quarta-feira, agosto 24, 2011

MEMÓRIAS

As Pequenas Memórias de José Saramago, focando o período da infância e o início da adolescência, visam suprir a falta de um registo que os diários iniciados em 1993 (Cadernos de Lanzarote) dificilmente poderiam dar: o da origem humilde de que tanto se orgulhava, sentimento bem patente no discurso de Estocolmo perante a Academia Sueca (7 de Dezembro de 1998):
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcos de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia.
No entanto, é interessante verificar que alguns registos de As Pequenas Memórias apareçem já em Manual de Pintura e Caligrafia de 1977. Romance autobiográfico, então? Talvez não. Para um romance ser autobiográfico terá de haver uma clara identificação entre o protagonista e o autor empírico, o que parece não acontecer aqui. É verdade que há esses registos avulsos da infância de Saramago, é verdade que o autor deverá ter feito as peregrinações nele referidas por museus, monumentos e pinacotecas de Itália. Mas não chega. Manual de Pintura e Caligrafia, não obstante a deriva final em que surgem em cena o apodrecimento do regime marcelista e o movimento do 25 de Abril, é um ensaio em forma de ficção sobre a autobiografia, o auto-retrato e a posição do artista perante a obra de arte. Diz o narrador: Biografamos tudo. Às vezes, contamos certo, mas o acerto é muito maior quando inventamos. A invenção não pode ser confrontada com a realidade, logo, tem mais probabilidades de ser exacta.

1 comentário:

João António disse...

É a verdade literária (quanto mais mente mais acerta) a sobrepor-se à realidade que a vida (des)vela