma e que só obliquamente ganham o direito de expressão. Que conclusões se extraem deles? O leito seco de um rio representa a corrente existencial onde o amor se perdeu. Mas a mulher com a criança nos braços, dando-lhe banho, cobrindo-a de beijos, é uma imagem viva e poderosa do amor. Há amores mais robustos que moram para sempre no coração dos homens, enquanto outros se extinguem a qualquer momento nos lances inesperados da vida.
A madrugada adiantava-se com o seu odor subtil de orvalho e ervas. Josué sentia-se transportado numa corrente que lhe ia restituindo a calma, uma onda que o levava para fora de si, até lugares distantes em inimagináveis patamares do tempo. Foi serenamente que entrou em casa. Deitou-se ao lado de Salomé que não dera sequer pela sua ausência, e, com os olhos ainda doridos da revelação, ousou dormir até ao romper do dia.
D.E.
domingo, setembro 23, 2007
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 8 )
Agora não passa um mês que Salomé não vá visitar a mãe. Fica por lá três ou quatro dias, o tempo justo para não desorganizar a vida doméstica e continuar a cumprir com as suas obrigações de esposa e dona de casa que assume diligentemente desde que regressou e foi aceite pelo marido. Antes de sair, deixa feita uma panela de sopa, ou um guisado de carne, preparos que dão para três ou quatro refeições, o suficiente para o homem não ter de se preocupar com a cozinha como se não houvesse mulher que olhasse por ele. Em um ou outro dia, ao jantar, bastar-lhe-á um pão com chouriço ou um bocado de queijo, uma tigela de sopa e um copo de vinho, que boa boca tem Josué, homem habituado a comer de tudo, a não virar a cara a nenhum passadio por mais singelo e frugal que se apresente. Assim, com a comida feita, não lhe faltará o tempo para tratar da criação e da horta, para fisgar uns peixes no rio, para conviver com os amigos na sociedade recreativa. É espantoso como até para coisas tão simples como estas são necessários os cuidados de uma mulher.
Não menos espantosos são os desvelos filiais que Salomé demonstra para com quem a deitou ao mundo. Filhas assim, que deixam a sua casa, embora por poucos dias, para irem longe apoiar a progenitora idosa, são casos cada vez mais raros.
Naquele tempo ainda não havia na região qualquer registo de residências para a terceira idade ou lares de idosos. Os velhos permaneciam sozinhos nos seus domicílios ou, quando tal não era possível, vinham expiar o fardo dos anos em casa dos filhos. Andavam à vez pelas casas de uns e de outros, um mês em cada sítio, o tempo escrupulosamente contado, havia que dividir o mal pelas aldeias. Salomé não tinha irmãos ou irmãs. Se a mãe tivesse parido um rancho de filhos, poderia incumbir a filha mais nova de, ficando solteira, cuidar de si na velhice. Mas os tempos eram outros, já não vingavam esses costumes antigos com que se bordavam nos panos da vida o equilíbrio e a felicidade dos agregados familiares.
Uma vez, disse Josué:
“A velha que venha para cá. Escusas de andar de um lado para o outro.”
Salomé nem respondeu. Lançou-lhe um olhar de gelo, capaz de varar um homem, como se quisesse dizer tudo o que lhe ia na alma. A velha, como Josué lhe chamava, estava rija e sem os achaques que a idade naturalmente convoca, não tendo a mínima vontade de sair de sua casa. Se a filha a visitava com tão singular regularidade, não era para lhe dispensar cuidados de apoio domiciliário, que até nem resultariam a tempos tão espaçados, seria talvez por puro afecto, pela necessidade de reencontrar um ser amado de quem vivia apartada. São bonitos estes sentimentos que o marido parecia não entender na sua natural expressão.
Numa das visitas, porém, Salomé demorou-se mais que o tempo habitual, como se algo de imprevisto tivesse sucedido e ela se visse obrigada a prolongar a estadia. Estava fora já há uma semana quando telefonou para a mercearia com um recado para o marido: iria só na semana seguinte, na camioneta de terça-feira, a que chegava à aldeia por volta do meio-dia. E não deu mais explicações.
Durante o resto do dia e à noite Josué ruminou a dilação com um azedo no estômago, uma moinha nas têmporas, que até lhe custava encarar os amigos.
De falatórios andava a aldeia cheia, só que nada lhe chegava aos ouvidos.
“Mulher minha não procedia assim”.
Isto foi-lhe dito ao serão, na sociedade recreativa, durante uma partida de dominó, depois de uns tragos de aguardente de medronho, na altura exacta em que as línguas se soltam e o cérebro se demite das suas funções de comando. Foi Daniel ou Jonas, ou teria sido Jacob, ou Ruben? Ele nem percebeu de que lado fora atirada a frecha. Ester atravessava com o perfume da sua figura de mulher vistosa o grande salão onde os bailes se costumavam realizar.
Ainda se contará a história de Ester, mulher bela entre as mais belas que a aldeia tinha. E corajosa. Entregou-se a um poderoso senhor para salvar o seu povo.
Foi num tempo, lembra-se Josué, em que ainda era capaz de olhar de frente para uma mulher e sentir o apelo de uma atracção física puramente animal.
A sociedade recreativa fechou à meia-noite. Primeiro apagaram-se as luzes do salão de baile que, nos dias de semana, servia de espaço de convívio às mulheres, e, logo depois, as da sala de jogos e as do balcão das bebidas. Um membro da direcção ficou por mais um tempo, num pequeno gabinete, apurando a folha de caixa do dia. A porta fechou-se atrás dele e de Ester, os últimos a saírem, e os homens foram entrando na noite, uns montados em bicicletas, outros, que iam para mais perto, pelo próprio pé.
Seguiam os dois sozinhos, já separados dos companheiros que foram tomando o caminho de suas casas. Quando chegaram ao fim da rua, meteram-se pelo campo aberto do olival até à orla do mato. No céu corria a claridade da grande estrada de estrelas que tem o nome do Apóstolo. O rio cantava nos socalcos do leito. Abraçaram-se, e os corpos rolaram sobre a terra húmida, afrontando num estrepitoso festim o silêncio das árvores.
