segunda-feira, outubro 25, 2010
quinta-feira, outubro 21, 2010
A CABEÇA DA GÁRGULA

No romance “A Noite do Oráculo”, de Paul Auster, há um episódio em que a cabeça duma gárgula de pedra se desprende da fachada de um prédio de apartamentos, passando a poucos centímetros do crânio de Nick Bowen, uma personagem da narrativa que atravessa certas dificuldades no seu relacionamento conjugal.
A pedra que só por acaso não o matou, deu a Nick Bowen o ensejo de rapidamente reflectir sobre a vida e os seus imponderáveis. Devia estar morto, mas escapou ileso, pelo que a situação se lhe afigurou como uma segunda oportunidade de vida que lhe era concedida. Então, em rotura com o passado, resolveu não voltar a casa, tomando um avião para Kansas City, o primeiro que saía do aeroporto de La Guardia naquela noite em que ali chegou. Ia viver a sua segunda vida num lugar que lhe era inteiramente desconhecido, com pessoas que nunca tinha visto, partindo do zero ou de pouco mais. A dificuldade por que acabara de passar dera-lhe um suplemento de coragem para uma nova existência.
Assim, a cabeça da gárgula de pedra é uma boa metáfora para certos momentos das nossas vidas. Todos temos um tempo em que somos surpreendidos pela provação: uma doença grave, a morte de um filho ou de uma pessoa muito querida, ou essas outras formas de morte que são o afastamento e a separação. Felizmente que a cabeça da gárgula nem sempre nos despedaça o crânio. Ainda incrédulos e assustados, olhamos em volta como se não víssemos nada, sacudimos o pó das roupas, contemplamos os estilhaços de pedra no chão e acreditamos ainda mais nas nossas forças. É então que tomamos o avião para a nossa Kansas City, sabendo que nenhuma viagem é mais importante que aquelas que fazemos dentro de nós.
A pedra que só por acaso não o matou, deu a Nick Bowen o ensejo de rapidamente reflectir sobre a vida e os seus imponderáveis. Devia estar morto, mas escapou ileso, pelo que a situação se lhe afigurou como uma segunda oportunidade de vida que lhe era concedida. Então, em rotura com o passado, resolveu não voltar a casa, tomando um avião para Kansas City, o primeiro que saía do aeroporto de La Guardia naquela noite em que ali chegou. Ia viver a sua segunda vida num lugar que lhe era inteiramente desconhecido, com pessoas que nunca tinha visto, partindo do zero ou de pouco mais. A dificuldade por que acabara de passar dera-lhe um suplemento de coragem para uma nova existência.
Assim, a cabeça da gárgula de pedra é uma boa metáfora para certos momentos das nossas vidas. Todos temos um tempo em que somos surpreendidos pela provação: uma doença grave, a morte de um filho ou de uma pessoa muito querida, ou essas outras formas de morte que são o afastamento e a separação. Felizmente que a cabeça da gárgula nem sempre nos despedaça o crânio. Ainda incrédulos e assustados, olhamos em volta como se não víssemos nada, sacudimos o pó das roupas, contemplamos os estilhaços de pedra no chão e acreditamos ainda mais nas nossas forças. É então que tomamos o avião para a nossa Kansas City, sabendo que nenhuma viagem é mais importante que aquelas que fazemos dentro de nós.
domingo, outubro 17, 2010
OS CADERNOS PORTUGUESES
Eu sabia que acabaria por comprar um caderno português: bastaria pegar num deles, bastaria senti-lo nas minhas mãos e eu não resistiria. Não havia neles nada de luxuoso, nada que desse nas vistas. Não, aqueles cadernos eram muito simplesmente um artigo prático – resistente, despretensioso, útil, de maneira nenhuma o livro em branco que poderíamos escolher como prenda para um amigo.
(Paul Auster em “A Noite do Oráculo”)
(Paul Auster em “A Noite do Oráculo”)
Procurem-se os ditos cadernos numa pequena papelaria do Largo do Calhariz, em Lisboa, ao lado do elevador da Bica. À semelhança do que aconteceu com Sidney Orr, narrador e protagonista do romance de Paul Auster, eles poderão propiciar encontros felizes com a escrita.
domingo, outubro 10, 2010
ACADEMIA SUECA - A MADRASTA

A ideia do título surgiu-me por ter lido, durante as férias, o “Elogio da Madrasta” de Mario Vargas Llosa. Embora neste livro se fale de uma madrasta benigna, mãe e amante dum enteado afinal bastante perverso, há literaturas para as quais a Academia Sueca tem sido uma madrasta das autênticas.
Tome-se como exemplo as literaturas de língua portuguesa, contempladas com o único prémio de José Saramago em 1998. Mário Vargas Llosa, peruano, é o sexto Nobel de língua castelhana depois de cinco escritores espanhóis, alguns praticamente desconhecidos do grande público: José Echegaray (1904), Jacinto Benavente (1922), Juan Ramon Jiménez (1956), Vicente Aleixandre (1977) e Camilo José Cela (1989). Nos trinta e três anos que vão de 1956 a 1989, a Espanha teve três laureados com o Prémio Nobel da Literatura, o que me leva a pensar que Portugal e o Brasil mereciam ter pelo menos mais um ou dois escritores entre os premiados da Academia Sueca.
Já cerca de 1960, conforme leio no diário de José Régio, se agitava o nosso meio literário face às personalidades portuguesas indicadas para o prémio Nobel. Miguel Torga fora proposto pelo professor e historiador francês Jean-Baptiste Aquaronte, e os nomes de Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro eram igualmente falados nos jornais como nobelizáveis. De Régio, porém, nem sequer se lembravam, conforme nos revela o próprio em magoada nota naquele seu diário.
