Agora que ela partira e só por raras
cartas recebia notícias suas, doía-lhe que nunca lhe falasse da begónia, a
planta que ambos criaram com um misto de carinho e sobressaltado
encanto. Não compreendia como se pudera apagar do passado o milagre daquele pequeno
ser que juntos viram crescer, ganhando o direito à vida, e que não raro os encheu de
cuidados e lhes tirou o sono.
Trouxeram-na para casa num Inverno
distante, como que adormecida, o pequeno vaso de plástico vestido de um jornal
velho, as folhas redondas e miúdas espreitando sobre as letras machucadas que
compunham notícias antigas, já sem préstimo.
Deixaram-na ao lado da televisão,
exposta às destemperadas radiações de telejornais e reality shows, e a frágil planta ressentiu-se. Tempos depois, os
caules que sustentavam as folhas vacilavam nas suas disposições orgânicas,
via-se que a pobre estava em sofrimento, e eles lançaram-se a pesquisar em
livros de botânica o remédio para o inesperado mal. Transferiram a planta para
um vaso de barro, adubaram e regaram, vigiaram os efeitos nocivos de ácaros e
fungos, e, como a Primavera tivesse então chegado, instalaram-na na varanda,
recebendo o calor renascente do novo ciclo cósmico. Salvou-se.
Pensavam na begónia como se de um
filha se tratasse. Amavam-na, falavam com ela mesmo durante aquelas fases em
que cada vez menos falavam entre si, e viam-na já como uma planta adulta, uma
árvore florida sobrepujando as diminutas proporções dos seus progenitores adoptivos.
Eram uns pais felizes.
Depois ela foi-se embora e levou a
begónia. E nunca mais lhe falou da planta, como se exclusivamente lhe
pertencesse e nada tivesse que fosse de outrem. Ele ainda insinuou, uma vez, na
correspondência que espaçadamente mantinham, que a filha era de ambos, que os
dois a tinham criado e protegido nos transes mais difíceis da sua lenta progressão
vital. Porém, as cartas que recebia continuavam a falar apenas de assuntos
práticos e tangíveis, como partilhas e outras disposições legais, não da begónia
que parecia nunca ter existido nas suas vidas.
Uma vez encheu-se de coragem e foi
espreitá-la, manhã cedo, para não ser surpreendido pela vizinhança, sob a nova
varanda em que vivia. Deu com uma planta alta, assim como uma mulher jovem e muito
senhora de si, mas fosse pela distância que ia do chão ao segundo andar, ou
talvez pela hora tão matinal em que só algumas plantas estão já completamente
acordadas, juraria que ela não o havia reconhecido. Estava rodeada de
companheiras, novas plantas cheias de cor, algumas em flor, que deviam encher-lhe os dias de juvenil satisfação. Queria lá ela saber daquele
senhor de quem nem sequer recordava o nome.
Isto foi o que sentiu, e por isso
logo se retirou, sem reparar que uma pequena folha, verde como só uma pequena folha
sabe ser, se desprendia do caule e caía, tocada por um vento leve, sobre a
calçada a que virava costas.
Seguiu o seu caminho, desolado e pensativo.
Talvez na próxima carta, se houvesse uma próxima carta, chegassem notícias daquela begónia que nunca deixaria de amar. E neste pensamento se alegrou a manhã, subitamente bela
como uma maçã mordida, um sonho na madrugada ou a memória feliz de um tempo antigo.
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