Quando Salomé voltou de casa da mãe, na data prometida, disse secamente a Josué, mostrando-lhe as roupas que ele despira na véspera:
“Cheiram às estevas do campo.”
E foi como se tivesse dito tudo com tão singelas palavras. Jantaram em silêncio à luz débil do candeeiro a petróleo, e, à hora de dormir, na cama, os seus corpos cansados de distância nem ousaram tocar-se.
D.E.
Não menos espantosos são os desvelos filiais que Salomé demonstra para com quem a deitou ao mundo. Filhas assim, que deixam a sua casa, embora por poucos dias, para irem longe apoiar a progenitora idosa, são casos cada vez mais raros.
Naquele tempo ainda não havia na região qualquer registo de residências para a terceira idade ou lares de idosos. Os velhos permaneciam sozinhos nos seus domicílios ou, quando tal não era possível, vinham expiar o fardo dos anos em casa dos filhos. Andavam à vez pelas casas de uns e de outros, um mês em cada sítio, o tempo escrupulosamente contado, havia que dividir o mal pelas aldeias. Salomé não tinha irmãos ou irmãs. Se a mãe tivesse parido um rancho de filhos, poderia incumbir a filha mais nova de, ficando solteira, cuidar de si na velhice. Mas os tempos eram outros, já não vingavam esses costumes antigos com que se bordavam nos panos da vida o equilíbrio e a felicidade dos agregados familiares.
Uma vez, disse Josué:
“A velha que venha para cá. Escusas de andar de um lado para o outro.”
Salomé nem respondeu. Lançou-lhe um olhar de gelo, capaz de varar um homem, como se quisesse dizer tudo o que lhe ia na alma. A velha, como Josué lhe chamava, estava rija e sem os achaques que a idade naturalmente convoca, não tendo a mínima vontade de sair de sua casa. Se a filha a visitava com tão singular regularidade, não era para lhe dispensar cuidados de apoio domiciliário, que até nem resultariam a tempos tão espaçados, seria talvez por puro afecto, pela necessidade de reencontrar um ser amado de quem vivia apartada. São bonitos estes sentimentos que o marido parecia não entender na sua natural expressão.
Numa das visitas, porém, Salomé demorou-se mais que o tempo habitual, como se algo de imprevisto tivesse sucedido e ela se visse obrigada a prolongar a estadia. Estava fora já há uma semana quando telefonou para a mercearia com um recado para o marido: iria só na semana seguinte, na camioneta de terça-feira, a que chegava à aldeia por volta do meio-dia. E não deu mais explicações.
Durante o resto do dia e à noite Josué ruminou a dilação com um azedo no estômago, uma moinha nas têmporas, que até lhe custava encarar os amigos.
De falatórios andava a aldeia cheia, só que nada lhe chegava aos ouvidos.
“Mulher minha não procedia assim”.
Isto foi-lhe dito ao serão, na sociedade recreativa, durante uma partida de dominó, depois de uns tragos de aguardente de medronho, na altura exacta em que as línguas se soltam e o cérebro se demite das suas funções de comando. Foi Daniel ou Jonas, ou teria sido Jacob, ou Ruben? Ele nem percebeu de que lado fora atirada a frecha. Ester atravessava com o perfume da sua figura de mulher vistosa o grande salão onde os bailes se costumavam realizar.
Ainda se contará a história de Ester, mulher bela entre as mais belas que a aldeia tinha. E corajosa. Entregou-se a um poderoso senhor para salvar o seu povo.
Foi num tempo, lembra-se Josué, em que ainda era capaz de olhar de frente para uma mulher e sentir o apelo de uma atracção física puramente animal.
A sociedade recreativa fechou à meia-noite. Primeiro apagaram-se as luzes do salão de baile que, nos dias de semana, servia de espaço de convívio às mulheres, e, logo depois, as da sala de jogos e as do balcão das bebidas. Um membro da direcção ficou por mais um tempo, num pequeno gabinete, apurando a folha de caixa do dia. A porta fechou-se atrás dele e de Ester, os últimos a saírem, e os homens foram entrando na noite, uns montados em bicicletas, outros, que iam para mais perto, pelo próprio pé.
Seguiam os dois sozinhos, já separados dos companheiros que foram tomando o caminho de suas casas. Quando chegaram ao fim da rua, meteram-se pelo campo aberto do olival até à orla do mato. No céu corria a claridade da grande estrada de estrelas que tem o nome do Apóstolo. O rio cantava nos socalcos do leito. Abraçaram-se, e os corpos rolaram sobre a terra húmida, afrontando num estrepitoso festim o silêncio das árvores.
Quando Salomé voltou de casa da mãe, na data prometida, disse secamente a Josué, mostrando-lhe as roupas que ele despira na véspera:
“Cheiram às estevas do campo.”
E foi como se tivesse dito tudo com tão singelas palavras. Jantaram em silêncio à luz débil do candeeiro a petróleo, e, à hora de dormir, na cama, os seus corpos cansados de distância nem ousaram tocar-se.
D.E.
domingo, setembro 16, 2007
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 7 )
O achigã é um peixe voraz e belo, originário dos grandes lagos norte-americanos, cujo nome, na língua falada pelos índios do Canadá, tem o significado exacto de “aquele que salta”. Foi introduzido na Europa na segunda metade do século dezanove, apresentando semelhanças com a perca, uma espécie de barbatanas duras e espinhosas que, acredita-se, já cruzava as águas do Nilo em tempos tão remotos como o dos grandes construtores de pirâmides. Atira-se-lhe uma linha sem nenhum isco comestível, apenas com uma placa vagamente pisciforme, uma amostra, como se diz, com um riscado rômbico imitando escamas, e é ver o peixão a abocanhar o falso alimento, ficando preso no anzol na ponta do fio que o carrete enrola, debatendo-se contra a morte irremediável por entre golpes de cauda e brados surdos.
Jonas e Daniel interrogavam-se sobre donde poderia ter vindo aquela espécie. Já a conheciam de outras albufeiras, sabendo da excelência da sua carne muito apreciada por todos os amadores da pesca. Agora que o lago estava cheio e os achigãs apareciam a colonizar as águas, acreditavam ingenuamente que, à semelhança do que pensavam acontecer com as enguias, eles viriam pelos rios interiores, passando de um lago a outro, seguindo os caminhos dessa hidrografia subterrânea e profunda que pressentiam como misteriosa mas, ao mesmo tempo, plausível.