Hoje, doze anos depois de Saramago, ocorre-me o nome de Agustina Bessa-Luís para preencher um dos lugares do Nobel que temos em falta. A sua escrita é poderosa e paradoxal, de difícil assimilação, embora nunca deixe de nos surpreeender e estimular. Mas que pensará Agustina do prémio da Academia Sueca? Proust, James Joyce e Jorge Luis Borges nunca o receberam e não deixaram por isso de figurar entre os maiores. Sartre foi nomeado em 1964 e recusou. Prémios são prémios, fazem parte de um certo mundanismo que se estabeleceu na instituição literária e que nem sempre se afirma pelas melhores razões. Porém, além das inerentes vantagens materiais, eles constituem um reconhecimento de facto e fazem luz sobre escritores e literaturas que apesar das suas valias não lograram chegar até ao grande público. Por isso sou por Agustina para Nobel da Literatura, embora receie poder ser já demasiado tarde para se lhe fazer essa justiça.
terça-feira, outubro 05, 2010
terça-feira, setembro 21, 2010
MÁXIMAS
"É sabido que o orgulho da mulher, uma vez ferido, não cicatriza nunca."
Lido em Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen.
Lido em Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen.
domingo, setembro 19, 2010
CAMILO CASTELO BRANCO (1825-1890)

Em Camilo sempre me impressionou a sua capacidade de efabulação, o poderoso domínio da língua e o conhecimento que demonstrava ter dos grandes vultos da literatura do seu tempo, desde Eugène Sue, de quem foi largamente tributário, até ao Balzac da “Comédia Humana”.
Confesso que por vezes senti em relação ao escritor de S. Miguel de Ceide uma espécie de admiração envergonhada. Eça era sempre o Eça, mesmo com prosas bárbaras e histórias de santinhos milagreiros; Júlio Dinis, via-o como um astro desintegrado antes de chegar ao zénite; Garrett e Herculano, pais do nosso Romantismo, firmavam-se-me como combatentes da liberdade, exumadores da História e dos vínculos da nacionalidade portuguesa. Camilo, porém, o que era?
Em Agosto de 2009 e Maio de 2010 estive na Casa de Camilo em S. Miguel de Ceide. Talvez, dito de outra maneira, na casa do comerciante Manuel Pinheiro Alves, marido de D. Ana Plácido, mulher que pagou na Cadeia da Relação do Porto, tal como Camilo, o crime de adultério, intolerável à luz da moral burguesa do século. Um pouco antes, tinha lido “Camilo Broca” de Mário Cláudio e folheado “O Penitente” de Teixeira de Pascoaes, textos biográficos sobre o escritor de “Amor de Perdição”. Pela mesma altura, meti-me em “Eusébio Macário” e “A Corja”, novelas em que o ultra-romântico imita o estilo da nova escola realista de Eça de Queiroz. Escritos e publicados estes livros, parece que terá dito, em jeito de gozo, algo de parecido com o seguinte: “É tão fácil escrever neste estilo, que até eu consegui”.
Nestas últimas semanas, voltei ao convívio camiliano. Na Comunidade de Leitores de S. Domingos de Rana lê-se “Fanny Owen” de Agustina Bessa-Luís, drama vivido pelo novelista num triângulo amoroso que Manuel de Oliveira levou para o cinema com o título de “Francisca”. Em “Duas Horas de Leitura” e, sobretudo, em “No Bom Jesus do Monte”, Camilo explica-se, mas não convence. Pequenas não deverão ter sido as suas responsabilidades no desfecho da história de amor entre Francisca Owen e José Augusto Pinto de Magalhães.
Entretanto, por outras válidas razões, vieram-me às mãos os dois primeiros romances da trilogia camiliana a que Alexandre Cabral chamou o Ciclo da Felicidade: “Onde Está a Felicidade?”, que teve o acolhimento entusiástico de Herculano, e “Um Homem de Brios”. Deixei para outras núpcias o terceiro livro, “Memórias de Guilherme do Amaral”. Esta série romanesca, com laivos autobiográficos, é escrita em plena fase da sua maturidade literária. O escritor está no auge da criação, é uma figura reconhecida que publica nos jornais e edita em livro.
Conhecedor da literatura europeia, em especial da francesa, Camilo foi um homem que não viajou fora do país, assim como não viajaram José Régio e Fernando Pessoa (embora este tenha passado parte da infância e a adolescência na África do Sul). Além das fronteiras de Portugal, conheceu apenas, e por mero acaso, os caminhos entre Vigo e a província do Minho, quando, por morte do pai, deixou Lisboa para ser entregue a familiares de Vila Real e o vapor em que viajava, não conseguindo vencer o mau tempo à entrada da barra do Douro, teve que ir aportar àquela cidade da Galiza. Era menino e não mais voltou a sair de Portugal.
Temos então um homem que não viajou, que não fez estudos superiores, e que, no amor, raptou, traiu e abandonou as suas amadas; um homem que sovou e foi sovado, que conviveu com criminosos e de tal deixou testemunho nas suas “Memórias do Cárcere”; um diabo de língua e pena afiadas, vituperador da burguesia, do império do dinheiro e dos barões feitos à pressa, mas que não enjeitou o título que lhe foi concedido de visconde de Correia Botelho, nome ancestral da sua família; em suma, um homem múltiplo, estranho e complexo, um feixe de paixões e sentimentos imoderados.
