sexta-feira, fevereiro 17, 2012

A LAMENTAÇÃO DE PROCUSTO

I
Reconheço os crimes que cometi, o terror que espalhei pela Ática, infligindo aos viandantes os suplícios do leito. Via-os chegar exaustos ao cais do porto onde os esperava, queimados de vento e  pó, as sandálias e as túnicas desfeitas, –  de bom grado aceitavam a miragem de repouso que lhes prometia.
II
Confesso que  sofria.  Perturbava-me a impiedade dos deuses, o fogo sombrio da desigualdade nos olhos dos homens, o rápido fluir da vida sob as pontes  do destino  absurdo. Mas o mal que pratiquei nunca me concedeu a satisfação, nunca tive prazer em ver no rosto das vítimas o reflexo cruel do pavor sem limites: fiz apenas o que estava destinado  fazer-se  desde o princípio dos tempos.
III
Capturou-me Teseu numa vereda que levava a  Elêusis. O dia era uma promessa de luz e havia no ar um cheiro brando a pinheiros. Eu tinha os olhos rasgados de viandantes e as mãos tolhidas de sangue.
IV
Morri no suplício do leito, mas os meus membros decepados,  vivos em metáforas, atravessaram o martírio da História por séculos de luz e de trevas.
V
Bastava o frio castigo de Teseu e a mortalha de silêncio sobre o meu ser desprezível:  a moeda ao barqueiro, o rio sem  regresso. Teria descido em paz ao reino das sombras, aliviado dos meus crimes e da tirania dos deuses.  Teria  descansado, enfim, no leito do olvido.

2 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Descanso foi o que Procusto não pôde ter.

Manuel Nunes disse...

É isso, Caro Ricardo - até neste desgraçado blogue ele não tem descanso. Já li os "Ecos da Semana". Até dia 2.