Era assim que todos os dias, pela manhã, ao demandarem as margens do lago, pareciam entusiasmados com a pescaria em perspectiva, fazendo apostas sobre o tamanho e o peso dos espécimes que esperavam capturar.
Josué não os acompanhava. Tinha-se ido muito abaixo com o episódio do televisor, arrastando-se agora entre psicólogos e médicos do centro de saúde a contas com severas prescrições de ansiolíticos que o deixavam trémulo e desmemoriado. Os companheiros tinham reagido melhor. Ao destruírem os seus televisores, não mais se preocuparam com as emissões de circuito interno produzidas pelos donos do empreendimento, ficando livres daquela acção psicológica dirigida a quem não pudera escolher o rumo das suas vidas, sempre a tentar persuadi-los de que estavam agora melhor que nunca, com uma aldeia nova e limpa, casas modernas, apoio social e assistência médica. Havia quem não entendesse por que razão tinham dado cabo dos aparelhos de televisão, quando bastaria, para não receberem as emissões, não os ligar no canal respectivo. Os que exprimiam tais juízos não compreendiam, porém, a real dimensão do mal que os assediava.
Assim, não passou muito tempo que Jonas não começasse a dar sinais de que algo errado se estava a passar consigo, convencendo-se de que havia um grande peixe no lago, tão grande e temeroso como as baleias que sabia existirem no alto-mar. E uma estranha fixação começou a dominá-lo: descobrir esse ser monstruoso cuja respiração sentia subir à superfície numa nuvem escura e húmida, e mostrá-lo a toda a comunidade como a maior aberração gerada pela subida das águas.
Foi quando deixou de se interessar pela pesca. Descia para o lago apenas para vigiar a planura das águas, os olhos bem abertos sob o azul líquido como se estivesse no cesto da gávea de um navio a perscrutar, por alvíssaras, as lonjuras do mar.
Então sucedeu que durante três dias e três noites ninguém soube nada dele. Daniel viu-o descer em direcção ao lago, foi o último a pôr-lhe a vista em cima antes de desaparecer. E todos deram como muito provável que pudesse ter-se afogado, pois sabia-se que ultimamente ficava longas horas sentado na margem sob um grande rícino que lhe fazia sombra mas que, entretanto, veio a secar, talvez por capricho de algum deus cruel. Passava então as tardes de cabeça ao sol, os olhos postos nas águas, e os amigos temeram uma insolação, um possível desmaio que o tivesse precipitado, de roldão, nas profundezas do lago.
Mandaram vir os bombeiros, mergulhadores de escafandro e garrafas de oxigénio, barcos de borracha com motores fora de borda que bateram as pequenas enseadas e os longos esteiros que se metiam como veias pelo corpo da terra. Esquadrinharam minuciosamente a superfície das águas, binóculos assestados sobre a vastidão, comunicando por rádio com a central. Uma ambulância permanecia de plantão num pequeno molhe de barcos de recreio, preparada para levar o ferido à urgência hospitalar ou o falecido à morgue. Um jipe da Guarda estacionara ao lado da ambulância para tomar conta da ocorrência, e o Presidente da Câmara apresentara-se no local para, com o seu interesse, tomar conta dos votos dos seus eleitores.
Não encontraram Jonas no primeiro nem no segundo dias. No terceiro chegaram os repórteres da televisão, os jornalistas da imprensa regional e das rádios locais, os ambientalistas de passagem para uma acção de destruição de uns hectares de milho geneticamente modificado, e peroraram sobre o monstruoso predador introduzido no lago, dizimando as espécies nativas e desassossegando os homens. Então os donos do empreendimento sentiram-se na obrigação de fazer um comunicado à imprensa, e asseveraram que nada de anormal estava a acontecer, que a espécie com que se povoara o grande lago era o conhecido achigã, habitante irrepreensível de outros lagos e albufeiras do país, de nome científico micropterus salmoides, também identificado pelas designações vulgares de perca americana, robalo negro, perca-truta e boca-grande, alimentando-se em grande parte de insectos aquáticos, dando também a sua dentada em algum peixe e uns tantos moluscos, assim os apanhasse a jeito, mas nada de colocar em perigo as pequenas espécies, um animal que só excepcionalmente poderia atingir os dez quilos de peso.
Ninguém ficou tranquilo com o comunicado, antes recrudesceram os boatos e especulações. Mas depois do terceiro dia, manhã cedo, Jonas apareceu na aldeia. Vinha transtornado e muito magro. Garantia ter sido engolido pelo grande peixe, em cujo ventre ficara durante três dias e três noites até o monstro o vomitar na orla do lago, e lá, no abismo das suas entranhas, pensara na vida e na maldade dos dias. E falava de coisas estranhas que nunca as gentes da aldeia tinham ouvido de si, como se falasse pela boca de outrem ou apenas emprestasse a sua a quem não a tinha para se exprimir perante os homens. Os amigos deram-lhe de comer e beber, aconselharam-no a ter calma, mas ele não voltou a ser o mesmo.
A meio da manhã, a ambulância subiu do molhe com o ruído da sua sirene e levou-o, manietado por dois auxiliares de enfermagem, para um destino por todos pressentido mas de que ninguém se atrevia a falar.
Nunca mais voltou à aldeia e, para toda a gente, era como se tivesse morrido. Foi a segunda vítima da subida das águas.
Jonas e Daniel interrogavam-se sobre donde poderia ter vindo aquela espécie. Já a conheciam de outras albufeiras, sabendo da excelência da sua carne muito apreciada por todos os amadores da pesca. Agora que o lago estava cheio e os achigãs apareciam a colonizar as águas, acreditavam ingenuamente que, à semelhança do que pensavam acontecer com as enguias, eles viriam pelos rios interiores, passando de um lago a outro, seguindo os caminhos dessa hidrografia subterrânea e profunda que pressentiam como misteriosa mas, ao mesmo tempo, plausível.
Era assim que todos os dias, pela manhã, ao demandarem as margens do lago, pareciam entusiasmados com a pescaria em perspectiva, fazendo apostas sobre o tamanho e o peso dos espécimes que esperavam capturar.