Uma peixeira da Póvoa de Varzim, praia onde costumava estanciar por causa de maleitas que o afligiam, ter-lhe-á chamado, devido às bexigas que lhe desfeavam o rosto, “cara de areia mijada”. Como a peixeira não era a princesa Rattazzi, o novelista engoliu em seco e não foi capaz de responder. Estava habituado a demolir com a sua verve a prosápia dos ricos e dos poderosos, não sabia dirigir palavras más a uma mulher do povo.
Confesso que por vezes senti em relação ao escritor de S. Miguel de Ceide uma espécie de admiração envergonhada. Eça era sempre o Eça, mesmo com prosas bárbaras e histórias de santinhos milagreiros; Júlio Dinis, via-o como um astro desintegrado antes de chegar ao zénite; Garrett e Herculano, pais do nosso Romantismo, firmavam-se-me como combatentes da liberdade, exumadores da História e dos vínculos da nacionalidade portuguesa. Camilo, porém, o que era?
Em Agosto de 2009 e Maio de 2010 estive na Casa de Camilo em S. Miguel de Ceide. Talvez, dito de outra maneira, na casa do comerciante Manuel Pinheiro Alves, marido de D. Ana Plácido, mulher que pagou na Cadeia da Relação do Porto, tal como Camilo, o crime de adultério, intolerável à luz da moral burguesa do século. Um pouco antes, tinha lido “Camilo Broca” de Mário Cláudio e folheado “O Penitente” de Teixeira de Pascoaes, textos biográficos sobre o escritor de “Amor de Perdição”. Pela mesma altura, meti-me em “Eusébio Macário” e “A Corja”, novelas em que o ultra-romântico imita o estilo da nova escola realista de Eça de Queiroz. Escritos e publicados estes livros, parece que terá dito, em jeito de gozo, algo de parecido com o seguinte: “É tão fácil escrever neste estilo, que até eu consegui”.
Nestas últimas semanas, voltei ao convívio camiliano. Na Comunidade de Leitores de S. Domingos de Rana lê-se “Fanny Owen” de Agustina Bessa-Luís, drama vivido pelo novelista num triângulo amoroso que Manuel de Oliveira levou para o cinema com o título de “Francisca”. Em “Duas Horas de Leitura” e, sobretudo, em “No Bom Jesus do Monte”, Camilo explica-se, mas não convence. Pequenas não deverão ter sido as suas responsabilidades no desfecho da história de amor entre Francisca Owen e José Augusto Pinto de Magalhães.
Entretanto, por outras válidas razões, vieram-me às mãos os dois primeiros romances da trilogia camiliana a que Alexandre Cabral chamou o Ciclo da Felicidade: “Onde Está a Felicidade?”, que teve o acolhimento entusiástico de Herculano, e “Um Homem de Brios”. Deixei para outras núpcias o terceiro livro, “Memórias de Guilherme do Amaral”. Esta série romanesca, com laivos autobiográficos, é escrita em plena fase da sua maturidade literária. O escritor está no auge da criação, é uma figura reconhecida que publica nos jornais e edita em livro.
Conhecedor da literatura europeia, em especial da francesa, Camilo foi um homem que não viajou fora do país, assim como não viajaram José Régio e Fernando Pessoa (embora este tenha passado parte da infância e a adolescência na África do Sul). Além das fronteiras de Portugal, conheceu apenas, e por mero acaso, os caminhos entre Vigo e a província do Minho, quando, por morte do pai, deixou Lisboa para ser entregue a familiares de Vila Real e o vapor em que viajava, não conseguindo vencer o mau tempo à entrada da barra do Douro, teve que ir aportar àquela cidade da Galiza. Era menino e não mais voltou a sair de Portugal.
Temos então um homem que não viajou, que não fez estudos superiores, e que, no amor, raptou, traiu e abandonou as suas amadas; um homem que sovou e foi sovado, que conviveu com criminosos e de tal deixou testemunho nas suas “Memórias do Cárcere”; um diabo de língua e pena afiadas, vituperador da burguesia, do império do dinheiro e dos barões feitos à pressa, mas que não enjeitou o título que lhe foi concedido de visconde de Correia Botelho, nome ancestral da sua família; em suma, um homem múltiplo, estranho e complexo, um feixe de paixões e sentimentos imoderados.
Uma peixeira da Póvoa de Varzim, praia onde costumava estanciar por causa de maleitas que o afligiam, ter-lhe-á chamado, devido às bexigas que lhe desfeavam o rosto, “cara de areia mijada”. Como a peixeira não era a princesa Rattazzi, o novelista engoliu em seco e não foi capaz de responder. Estava habituado a demolir com a sua verve a prosápia dos ricos e dos poderosos, não sabia dirigir palavras más a uma mulher do povo.
quarta-feira, setembro 08, 2010
MANUEL TEIXEIRA GOMES (1860-1941)

Ando a ler os escritos literários desta personalidade invulgar, algarvio de Portimão, figura grada da República cujo centenário ora se festeja. Diletante e requintado, representante de interesses comerciais familiares (um pouco à semelhança de Cesário Verde) que o levaram a viajar pela Europa, afirmou-se como amante do belo, epicurista com arremetidas de estóico, criador de histórias eróticas e de narrativas de viagens.
Foi ministro plenipotenciário em Londres a seguir à implantação da República (a Londres de Jorge V, onde se exilara D. Manuel II e onde pairava ainda a sombra do Marquês de Soveral). Foi Presidente da República entre Agosto de 1923 e Dezembro de 1925. Retirado em Bougie (ou Bejaïa) na Argélia (qual Vale de Lobos de Herculano), aí morreu.
