domingo, setembro 23, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 8 )

Agora não passa um mês que Salomé não vá visitar a mãe. Fica por lá três ou quatro dias, o tempo justo para não desorganizar a vida doméstica e continuar a cumprir com as suas obrigações de esposa e dona de casa que assume diligentemente desde que regressou e foi aceite pelo marido. Antes de sair, deixa feita uma panela de sopa, ou um guisado de carne, preparos que dão para três ou quatro refeições, o suficiente para o homem não ter de se preocupar com a cozinha como se não houvesse mulher que olhasse por ele. Em um ou outro dia, ao jantar, bastar-lhe-á um pão com chouriço ou um bocado de queijo, uma tigela de sopa e um copo de vinho, que boa boca tem Josué, homem habituado a comer de tudo, a não virar a cara a nenhum passadio por mais singelo e frugal que se apresente. Assim, com a comida feita, não lhe faltará o tempo para tratar da criação e da horta, para fisgar uns peixes no rio, para conviver com os amigos na sociedade recreativa. É espantoso como até para coisas tão simples como estas são necessários os cuidados de uma mulher.
Não menos espantosos são os desvelos filiais que Salomé demonstra para com quem a deitou ao mundo. Filhas assim, que deixam a sua casa, embora por poucos dias, para irem longe apoiar a progenitora idosa, são casos cada vez mais raros.
Naquele tempo ainda não havia na região qualquer registo de residências para a terceira idade ou lares de idosos. Os velhos permaneciam sozinhos nos seus domicílios ou, quando tal não era possível, vinham expiar o fardo dos anos em casa dos filhos. Andavam à vez pelas casas de uns e de outros, um mês em cada sítio, o tempo escrupulosamente contado, havia que dividir o mal pelas aldeias. Salomé não tinha irmãos ou irmãs. Se a mãe tivesse parido um rancho de filhos, poderia incumbir a filha mais nova de, ficando solteira, cuidar de si na velhice. Mas os tempos eram outros, já não vingavam esses costumes antigos com que se bordavam nos panos da vida o equilíbrio e a felicidade dos agregados familiares.
Uma vez, disse Josué:
“A velha que venha para cá. Escusas de andar de um lado para o outro.”
Salomé nem respondeu. Lançou-lhe um olhar de gelo, capaz de varar um homem, como se quisesse dizer tudo o que lhe ia na alma. A velha, como Josué lhe chamava, estava rija e sem os achaques que a idade naturalmente convoca, não tendo a mínima vontade de sair de sua casa. Se a filha a visitava com tão singular regularidade, não era para lhe dispensar cuidados de apoio domiciliário, que até nem resultariam a tempos tão espaçados, seria talvez por puro afecto, pela necessidade de reencontrar um ser amado de quem vivia apartada. São bonitos estes sentimentos que o marido parecia não entender na sua natural expressão.
Numa das visitas, porém, Salomé demorou-se mais que o tempo habitual, como se algo de imprevisto tivesse sucedido e ela se visse obrigada a prolongar a estadia. Estava fora já há uma semana quando telefonou para a mercearia com um recado para o marido: iria só na semana seguinte, na camioneta de terça-feira, a que chegava à aldeia por volta do meio-dia. E não deu mais explicações.
Durante o resto do dia e à noite Josué ruminou a dilação com um azedo no estômago, uma moinha nas têmporas, que até lhe custava encarar os amigos.
De falatórios andava a aldeia cheia, só que nada lhe chegava aos ouvidos.
“Mulher minha não procedia assim”.
Isto foi-lhe dito ao serão, na sociedade recreativa, durante uma partida de dominó, depois de uns tragos de aguardente de medronho, na altura exacta em que as línguas se soltam e o cérebro se demite das suas funções de comando. Foi Daniel ou Jonas, ou teria sido Jacob, ou Ruben? Ele nem percebeu de que lado fora atirada a frecha. Ester atravessava com o perfume da sua figura de mulher vistosa o grande salão onde os bailes se costumavam realizar.
Ainda se contará a história de Ester, mulher bela entre as mais belas que a aldeia tinha. E corajosa. Entregou-se a um poderoso senhor para salvar o seu povo.
Foi num tempo, lembra-se Josué, em que ainda era capaz de olhar de frente para uma mulher e sentir o apelo de uma atracção física puramente animal.
A sociedade recreativa fechou à meia-noite. Primeiro apagaram-se as luzes do salão de baile que, nos dias de semana, servia de espaço de convívio às mulheres, e, logo depois, as da sala de jogos e as do balcão das bebidas. Um membro da direcção ficou por mais um tempo, num pequeno gabinete, apurando a folha de caixa do dia. A porta fechou-se atrás dele e de Ester, os últimos a saírem, e os homens foram entrando na noite, uns montados em bicicletas, outros, que iam para mais perto, pelo próprio pé.
Seguiam os dois sozinhos, já separados dos companheiros que foram tomando o caminho de suas casas. Quando chegaram ao fim da rua, meteram-se pelo campo aberto do olival até à orla do mato. No céu corria a claridade da grande estrada de estrelas que tem o nome do Apóstolo. O rio cantava nos socalcos do leito. Abraçaram-se, e os corpos rolaram sobre a terra húmida, afrontando num estrepitoso festim o silêncio das árvores.
Quando Salomé voltou de casa da mãe, na data prometida, disse secamente a Josué, mostrando-lhe as roupas que ele despira na véspera:
“Cheiram às estevas do campo.”
E foi como se tivesse dito tudo com tão singelas palavras. Jantaram em silêncio à luz débil do candeeiro a petróleo, e, à hora de dormir, na cama, os seus corpos cansados de distância nem ousaram tocar-se.

D.E.

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