Josué não os acompanhava. Tinha-se ido muito abaixo com o episódio do televisor, arrastando-se agora entre psicólogos e médicos do centro de saúde a contas com severas prescrições de ansiolíticos que o deixavam trémulo e desmemoriado. Os companheiros tinham reagido melhor. Ao destruírem os seus televisores, não mais se preocuparam com as emissões de circuito interno produzidas pelos donos do empreendimento, ficando livres daquela acção psicológica dirigida a quem não pudera escolher o rumo das suas vidas, sempre a tentar persuadi-los de que estavam agora melhor que nunca, com uma aldeia nova e limpa, casas modernas, apoio social e assistência médica. Havia quem não entendesse por que razão tinham dado cabo dos aparelhos de televisão, quando bastaria, para não receberem as emissões, não os ligar no canal respectivo. Os que exprimiam tais juízos não compreendiam, porém, a real dimensão do mal que os assediava.
Assim, não passou muito tempo que Jonas não começasse a dar sinais de que algo errado se estava a passar consigo, convencendo-se de que havia um grande peixe no lago, tão grande e temeroso como as baleias que sabia existirem no alto-mar. E uma estranha fixação começou a dominá-lo: descobrir esse ser monstruoso cuja respiração sentia subir à superfície numa nuvem escura e húmida, e mostrá-lo a toda a comunidade como a maior aberração gerada pela subida das águas.
Foi quando deixou de se interessar pela pesca. Descia para o lago apenas para vigiar a planura das águas, os olhos bem abertos sob o azul líquido como se estivesse no cesto da gávea de um navio a perscrutar, por alvíssaras, as lonjuras do mar.
Então sucedeu que durante três dias e três noites ninguém soube nada dele. Daniel viu-o descer em direcção ao lago, foi o último a pôr-lhe a vista em cima antes de desaparecer. E todos deram como muito provável que pudesse ter-se afogado, pois sabia-se que ultimamente ficava longas horas sentado na margem sob um grande rícino que lhe fazia sombra mas que, entretanto, veio a secar, talvez por capricho de algum deus cruel. Passava então as tardes de cabeça ao sol, os olhos postos nas águas, e os amigos temeram uma insolação, um possível desmaio que o tivesse precipitado, de roldão, nas profundezas do lago.
Mandaram vir os bombeiros, mergulhadores de escafandro e garrafas de oxigénio, barcos de borracha com motores fora de borda que bateram as pequenas enseadas e os longos esteiros que se metiam como veias pelo corpo da terra. Esquadrinharam minuciosamente a superfície das águas, binóculos assestados sobre a vastidão, comunicando por rádio com a central. Uma ambulância permanecia de plantão num pequeno molhe de barcos de recreio, preparada para levar o ferido à urgência hospitalar ou o falecido à morgue. Um jipe da Guarda estacionara ao lado da ambulância para tomar conta da ocorrência, e o Presidente da Câmara apresentara-se no local para, com o seu interesse, tomar conta dos votos dos seus eleitores.
Não encontraram Jonas no primeiro nem no segundo dias. No terceiro chegaram os repórteres da televisão, os jornalistas da imprensa regional e das rádios locais, os ambientalistas de passagem para uma acção de destruição de uns hectares de milho geneticamente modificado, e peroraram sobre o monstruoso predador introduzido no lago, dizimando as espécies nativas e desassossegando os homens. Então os donos do empreendimento sentiram-se na obrigação de fazer um comunicado à imprensa, e asseveraram que nada de anormal estava a acontecer, que a espécie com que se povoara o grande lago era o conhecido achigã, habitante irrepreensível de outros lagos e albufeiras do país, de nome científico micropterus salmoides, também identificado pelas designações vulgares de perca americana, robalo negro, perca-truta e boca-grande, alimentando-se em grande parte de insectos aquáticos, dando também a sua dentada em algum peixe e uns tantos moluscos, assim os apanhasse a jeito, mas nada de colocar em perigo as pequenas espécies, um animal que só excepcionalmente poderia atingir os dez quilos de peso.
Ninguém ficou tranquilo com o comunicado, antes recrudesceram os boatos e especulações. Mas depois do terceiro dia, manhã cedo, Jonas apareceu na aldeia. Vinha transtornado e muito magro. Garantia ter sido engolido pelo grande peixe, em cujo ventre ficara durante três dias e três noites até o monstro o vomitar na orla do lago, e lá, no abismo das suas entranhas, pensara na vida e na maldade dos dias. E falava de coisas estranhas que nunca as gentes da aldeia tinham ouvido de si, como se falasse pela boca de outrem ou apenas emprestasse a sua a quem não a tinha para se exprimir perante os homens. Os amigos deram-lhe de comer e beber, aconselharam-no a ter calma, mas ele não voltou a ser o mesmo.
A meio da manhã, a ambulância subiu do molhe com o ruído da sua sirene e levou-o, manietado por dois auxiliares de enfermagem, para um destino por todos pressentido mas de que ninguém se atrevia a falar.
Nunca mais voltou à aldeia e, para toda a gente, era como se tivesse morrido. Foi a segunda vítima da subida das águas.
D.E.
quinta-feira, setembro 06, 2007
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 6 )
O Outono entrou de carranca, chuvoso, grandes cordas de água que desciam do céu e abriam sulcos na terra ainda há pouco ressequida da estiagem. O rio corria grosso, estrepitante, cobrindo na enxurrada as fragas que lhe marcavam o leito, ameaçando despedaçar as margens. Os homens da lavoura e os pescadores passavam os dias na sociedade recreativa ou nas tabernas, enredados em jogos e conversas mornas, impedidos de se moverem sob a inclemência dos astros. Os que trabalhavam na fábrica de papel, debaixo de telha, lá iam de madrugada, cobertos de grandes capas de borracha, as molas travando-lhes as bocas das calças, atravessando os caminhos em bicicletas sonâmbulas, oscilantes, com os faróis tremeluzindo ténues incandescências de vaga-lumes.
Foi quando as condições meteorológicas melhoraram, naquele tempo a que chamam o Verão de S. Martinho, que a gravidez de Salomé se revelou como uma evidência clara. E então, como se algo de extraordinário se tivesse passado, toda a aldeia começou a falar do caso. Uma coisa daquelas parecia nunca ter sido vista: cinco anos de tentativas vãs, de desconcertos, e de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, despontavam as formas arredondadas do seu ventre maternal.