A sua primeira obra, “Inventário de Junho”, publicada aos trinta e nove anos, abria com uma curiosa advertência: ESTE LIVRO NÃO TEM UTILIDADE NO COMÉRCIO…
Foi ministro plenipotenciário em Londres a seguir à implantação da República (a Londres de Jorge V, onde se exilara D. Manuel II e onde pairava ainda a sombra do Marquês de Soveral). Foi Presidente da República entre Agosto de 1923 e Dezembro de 1925. Retirado em Bougie (ou Bejaïa) na Argélia (qual Vale de Lobos de Herculano), aí morreu.
A sua primeira obra, “Inventário de Junho”, publicada aos trinta e nove anos, abria com uma curiosa advertência: ESTE LIVRO NÃO TEM UTILIDADE NO COMÉRCIO…
terça-feira, agosto 31, 2010
NAVEGAÇÕES SEM BÚSSOLA
Vibrava os dedos sobre o berço das teclas, o ecrã colocado propositadamente de viés para que outros não pudessem ler o que era só dela: uma conversa de palavras escritas em jeito de parada e resposta, frases curtas, um diz tu digo eu despojado de apuro e à velocidade de cruzeiro da linguagem em rede. Se alguém se aproximava minimizava a página, ficava uma pequena barra na base do ecrã, e passava a um espaço anódino, desses que não inspiram a curiosidade de ociosos e demais criaturas perversas.
O trabalho que aquilo dá! Primeiro é preciso fazer um registo, escolher um pseudónimo (ou nickname), dizer se procura homem ou mulher, faixa etária desejada, indicar os dados pessoais: idade, estado civil, nível de escolaridade, profissão, se gosta de cinema, de música ou de futebol, se tem algum hobby particular, se costuma ler ou passar indiferente pela carranca dos livros. É conveniente publicar uma fotografia, ajuda muito a encontrar a pessoa certa. Os administradores do portal, sempre atentos, vão dando sugestões e exibindo novos perfis, de acordo com os gostos e interesses manifestados pelos utilizadores.
O nome deste sítio na Internet forma-se a partir do radical meet (de encontrar, claro), acrescentando-se-lhe ix, ou ex, ou qualquer outra partícula sufixal que se me varreu da memória. Meetix, meetex, ou lá o que seja.
A coisa parece que resulta. Uma senhora de Cascais, apresentável mas já em fase de mudança de estação, arranjou por este meio um namorado jovem e bem apessoado. Um homem de Sintra, inviamente casado, conseguiu estrear-se no adultério de raiz internética após breves dias de navegação. Um cavalheiro da Amadora, viúvo e aposentado da função pública, encontrou uma brasileira de Minas que agora quer vir até à terrinha dos descobridores para casar com ele. Estes os casos de que tenho notícia, muitos mais haverá, estou certo.
Ela sentava-se ao computador entre duas a três horas ao fim do dia, esquecia o jantar, esquecia a televisão. Isto para além do tempo que trazia acumulado do local de trabalho, sobre o qual não há certezas, apenas umas temerárias suposições. Entrava no portal dos encontros, ia para o chat, minimizava a página quando o serviço apertava ou o superior hierárquico rondava por perto, lançava uns dados no sistema da empresa, voltava ao portal. Quando saía do escritório, pelas cinco e meia da tarde, ia exausta de emoção.
Entretanto, pelo correio electrónico iam chegando mensagens de homens interessados no seu perfil. Era só marcar o tête-à-tête, de preferência num local discreto a uma hora discreta, como entre as cinco e as sete da tarde, logo se veria o que aquilo dava. Sim, é extraordinário, muito mais interessante em pessoa que na fotografia, e na próxima sexta-feira à noite, que tal sairmos para nos conhecermos melhor? Ou então, em caso de interlocutor mais objectivo: Gostei muito que tivesse vindo, o meu apartamento é já aqui ao virar da esquina, podemos subir e tomar um refresco.
Parece que nunca passou dos gozos virtuais, dos encontros sem consequências, mas o marido, ciumento e de mau carácter, farejando os mais improváveis eflúvios, deu em desconfiar daquela devoção informática. Espiou-a como o pide ruim espiava a vítima, e armou uma cena de violência doméstica. Toma lá que é para aprenderes! Depois abriu o computador e extraiu o disco para ser inspeccionado por técnicos da sua confiança: queria descobrir o mapa de todos os mares navegados pela cibernauta.
Que história triste! Como é deplorável a personalidade destes homens que só ficam satisfeitos quando recolhem certezas de tudo. Arruínam a vida própria e a alheia pelo azougue dum caso, pela brisa dum facto, quando mais sensato é deixar o coração à segurança do que não é seguro, ao poder afrodisíaco de não saber tudo, de não saber nada ou até de ser o último a saber.
Desconheço os desenvolvimentos recentes da história desta mulher. Sei que o marido anda aí pelas tascas do bairro, a língua metida nos gargalos das minis, trincando coiratos e tiras de entremeada. Quanto a ela, vi-a passar no outro dia a caminho da paragem do autocarro: ia ligeira e perfumada como uma ave do Éden. Por momentos, tive a tentação de me registar no tal meetix ou meetex para a encontrar e poder falar-lhe, mas felizmente que não fui por aí. Ainda sou do tempo do papel de carta e das declarações de amor lançadas do empedrado das ruas para o alto das sacadas. Ainda me lembro das serenatas, dos bailes nas sociedades recreativas e dos românticos passeios de domingo nos jardins públicos. Desconfio das facilidades da Internet e do falso brilho das suas páginas. Além disso, há ainda uma razão de peso: tenho em minha casa quem passe largo tempo nestas navegações sem bússola por baixios e escolhos de morte. É melhor não me aventurar em tão traiçoeiras singraduras. Quem sabe o que poderia encontrar por lá?