Um anjo apareceu em sonhos a Josué. Tinha o mesmo rosto, os mesmos anéis de cabelos de ouro daquele outro que figurava no quadro pendurado na parede de casa. Josué esperou dele uma revelação, uma palavra apaziguadora, mas os seus lábios permaneceram mudos e nenhuma voz perturbou a imponderabilidade do sonho. Poder-lhe-ia ter dito: “Josué, não tenhas medo do que vês no corpo de tua mulher, continua a recebê-la e a amá-la como esposa porque foi a tua semente que nela concebeu o fruto desejado”. Mas não. O anjo limitou-se a olhá-lo com um silêncio infinito, desafiante, onde se metiam todos os enigmas do mundo, todas as interrogações que a alma de um homem pode guardar. E ele acordou sobressaltado, com o coração a bater desordenadamente, o peito a doer-lhe, a cabeça pesada e um sabor azedo na boca.
Então decidiu falar com a mulher. Tinha de saber a verdade. A incerteza que o tomava raiava-lhe os olhos de sangue e abria-lhe as primeiras rugas na cara quando ainda não havia chegado aos trinta anos de idade. Mas no momento de descerrar os lábios, faltava-lhe a coragem. Ela fitava-o como se já conhecesse as palavras que ele lhe ia dizer, mas nenhum som lhe chegava vindo da sua boca. E viveu assim durante uma mão de dias e de noites, desesperado e ferido, incapaz de a enfrentar.
Um dia, foi ela que disse:
“Vou para casa de minha mãe, é melhor assim.”
Ele viu-a sair para a paragem da camioneta com um saco de roupa à cabeça, o guarda-chuva na mão, uma pequena mala preta enfiada no braço. E era como se um pedaço da sua carne se lhe soltasse do corpo, como se, de repente, lhe tivessem amputado um membro e ficasse aleijado para toda a vida. Por mais que tivesse desejado não foi capaz de chorar. Ficou a vê-la seguir no seu passo ágil e determinado, sem nunca olhar para trás, até dobrar a esquina da rua, até a perder por inteiro. Então entrou em casa e tirou da parede o quadro do anjo, extraiu com um martelo de orelhas o prego de aço que o sustinha. Depois esmigalhou o quadro com uma raiva serena, não deixando pedaço de metal, cartão ou vidro que pudesse ser aproveitado. Josué não podia saber que com esse mesmo martelo destruiria, trinta e tal anos mais tarde, em outro acesso de desespero, o seu aparelho de televisão. De resto, nem imaginava que pudesse vir a ter, um dia, um aparelho de televisão, e tão pouco que uma ferramenta tosca, de confecção quase artesanal, lograsse obrar tais destruições com tão amplo arco de tempo metido pelo meio.
Veio depois o Inverno e estendeu sobre o rosário dos dias uma atmosfera incrivelmente fria e seca. O rio, prematuramente torrencial, seguia agora brando, tropeçando nas pedras que se atravessavam na corrente, e os homens podiam montar as redes nos baixios e capturar grandes quantidades de pescado. De dentro das tabernas e das casas da aldeia saía o aroma álacre das fritadas de peixe, os subtis eflúvios dos molhos de escabeche: vinagre, cebola e alho, folhas de louro e pimenta. Salomé sabia cozinhar bem, pensava Josué enquanto seguia para casa com o cesto e os apetrechos da pesca. Como parecia tarefa fácil fazer uma fritura de peixe! No entanto havia que amanhá-lo, deitar-lhe o sal certo, cortá-lo em finas postas, cobri-lo de farinha. É também por coisas como estas que faz muita falta em casa uma mulher.
Estava agora entregue a si próprio. Tratava da sua roupa, comia sozinho as refeições que confeccionava. À noite, na cama de casal, alvoraçava-se a carne jovem, carente de fêmea e satisfação. Era então que Onan o visitava, uma assombração medonha e doce que saía das profundezas do Génesis para lhe serenar o fogo do corpo. Mas ele não tinha nenhuma mulher ao lado, estava completamente só naquela cama onde durante cinco anos dormira Salomé. Aparecia o espectro bíblico, sonegador de sémen, a quem durante cinco longos anos nunca deixara de o dar à sua esposa. Só que, em verdade, era como se o deitasse fora, não produzindo nenhum efeito naquelas entranhas entorpecidas por mais regado que fosse o vaso, por maior desejo com que o fizesse.
E assim se ia cumprindo a vida de Josué. Para grande espanto de todos, um dia, a mesma camioneta que levou Salomé numa manhã húmida de Outono, trouxe-a de novo quase um ano depois. Entrou em casa como se nunca dela tivesse saído e disse simplesmente:
“O menino morreu. Achei melhor voltar.”
Ele viu-a desfazer a trouxa da roupa e arrumar as peças nas gavetas com gestos naturais e precisos. Reparou no seu corpo que, apesar do sofrimento marcado no rosto, irradiava um inquietante perfume de sensualidade. Não foi capaz de pronunciar uma só palavra. Saiu para a rua e, como se não fosse senhor de vontade própria, deixou-se ficar, apático, enquanto os vizinhos iam chegando em busca de novidades. Bebia o ar quente da tarde, talvez chorasse.
Foi quando as condições meteorológicas melhoraram, naquele tempo a que chamam o Verão de S. Martinho, que a gravidez de Salomé se revelou como uma evidência clara. E então, como se algo de extraordinário se tivesse passado, toda a aldeia começou a falar do caso. Uma coisa daquelas parecia nunca ter sido vista: cinco anos de tentativas vãs, de desconcertos, e de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, despontavam as formas arredondadas do seu ventre maternal.
Um anjo apareceu em sonhos a Josué. Tinha o mesmo rosto, os mesmos anéis de cabelos de ouro daquele outro que figurava no quadro pendurado na parede de casa. Josué esperou dele uma revelação, uma palavra apaziguadora, mas os seus lábios permaneceram mudos e nenhuma voz perturbou a imponderabilidade do sonho. Poder-lhe-ia ter dito: “Josué, não tenhas medo do que vês no corpo de tua mulher, continua a recebê-la e a amá-la como esposa porque foi a tua semente que nela concebeu o fruto desejado”. Mas não. O anjo limitou-se a olhá-lo com um silêncio infinito, desafiante, onde se metiam todos os enigmas do mundo, todas as interrogações que a alma de um homem pode guardar. E ele acordou sobressaltado, com o coração a bater desordenadamente, o peito a doer-lhe, a cabeça pesada e um sabor azedo na boca.
Então decidiu falar com a mulher. Tinha de saber a verdade. A incerteza que o tomava raiava-lhe os olhos de sangue e abria-lhe as primeiras rugas na cara quando ainda não havia chegado aos trinta anos de idade. Mas no momento de descerrar os lábios, faltava-lhe a coragem. Ela fitava-o como se já conhecesse as palavras que ele lhe ia dizer, mas nenhum som lhe chegava vindo da sua boca. E viveu assim durante uma mão de dias e de noites, desesperado e ferido, incapaz de a enfrentar.
Um dia, foi ela que disse:
“Vou para casa de minha mãe, é melhor assim.”
Ele viu-a sair para a paragem da camioneta com um saco de roupa à cabeça, o guarda-chuva na mão, uma pequena mala preta enfiada no braço. E era como se um pedaço da sua carne se lhe soltasse do corpo, como se, de repente, lhe tivessem amputado um membro e ficasse aleijado para toda a vida. Por mais que tivesse desejado não foi capaz de chorar. Ficou a vê-la seguir no seu passo ágil e determinado, sem nunca olhar para trás, até dobrar a esquina da rua, até a perder por inteiro. Então entrou em casa e tirou da parede o quadro do anjo, extraiu com um martelo de orelhas o prego de aço que o sustinha. Depois esmigalhou o quadro com uma raiva serena, não deixando pedaço de metal, cartão ou vidro que pudesse ser aproveitado. Josué não podia saber que com esse mesmo martelo destruiria, trinta e tal anos mais tarde, em outro acesso de desespero, o seu aparelho de televisão. De resto, nem imaginava que pudesse vir a ter, um dia, um aparelho de televisão, e tão pouco que uma ferramenta tosca, de confecção quase artesanal, lograsse obrar tais destruições com tão amplo arco de tempo metido pelo meio.
Veio depois o Inverno e estendeu sobre o rosário dos dias uma atmosfera incrivelmente fria e seca. O rio, prematuramente torrencial, seguia agora brando, tropeçando nas pedras que se atravessavam na corrente, e os homens podiam montar as redes nos baixios e capturar grandes quantidades de pescado. De dentro das tabernas e das casas da aldeia saía o aroma álacre das fritadas de peixe, os subtis eflúvios dos molhos de escabeche: vinagre, cebola e alho, folhas de louro e pimenta. Salomé sabia cozinhar bem, pensava Josué enquanto seguia para casa com o cesto e os apetrechos da pesca. Como parecia tarefa fácil fazer uma fritura de peixe! No entanto havia que amanhá-lo, deitar-lhe o sal certo, cortá-lo em finas postas, cobri-lo de farinha. É também por coisas como estas que faz muita falta em casa uma mulher.
Estava agora entregue a si próprio. Tratava da sua roupa, comia sozinho as refeições que confeccionava. À noite, na cama de casal, alvoraçava-se a carne jovem, carente de fêmea e satisfação. Era então que Onan o visitava, uma assombração medonha e doce que saía das profundezas do Génesis para lhe serenar o fogo do corpo. Mas ele não tinha nenhuma mulher ao lado, estava completamente só naquela cama onde durante cinco anos dormira Salomé. Aparecia o espectro bíblico, sonegador de sémen, a quem durante cinco longos anos nunca deixara de o dar à sua esposa. Só que, em verdade, era como se o deitasse fora, não produzindo nenhum efeito naquelas entranhas entorpecidas por mais regado que fosse o vaso, por maior desejo com que o fizesse.
E assim se ia cumprindo a vida de Josué. Para grande espanto de todos, um dia, a mesma camioneta que levou Salomé numa manhã húmida de Outono, trouxe-a de novo quase um ano depois. Entrou em casa como se nunca dela tivesse saído e disse simplesmente:
“O menino morreu. Achei melhor voltar.”
Ele viu-a desfazer a trouxa da roupa e arrumar as peças nas gavetas com gestos naturais e precisos. Reparou no seu corpo que, apesar do sofrimento marcado no rosto, irradiava um inquietante perfume de sensualidade. Não foi capaz de pronunciar uma só palavra. Saiu para a rua e, como se não fosse senhor de vontade própria, deixou-se ficar, apático, enquanto os vizinhos iam chegando em busca de novidades. Bebia o ar quente da tarde, talvez chorasse.
D.E.
quarta-feira, agosto 22, 2007
A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 5 )
O cigano vinha às quintas-feiras. Percorria as ruas da aldeia com a sua carrinha de pintura debotada, mordida da ferrugem, e ia parando à porta das clientes exibindo os artigos que mercadejava: jogos de toalhas de pano turco, cobertas de cama, pijamas de homem e de mulher, roupa interior, peças decorativas e adereços baratos. Dizia-se que muito do que vendia era material de contrabando, mercadorias que dissimulava sob os bancos do veículo ou que metia num falso compartimento que passava por ser da roda sobressalente. Apresentava-se com um sorriso branco, a pele morena, vestia casaco preto e camisa de fantasia, trazia ouro ao pescoço e anéis fulgentes nos dedos. Não se lhe conhecia o nome ou o apelido de família, sendo suficiente o traço distintivo da sua etnia para uma clara e insofismável identificação pessoal. Não se sabia se tinha mulher ou filhos, de onde vinha e para onde ia. Certo e seguro era que às quintas-feiras chegava a Vilarinho do Rio à primeira hora da tarde, fazendo-se anunciar pela buzina da carrinha através de uma sequência de sons que não deixava dúvidas a ninguém.
O cigano tinha uma forma cantante de falar, repleta de expressões e pronúncias próprias das gentes do outro lado da fronteira. Mostrava uma combinação cor-de-rosa, com finas rendas, que retirava de uma caixa de cartão, e perguntava à cliente:
“Te gusta? Es preciosa!”