O trabalho que aquilo dá! Primeiro é preciso fazer um registo, escolher um pseudónimo (ou nickname), dizer se procura homem ou mulher, faixa etária desejada, indicar os dados pessoais: idade, estado civil, nível de escolaridade, profissão, se gosta de cinema, de música ou de futebol, se tem algum hobby particular, se costuma ler ou passar indiferente pela carranca dos livros. É conveniente publicar uma fotografia, ajuda muito a encontrar a pessoa certa. Os administradores do portal, sempre atentos, vão dando sugestões e exibindo novos perfis, de acordo com os gostos e interesses manifestados pelos utilizadores.
O nome deste sítio na Internet forma-se a partir do radical meet (de encontrar, claro), acrescentando-se-lhe ix, ou ex, ou qualquer outra partícula sufixal que se me varreu da memória. Meetix, meetex, ou lá o que seja.
A coisa parece que resulta. Uma senhora de Cascais, apresentável mas já em fase de mudança de estação, arranjou por este meio um namorado jovem e bem apessoado. Um homem de Sintra, inviamente casado, conseguiu estrear-se no adultério de raiz internética após breves dias de navegação. Um cavalheiro da Amadora, viúvo e aposentado da função pública, encontrou uma brasileira de Minas que agora quer vir até à terrinha dos descobridores para casar com ele. Estes os casos de que tenho notícia, muitos mais haverá, estou certo.
Ela sentava-se ao computador entre duas a três horas ao fim do dia, esquecia o jantar, esquecia a televisão. Isto para além do tempo que trazia acumulado do local de trabalho, sobre o qual não há certezas, apenas umas temerárias suposições. Entrava no portal dos encontros, ia para o chat, minimizava a página quando o serviço apertava ou o superior hierárquico rondava por perto, lançava uns dados no sistema da empresa, voltava ao portal. Quando saía do escritório, pelas cinco e meia da tarde, ia exausta de emoção.
Entretanto, pelo correio electrónico iam chegando mensagens de homens interessados no seu perfil. Era só marcar o tête-à-tête, de preferência num local discreto a uma hora discreta, como entre as cinco e as sete da tarde, logo se veria o que aquilo dava. Sim, é extraordinário, muito mais interessante em pessoa que na fotografia, e na próxima sexta-feira à noite, que tal sairmos para nos conhecermos melhor? Ou então, em caso de interlocutor mais objectivo: Gostei muito que tivesse vindo, o meu apartamento é já aqui ao virar da esquina, podemos subir e tomar um refresco.
Parece que nunca passou dos gozos virtuais, dos encontros sem consequências, mas o marido, ciumento e de mau carácter, farejando os mais improváveis eflúvios, deu em desconfiar daquela devoção informática. Espiou-a como o pide ruim espiava a vítima, e armou uma cena de violência doméstica. Toma lá que é para aprenderes! Depois abriu o computador e extraiu o disco para ser inspeccionado por técnicos da sua confiança: queria descobrir o mapa de todos os mares navegados pela cibernauta.
Que história triste! Como é deplorável a personalidade destes homens que só ficam satisfeitos quando recolhem certezas de tudo. Arruínam a vida própria e a alheia pelo azougue dum caso, pela brisa dum facto, quando mais sensato é deixar o coração à segurança do que não é seguro, ao poder afrodisíaco de não saber tudo, de não saber nada ou até de ser o último a saber.
Desconheço os desenvolvimentos recentes da história desta mulher. Sei que o marido anda aí pelas tascas do bairro, a língua metida nos gargalos das minis, trincando coiratos e tiras de entremeada. Quanto a ela, vi-a passar no outro dia a caminho da paragem do autocarro: ia ligeira e perfumada como uma ave do Éden. Por momentos, tive a tentação de me registar no tal meetix ou meetex para a encontrar e poder falar-lhe, mas felizmente que não fui por aí. Ainda sou do tempo do papel de carta e das declarações de amor lançadas do empedrado das ruas para o alto das sacadas. Ainda me lembro das serenatas, dos bailes nas sociedades recreativas e dos românticos passeios de domingo nos jardins públicos. Desconfio das facilidades da Internet e do falso brilho das suas páginas. Além disso, há ainda uma razão de peso: tenho em minha casa quem passe largo tempo nestas navegações sem bússola por baixios e escolhos de morte. É melhor não me aventurar em tão traiçoeiras singraduras. Quem sabe o que poderia encontrar por lá?
domingo, agosto 01, 2010
EXCERTO DO DIÁRIO DUM BANDEIRANTE
Você já viu como ele está grudado de olho no céu esperando descobrir entre as estrelas o Cruzeiro do Sul? E como aponta a orelha às laranjeiras para ouvir cantar o sabiá? Gente, cara mais bobo não existe desde que Pêro Vaz de Caminha, o letrado do achamento, se espantou com os homens pardos e as moças de cabelos muito pretos e compridos com as suas vergonhas tão cerradinhas e tão limpas que até dava vontade de não ter vergonha nenhuma! Pois é, deixem-no com as estrelas e o incerto gorjeio das aves, que o mais certo que lhe tocará é o cheiro que se manda do rio Tietê, o arzinho fresco da manhã picando-lhe o nariz, a agitação do metrô e do ônibus, a espuma do chope untando-lhe a boca. Vinho nem vê-lo, nenhuma feijoada das que se comem lá na terrinha lhe cairá no prato. Cruzeiro do Sul? Fique-se pela Ursa Maior ou a Ursa Menor! Sabiá de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu? Contente-se com o rouxinol de Bernardim!
domingo, abril 25, 2010
23 de Abril, comemoração do Dia Mundial do Livro - O CONTADOR DE HISTÓRIAS

HISTÓRIA TRISTE DA MULHER-A-DIAS QUE GOSTAVA DE LER POESIA
Antes de ter começado a trabalhar como mulher-a-dias, tinha sido operária numa fábrica de calçado, o salário certo ao fim do mês, refeições subsidiadas pela empresa, creche para as crianças e assistência médica gratuita, tudo regalias concedidas de livre vontade pela entidade empregadora ou decorrentes do contrato colectivo de trabalho em vigor.