As mulheres, se ainda jovens, coravam de desejo perante aquelas peças maravilhosas com que se imaginavam, à noite, no fogo das alcovas, a deslumbrar os seus companheiros. E compravam muito, quase sempre a prestações, que de ninguém desconfiava o mercador, sempre disposto a conceder facilidades de pagamento sem o mínimo receio de ver pairar sobre o seu negócio a sombra odiosa do crédito malparado.
Só Salomé não se entusiasmava com as roupas. A maioria das vezes só tinha olhos para as molduras de estampas religiosas que se misturavam por entre a panóplia de artigos com que o cigano enchia a carrinha. Desejou muito um S. João Baptista representado no meio do rio Jordão, com a água pelos joelhos, dando o baptismo a Nosso Senhor. Quase se apaixonou pela serenidade daquele rosto de onde brotava o fulgor de uma santidade profunda, parecendo-lhe o de Cristo, ao pé do dele, pouco mais que uma vulgaridade. E pensava que quando lhe nascesse um filho – o que ia tardando –, lhe daria o nome daquele santo grandioso e belo que pregava no deserto da Judeia contra fariseus e saduceus, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, vestindo uma rude roupa feita de lã de camelo cingida com uma tira de couro grosseiro. Porém, como não se decidira logo e, entretanto, fora vendida a moldura do baptista, acabou por comprar um quadro com a imagem de um anjo da guarda a proteger duas frágeis crianças que brincavam descuidadamente na margem de um rio. A cabeça do anjo era um novelo assexuado de caracóis de ouro, os lábios entreabertos como se sorrissem ou deixassem passar algum avisado conselho aos incautos infantes – um menino e uma menina – , as asas levantadas e os braços abarcando a iminência do perigo sob o resplendor do dia. Salomé trabalhara seis meses na fábrica de papel, tinha um dinheiro de parte, e pagou a pronto. Isso pareceu impressionar o cigano que se dispôs a entrar em sua casa munido da ferramenta adequada para colocar o quadro no sítio desejado pela cliente. Tanto a boa vontade do cigano, em que poderia ser vista sem maldade uma simples atenção comercial, como o assentimento dado por Salomé a que a ajudasse naquele trabalho, não agradaram às vizinhas que estavam por perto e puderam presenciar a cena. O que se passou lá dentro não lhes foi dado ver, pelo que se limitaram a calcular o tempo em que permaneceu o homem no interior da morada, uma enormidade de minutos que por pouco não faziam uma hora, um tempo desajustado ao fim em vista, para o qual, segundo elas, uns cinco minutos teriam sido suficientes. Isto foi o que disseram e depois correu por toda a aldeia, chegando aos ouvidos de Josué, embora não pareça de justiça acreditar em tudo o que se diz e se ouve. Se o cigano demorou dentro de casa mais do que os cinco minutos que pareciam bastar para a operação, foi porque alguma coisa deverá ter corrido mal, reclamando cuidados adicionais: um prego que se entortou, impedindo a imediata suspensão do quadro na parede, a necessidade de improvisar uma bucha para uma mais sólida fixação, enfim, quem lança as mãos à obra é que sabe as dificuldades com que se depara.
“Santo Deus, meter o cigano em casa com o marido fora.”
Josué afastava-se da aldeia que ia submergindo e galgava o aclive do monte por entre o odor poderoso e inebriante das estevas em flor. Quando ali voltasse não estaria nenhuma pedra à vista, estava seguro disso. E, de súbito, como uma frecha lançada de um passado distante, irrompeu-lhe na memória a visão daquele quadro que um certo dia, ao chegar a casa, quando regressava da pesca no rio, vira pendurado na parede fronteira à porta de entrada.
“Comprei-o ao cigano. É um anjo da guarda”, disse-lhe a mulher.
Salomé andava estranha, em frequentes visitas à igreja, a lavar-se de manhã e à noite com água da Fonte Santa, dizendo ter pedido uma graça à Senhora dos Milagres, e a razão, sabia-a ele, era essa dificuldade em emprenhar, cinco anos de matrimónio e nenhum resultado à vista. Josué também se sentia mal com a união maninha, mas que fazer? De um ou outro membro do casal teria de ser o problema, se calhar dos dois, ainda que fosse menos provável esta última hipótese. Sempre se deram casos destes em que a semente do macho, por defeito seu ou da fêmea que a recebe, não dá o fruto desejado. Não iria acabar o mundo por causa disso. E respondeu-lhe:
“Melhor gastasses o dinheiro em coisas de utilidade.”
E foi só isto que ele falou, nada mais, pois sabia que se se alongasse em outras considerações, Salomé aproveitaria para tentar discutir a questão da união infértil, e sempre que isso acontecia ele era acometido por um grande embaraço de macho ferido nas suas capacidades de reprodutor, um embaraço que o remetia para um persistente silêncio sobre tal assunto, como se soubesse de antemão que o mal era dele e só dele, sentindo-se diminuído perante a mulher e todos os que o rodeavam.
Então foi passar as mãos por água no lavatório. Sentou-se à mesa a sorver a sopa e a comer o pão do jantar. Tinha pressa de terminar. Acabou, e foi para a sociedade recreativa jogar dominó com os camaradas.
Quando voltou, perto da meia-noite, Salomé já dormia, enrolada sobre si como um feto. Nem se mexeu quando ele avançou por entre os lençóis e a enlaçou pela cintura, passando-lhe uma perna sobre as coxas. Ela contraiu-se um pouco, como se, inconscientemente, quisesse dar um sinal de algo que não deveria acontecer, e a sua respiração ganhou volumes de um silvo agreste e inesperado. Nenhum perfume de desejo emanava daquele corpo desgastado de desilusão e mágoa.
Josué lembrava-se bem: foi no dia seguinte que partiu para a faina das vindimas, para ganhar um dinheiro suplementar, uma oportunidade que lhe surgira da parte de um antigo patrão dos seus tempos de solteiro. Esteve fora de casa duas semanas. Foi quando regressou, ao fim desse tempo, que Salomé lhe disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”
D.E.
O cigano tinha uma forma cantante de falar, repleta de expressões e pronúncias próprias das gentes do outro lado da fronteira. Mostrava uma combinação cor-de-rosa, com finas rendas, que retirava de uma caixa de cartão, e perguntava à cliente:
“Te gusta? Es preciosa!”