Foi um bom emprego até ao dia em que uns operários da Malásia ou do Paquistão, não se sabe ao certo, se dispuseram a fazer o mesmo serviço por uma pequena parte do que por cá se pagava, prescindindo do refeitório, da creche e da assistência médica gratuita, luxos que não eram precisos lá por aquelas bandas onde a gente era saudável e de pouco alimento, e os miúdos, filhos dos operários, tinham sido habituados a andar pelas ruas, entregues a si mesmos, sem necessitarem de mais cuidados que aqueles que na natureza são dispensados pelos progenitores a qualquer cria animal.
Como tinha a renda de casa para pagar, o frigorífico para abastecer, as crianças para vestir e calçar, teve que procurar trabalho. Começou por lavar escadas, arranjou umas senhoras para quem passava a ferro e fazia arranjos de costura, foi companhia de uma idosa que convalescia de um acidente vascular cerebral, até que conseguiu um serviço de quatro horas diárias em casa dum senhor que era professor universitário e tinha uma biblioteca de muitas centenas de livros. Só a limpar o pó dos volumes, a arrumá-los meticulosamente nas estantes ou a retirá-los para cima da secretária do professor, levava ela uma parte considerável do seu horário de trabalho.
Este senhor, seu patrão, era homem de poucas falas: dizia bom dia ou boa tarde, faça isto ou faça aquilo, e mais além não ia nas suas práticas, embora se soubesse que era pessoa com dotes de conversação, de grandes e circunstanciados discursos em tudo quanto a matéria professoral dissesse respeito.
Pelo total de vinte horas semanais que fazia como mulher-a-dias em casa do professor de literatura – é a altura de dizer, para que se saiba, a área do conhecimento em que ele exercia a sua cátedra –, recebia mensalmente um valor próximo do salário mínimo nacional, um rendimento apesar de tudo satisfatório, tendo em conta as suas fracas qualificações profissionais e o facto de trabalhar apenas a metade das horas de qualquer assalariado normal. Assim, ainda lhe sobrava tempo para acompanhar os filhos e deitar a mão a um ou outro serviço que fosse aparecendo.
O senhor professor passava muito tempo ao computador a lançar uns apontamentos que, pelo que percebera duma conversa telefónica, eram destinados a um pós-doutoramento ou a qualquer coisa parecida começada em “pós” e acabada em “ento”. Como poderia ela saber exactamente do que se tratava se só conhecia as palavras simples de todos os dias, pouco entendendo das conversas que lhe ouvia ao telefone com os colegas e amigos? Uma coisa sabia, porém, era que aquilo que o professor escrevia ao computador era um estudo sobre versos e gente que fazia versos, poetas, como aquele seu antigo colega que compunha quadras para adornar os cravos de papel de S. João e um dia até lhe fizera uma que lhe parecera muito bonita mas de cujos versos há muito tempo se havia esquecido.
Soube que os apontamentos eram sobre versos e gente que fazia versos porque um dia, quando limpava o pó ao ecrã do computador, num breve momento em que o professor fizera uma interrupção para tomar café, pôde ler na página aberta a seguinte quadra:
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?
E outras se lhe seguiam, embora não as tenha conseguido fixar, lendo depois as considerações que o professor fazia sobre o autor, um tal Almeida Garrett, poeta que pelo nome até parecia estrangeiro, embora, coisa admirável!, estivessem os versos escritos em português e, tanto quanto lhe era dado entender, do melhor que já tinha lido, que era afinal muito pouco ou quase nada.
Ficou tão impressionada com aquela leitura que no sábado seguinte, estando de folga, se dirigiu à biblioteca municipal para ler os poemas do tal Almeida Garrett. Deu com o livro onde se encontrava o poema da barca bela, tinha um título bonito, “Folhas Caídas”, embora lhe fizesse lembrar o Outono e os momentos tristes da vida, como aquele em que o marido saiu de casa, deixando-a sozinha com o encargo dos filhos. Então leu com atenção o poema. A segunda quadra era igualmente bela:
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
E continuou, não conseguindo deixar de ler e reler todo o poema. Perdeu a noção de quantas vezes passou os olhos pela luz daqueles versos. Os olhos e a alma, que era dentro dela que sentia aquela formidável força que se soltava de cada sílaba, uma música colorida que lhe trazia uma inexplicável sensação de alegria e sofrimento:
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela…
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador!
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela
Oh pescador!
E perante a revelação que ali se lhe oferecia, nunca mais foi capaz de deixar de ler os poetas.
A história, diga-se desde já, tem um final infeliz. Em casa do professor, a mulher-a-dias começou a descurar grosseiramente os seus deveres laborais. Sempre que o patrão não estava em casa, esquecia-se do trabalho e passava grande parte do tempo a ler poemas, dizendo-os por vezes em voz alta, desejosa de sentir o ouro e a química do verbo, de ouvir os ritmos, não lhe bastando já o silêncio anódino da leitura mental. A poesia tornou-se para ela um vício que não conseguia dominar, e por mais de uma vez se lembrou duma sua conhecida que fora despedida duma casa onde trabalhava porque na ausência dos patrões ia desbastando as bebidas da garrafeira até não ser capaz de se aguentar de pé. Também a poesia era agora para ela uma espécie de álcool forte e irrecusável.
O pior sucedeu quando certa manhã, regressando o professor mais cedo a casa, deu com o trabalho todo atrasado e a mulher-a-dias sentada na sua secretária a folhear os livros de poesia do seu estudo em preparação. Foi despedida, e aí está a injustiça cometida por aquele insensível professor.
Sim, injustiça e das maiores, porque tratando-se de um professor de literatura, era seu dever estimular, e não reprimir, o sonho poético da sua servidora. Coisas que sucedem quando o apego à poesia e às obras dos poetas é fruto da vaidade académica, do gozo de se saber admirado pelos artigos publicados em revistas da especialidade e de sentir o deslumbramento de colegas e alunos perante o fulgor do seu magistério. Para a mulher-a-dias a poesia era um deleite inútil, feito de satisfação interior, sem cálculo ou premeditação, por isso autêntico e puro como o musgo das pedras ou o vento que se mete pelas copas das árvores.
Tudo, ou quase tudo, foi tirado a esta mulher: o emprego, o amor, a felicidade duma família unida e equilibrada. Só não conseguiram tirar-lhe a capacidade de sonhar.
Uns tempos mais tarde, estando o professor de literatura a folhear um dos seus livros, viu sublinhados por traço alheio, num poema de Natália Correia, os seguintes versos:
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
Quedou-se pensativo por uns longos instantes, mas era tarde de mais para emendar o erro.
domingo, fevereiro 14, 2010
14 de Fevereiro, aquele dia
sábado, janeiro 16, 2010
"O MUNDO À MINHA PROCURA"

Ruben A. (1920-1975) deixou uma bela autobiografia em três volumes: O Mundo à Minha Procura. No final do capítulo III do primeiro volume, escreveu: Não sei se foi o Adolfo Casais Monteiro que um dia, na aula de Português, me pediu para explicar um trecho dos Lusíadas depois de ter lido o meu exercício sobre o assassínio de Inês de Castro. O autor começa por não saber, por não ter a certeza, mas a partir desta dúvida inicial tudo se passa como se Adolfo Casais Monteiro tivesse sido efectivamente o professor do jovem Ruben Andresen Leitão naquele liceu do Porto onde fez os estudos secundários. O poeta da presença surge como o único docente a reconhecer no estudante refractário à Matemática e ao Latim o espírito arguto e o sentido trágico da vida e do amor que o levava a eleger o episódio de Inês de Castro como a passagem capital do grande poema camoniano. E termina assim: Passados poucos meses, a liberdade mental de Adolfo Casais Monteiro meteu-o na cadeia. Apareceu, então, como professor de Português o animal que regia Latim e que a meu respeito tinha a mais fraca das opiniões.
Aqui está um caso em que é justo que nos perguntemos se o texto é o reflexo da vida do autor ou se não será ele mesmo a instância criadora dessa vida, efabulação e reinvenção do eu autobiográfico?
sexta-feira, janeiro 01, 2010
A NÃO-INSCRIÇÃO
A leitura que tenho feito de algumas partes do livro Portugal Hoje – O Medo de Existir, do filósofo José Gil, fez-me levar os conceitos de inscrição e não-inscrição para o caso da juventude dos nossos dias.
José Gil fala em não-inscrição como uma ausência de desejo no sentido do real, um não acontecer, que no caso vertente pode muito bem estender-se a um não fazer, ou a um deixar que os outros façam – quase sempre os pais.
Também já passei pela juventude, e esta inclinação para reflectir sobre a actual pode parecer uma vontade de tecer comparações, de dizer: hoje é assim, mas antigamente era diferente, para melhor. Não vou por aí! Acho até, em certo sentido, que os jovens dos nossos dias são mais sensatos, mais solidários e até mais honestos do que os que se descobriram nos anos de ouro da vida durante as décadas de sessenta e setenta do século passado. Em que medida o ficaram a dever a esses que os precederam, os seus educadores, é matéria que parece não oferecer grandes dúvidas, pois alguma marca há-de deixar a educação, para bem ou para mal, acreditando porém que apesar da instabilidade que nos últimos trinta anos tem caracterizado a instituição familiar, a educação que demos aos nossos filhos foi, sempre generalizando, melhor e mais completa do que a que recebemos dos nossos pais.
A falta de inscrição no real, a acomodação à sombra da família, prolongando os anos que antecedem a entrada no mercado de trabalho, é uma resultante das dificuldades duma economia que não é geradora do pleno emprego e que muitas vezes só tem para oferecer a precariedade, mas também a expressão duma falta de desejo, ou de vontade que alguma coisa aconteça.
Um amigo que é director duma empresa de formação profissional, falava-me há tempos dum seu colaborador, um jovem licenciado em sociologia que estava a finalizar um mestrado e era o mais dedicado do departamento em termos profissionais. E acrescentou a seguinte informação: tinha-lhe morrido o pai entre os dezassete e os dezoito anos, quando ele se preparava para entrar na universidade, e esse acontecimento dramático tinha acabado com os dias plácidos da sua juventude. – É isso, às vezes é preciso sofrer um profundo revés, passar por uma grande infelicidade como a perda de um pai, importante no plano afectivo e igualmente decisivo em termos de subsistência, para que haja uma possibilidade de inscrição, uma vontade de agarrar pelos cornos o corpulento boi da vida.