As mulheres, se ainda jovens, coravam de desejo perante aquelas peças maravilhosas com que se imaginavam, à noite, no fogo das alcovas, a deslumbrar os seus companheiros. E compravam muito, quase sempre a prestações, que de ninguém desconfiava o mercador, sempre disposto a conceder facilidades de pagamento sem o mínimo receio de ver pairar sobre o seu negócio a sombra odiosa do crédito malparado.
Só Salomé não se entusiasmava com as roupas. A maioria das vezes só tinha olhos para as molduras de estampas religiosas que se misturavam por entre a panóplia de artigos com que o cigano enchia a carrinha. Desejou muito um S. João Baptista representado no meio do rio Jordão, com a água pelos joelhos, dando o baptismo a Nosso Senhor. Quase se apaixonou pela serenidade daquele rosto de onde brotava o fulgor de uma santidade profunda, parecendo-lhe o de Cristo, ao pé do dele, pouco mais que uma vulgaridade. E pensava que quando lhe nascesse um filho – o que ia tardando –, lhe daria o nome daquele santo grandioso e belo que pregava no deserto da Judeia contra fariseus e saduceus, alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, vestindo uma rude roupa feita de lã de camelo cingida com uma tira de couro grosseiro. Porém, como não se decidira logo e, entretanto, fora vendida a moldura do baptista, acabou por comprar um quadro com a imagem de um anjo da guarda a proteger duas frágeis crianças que brincavam descuidadamente na margem de um rio. A cabeça do anjo era um novelo assexuado de caracóis de ouro, os lábios entreabertos como se sorrissem ou deixassem passar algum avisado conselho aos incautos infantes – um menino e uma menina – , as asas levantadas e os braços abarcando a iminência do perigo sob o resplendor do dia. Salomé trabalhara seis meses na fábrica de papel, tinha um dinheiro de parte, e pagou a pronto. Isso pareceu impressionar o cigano que se dispôs a entrar em sua casa munido da ferramenta adequada para colocar o quadro no sítio desejado pela cliente. Tanto a boa vontade do cigano, em que poderia ser vista sem maldade uma simples atenção comercial, como o assentimento dado por Salomé a que a ajudasse naquele trabalho, não agradaram às vizinhas que estavam por perto e puderam presenciar a cena. O que se passou lá dentro não lhes foi dado ver, pelo que se limitaram a calcular o tempo em que permaneceu o homem no interior da morada, uma enormidade de minutos que por pouco não faziam uma hora, um tempo desajustado ao fim em vista, para o qual, segundo elas, uns cinco minutos teriam sido suficientes. Isto foi o que disseram e depois correu por toda a aldeia, chegando aos ouvidos de Josué, embora não pareça de justiça acreditar em tudo o que se diz e se ouve. Se o cigano demorou dentro de casa mais do que os cinco minutos que pareciam bastar para a operação, foi porque alguma coisa deverá ter corrido mal, reclamando cuidados adicionais: um prego que se entortou, impedindo a imediata suspensão do quadro na parede, a necessidade de improvisar uma bucha para uma mais sólida fixação, enfim, quem lança as mãos à obra é que sabe as dificuldades com que se depara.
“Santo Deus, meter o cigano em casa com o marido fora.”
Josué afastava-se da aldeia que ia submergindo e galgava o aclive do monte por entre o odor poderoso e inebriante das estevas em flor. Quando ali voltasse não estaria nenhuma pedra à vista, estava seguro disso. E, de súbito, como uma frecha lançada de um passado distante, irrompeu-lhe na memória a visão daquele quadro que um certo dia, ao chegar a casa, quando regressava da pesca no rio, vira pendurado na parede fronteira à porta de entrada.
“Comprei-o ao cigano. É um anjo da guarda”, disse-lhe a mulher.
Salomé andava estranha, em frequentes visitas à igreja, a lavar-se de manhã e à noite com água da Fonte Santa, dizendo ter pedido uma graça à Senhora dos Milagres, e a razão, sabia-a ele, era essa dificuldade em emprenhar, cinco anos de matrimónio e nenhum resultado à vista. Josué também se sentia mal com a união maninha, mas que fazer? De um ou outro membro do casal teria de ser o problema, se calhar dos dois, ainda que fosse menos provável esta última hipótese. Sempre se deram casos destes em que a semente do macho, por defeito seu ou da fêmea que a recebe, não dá o fruto desejado. Não iria acabar o mundo por causa disso. E respondeu-lhe:
“Melhor gastasses o dinheiro em coisas de utilidade.”
E foi só isto que ele falou, nada mais, pois sabia que se se alongasse em outras considerações, Salomé aproveitaria para tentar discutir a questão da união infértil, e sempre que isso acontecia ele era acometido por um grande embaraço de macho ferido nas suas capacidades de reprodutor, um embaraço que o remetia para um persistente silêncio sobre tal assunto, como se soubesse de antemão que o mal era dele e só dele, sentindo-se diminuído perante a mulher e todos os que o rodeavam.
Então foi passar as mãos por água no lavatório. Sentou-se à mesa a sorver a sopa e a comer o pão do jantar. Tinha pressa de terminar. Acabou, e foi para a sociedade recreativa jogar dominó com os camaradas.
Quando voltou, perto da meia-noite, Salomé já dormia, enrolada sobre si como um feto. Nem se mexeu quando ele avançou por entre os lençóis e a enlaçou pela cintura, passando-lhe uma perna sobre as coxas. Ela contraiu-se um pouco, como se, inconscientemente, quisesse dar um sinal de algo que não deveria acontecer, e a sua respiração ganhou volumes de um silvo agreste e inesperado. Nenhum perfume de desejo emanava daquele corpo desgastado de desilusão e mágoa.
Josué lembrava-se bem: foi no dia seguinte que partiu para a faina das vindimas, para ganhar um dinheiro suplementar, uma oportunidade que lhe surgira da parte de um antigo patrão dos seus tempos de solteiro. Esteve fora de casa duas semanas. Foi quando regressou, ao fim desse tempo, que Salomé lhe disse:
“Este mês não me vieram os sangues.”
D.E.
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