São também às vezes acontecimentos capitais como uma doença ou um acidente que podem levar à reflexão e ao amadurecimento da consciência. Pascal falava daquilo a que chamou le bon usage des maladies, ou seja, aproveitar a inacção própria da doença, esse tempo só aparentemente infértil, para um exercício de introspecção e de descoberta de si – uma ruptura, afinal, com a não-inscrição.
E é assim que a partir de José Gil se geraram estas reflexões modestas, sonolentas e feitas um pouco ao correr das teclas. Há os que por esta altura de passagem abrem garrafas de champanhe. Como apesar de tudo há que ter esperança, esta é a minha única homenagem ao ano-novo.
José Gil fala em não-inscrição como uma ausência de desejo no sentido do real, um não acontecer, que no caso vertente pode muito bem estender-se a um não fazer, ou a um deixar que os outros façam – quase sempre os pais.
Também já passei pela juventude, e esta inclinação para reflectir sobre a actual pode parecer uma vontade de tecer comparações, de dizer: hoje é assim, mas antigamente era diferente, para melhor. Não vou por aí! Acho até, em certo sentido, que os jovens dos nossos dias são mais sensatos, mais solidários e até mais honestos do que os que se descobriram nos anos de ouro da vida durante as décadas de sessenta e setenta do século passado. Em que medida o ficaram a dever a esses que os precederam, os seus educadores, é matéria que parece não oferecer grandes dúvidas, pois alguma marca há-de deixar a educação, para bem ou para mal, acreditando porém que apesar da instabilidade que nos últimos trinta anos tem caracterizado a instituição familiar, a educação que demos aos nossos filhos foi, sempre generalizando, melhor e mais completa do que a que recebemos dos nossos pais.
A falta de inscrição no real, a acomodação à sombra da família, prolongando os anos que antecedem a entrada no mercado de trabalho, é uma resultante das dificuldades duma economia que não é geradora do pleno emprego e que muitas vezes só tem para oferecer a precariedade, mas também a expressão duma falta de desejo, ou de vontade que alguma coisa aconteça.
Um amigo que é director duma empresa de formação profissional, falava-me há tempos dum seu colaborador, um jovem licenciado em sociologia que estava a finalizar um mestrado e era o mais dedicado do departamento em termos profissionais. E acrescentou a seguinte informação: tinha-lhe morrido o pai entre os dezassete e os dezoito anos, quando ele se preparava para entrar na universidade, e esse acontecimento dramático tinha acabado com os dias plácidos da sua juventude. – É isso, às vezes é preciso sofrer um profundo revés, passar por uma grande infelicidade como a perda de um pai, importante no plano afectivo e igualmente decisivo em termos de subsistência, para que haja uma possibilidade de inscrição, uma vontade de agarrar pelos cornos o corpulento boi da vida.
São também às vezes acontecimentos capitais como uma doença ou um acidente que podem levar à reflexão e ao amadurecimento da consciência. Pascal falava daquilo a que chamou le bon usage des maladies, ou seja, aproveitar a inacção própria da doença, esse tempo só aparentemente infértil, para um exercício de introspecção e de descoberta de si – uma ruptura, afinal, com a não-inscrição.
E é assim que a partir de José Gil se geraram estas reflexões modestas, sonolentas e feitas um pouco ao correr das teclas. Há os que por esta altura de passagem abrem garrafas de champanhe. Como apesar de tudo há que ter esperança, esta é a minha única homenagem ao ano-novo.
quarta-feira, dezembro 30, 2009
segunda-feira, dezembro 28, 2009
domingo, dezembro 27, 2009
sábado, dezembro 26, 2009
UMA HISTÓRIA PARA CRIANÇAS GRANDES

Às vezes é preciso uma infelicidade (como uma doença grave ou a perda dum grande amor), para que se compreenda o sentido da vida. Só depois da morte há lugar para a ressurreição, só o “fértil desespero” da provação redime e liberta.
Oito anos depois releio O Príncipe com Orelhas de Burro, a viagem humana para além do humano, a inquietação do espírito e da carne ou a busca duma perfeição que não é deste mundo.
Arroubos dum autor em estado místico, dirão. Talvez sim, ou nem por isso: talvez apenas a certeza do limite e a dolorosa vertigem do insondável.
Oito anos depois releio O Príncipe com Orelhas de Burro, a viagem humana para além do humano, a inquietação do espírito e da carne ou a busca duma perfeição que não é deste mundo.
Arroubos dum autor em estado místico, dirão. Talvez sim, ou nem por isso: talvez apenas a certeza do limite e a dolorosa vertigem do insondável.
À NOITE
Os pinheiros iluminavam-se por detrás dos vidros das varandas dos prédios. A rua enchia-se dum estrépito de água sob os pneus dos carros que passavam excedendo um pouco a velocidade permitida por lei. Uma azáfama de embrulhos e sacos de compras dobrava-se sob chapéus-de-chuva desfraldados ao vento. Os enfeites de algodão e papel de lustro coloriam as montras das lojas abertas na moldura da noite.
O poeta
cozeu castanhas, abriu uma garrafa de vinho, estava acompanhado duma multidão que brindava e ria.
Sentia-se________feliz.
O poeta
cozeu castanhas, abriu uma garrafa de vinho, estava acompanhado duma multidão que brindava e ria.
Sentia-se________feliz.
quinta-feira, dezembro 10, 2009
A CONFISSÃO DE LÚCIO

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
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