O Outono entrou de carranca, chuvoso, grandes cordas de água que desciam do céu e abriam sulcos na terra ainda há pouco ressequida da estiagem. O rio corria grosso, estrepitante, cobrindo na enxurrada as fragas que lhe marcavam o leito, ameaçando despedaçar as margens. Os homens da lavoura e os pescadores passavam os dias na sociedade recreativa ou nas tabernas, enredados em jogos e conversas mornas, impedidos de se moverem sob a inclemência dos astros. Os que trabalhavam na fábrica de papel, debaixo de telha, lá iam de madrugada, cobertos de grandes capas de borracha, as molas travando-lhes as bocas das calças, atravessando os caminhos em bicicletas sonâmbulas, oscilantes, com os faróis tremeluzindo ténues incandescências de vaga-lumes.
Foi quando as condições meteorológicas melhoraram, naquele tempo a que chamam o Verão de S. Martinho, que a gravidez de Salomé se revelou como uma evidência clara. E então, como se algo de extraordinário se tivesse passado, toda a aldeia começou a falar do caso. Uma coisa daquelas parecia nunca ter sido vista: cinco anos de tentativas vãs, de desconcertos, e de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, despontavam as formas arredondadas do seu ventre maternal.
Um anjo apareceu em sonhos a Josué. Tinha o mesmo rosto, os mesmos anéis de cabelos de ouro daquele outro que figurava no quadro pendurado na parede de casa. Josué esperou dele uma revelação, uma palavra apaziguadora, mas os seus lábios permaneceram mudos e nenhuma voz perturbou a imponderabilidade do sonho. Poder-lhe-ia ter dito: “Josué, não tenhas medo do que vês no corpo de tua mulher, continua a recebê-la e a amá-la como esposa porque foi a tua semente que nela concebeu o fruto desejado”. Mas não. O anjo limitou-se a olhá-lo com um silêncio infinito, desafiante, onde se metiam todos os enigmas do mundo, todas as interrogações que a alma de um homem pode guardar. E ele acordou sobressaltado, com o coração a bater desordenadamente, o peito a doer-lhe, a cabeça pesada e um sabor azedo na boca.
Então decidiu falar com a mulher. Tinha de saber a verdade. A incerteza que o tomava raiava-lhe os olhos de sangue e abria-lhe as primeiras rugas na cara quando ainda não havia chegado aos trinta anos de idade. Mas no momento de descerrar os lábios, faltava-lhe a coragem. Ela fitava-o como se já conhecesse as palavras que ele lhe ia dizer, mas nenhum som lhe chegava vindo da sua boca. E viveu assim durante uma mão de dias e de noites, desesperado e ferido, incapaz de a enfrentar.
Um dia, foi ela que disse:
“Vou para casa de minha mãe, é melhor assim.”
Ele viu-a sair para a paragem da camioneta com um saco de roupa à cabeça, o guarda-chuva na mão, uma pequena mala preta enfiada no braço. E era como se um pedaço da sua carne se lhe soltasse do corpo, como se, de repente, lhe tivessem amputado um membro e ficasse aleijado para toda a vida. Por mais que tivesse desejado não foi capaz de chorar. Ficou a vê-la seguir no seu passo ágil e determinado, sem nunca olhar para trás, até dobrar a esquina da rua, até a perder por inteiro. Então entrou em casa e tirou da parede o quadro do anjo, extraiu com um martelo de orelhas o prego de aço que o sustinha. Depois esmigalhou o quadro com uma raiva serena, não deixando pedaço de metal, cartão ou vidro que pudesse ser aproveitado. Josué não podia saber que com esse mesmo martelo destruiria, trinta e tal anos mais tarde, em outro acesso de desespero, o seu aparelho de televisão. De resto, nem imaginava que pudesse vir a ter, um dia, um aparelho de televisão, e tão pouco que uma ferramenta tosca, de confecção quase artesanal, lograsse obrar tais destruições com tão amplo arco de tempo metido pelo meio.
Veio depois o Inverno e estendeu sobre o rosário dos dias uma atmosfera incrivelmente fria e seca. O rio, prematuramente torrencial, seguia agora brando, tropeçando nas pedras que se atravessavam na corrente, e os homens podiam montar as redes nos baixios e capturar grandes quantidades de pescado. De dentro das tabernas e das casas da aldeia saía o aroma álacre das fritadas de peixe, os subtis eflúvios dos molhos de escabeche: vinagre, cebola e alho, folhas de louro e pimenta. Salomé sabia cozinhar bem, pensava Josué enquanto seguia para casa com o cesto e os apetrechos da pesca. Como parecia tarefa fácil fazer uma fritura de peixe! No entanto havia que amanhá-lo, deitar-lhe o sal certo, cortá-lo em finas postas, cobri-lo de farinha. É também por coisas como estas que faz muita falta em casa uma mulher.
Estava agora entregue a si próprio. Tratava da sua roupa, comia sozinho as refeições que confeccionava. À noite, na cama de casal, alvoraçava-se a carne jovem, carente de fêmea e satisfação. Era então que Onan o visitava, uma assombração medonha e doce que saía das profundezas do Génesis para lhe serenar o fogo do corpo. Mas ele não tinha nenhuma mulher ao lado, estava completamente só naquela cama onde durante cinco anos dormira Salomé. Aparecia o espectro bíblico, sonegador de sémen, a quem durante cinco longos anos nunca deixara de o dar à sua esposa. Só que, em verdade, era como se o deitasse fora, não produzindo nenhum efeito naquelas entranhas entorpecidas por mais regado que fosse o vaso, por maior desejo com que o fizesse.
E assim se ia cumprindo a vida de Josué. Para grande espanto de todos, um dia, a mesma camioneta que levou Salomé numa manhã húmida de Outono, trouxe-a de novo quase um ano depois. Entrou em casa como se nunca dela tivesse saído e disse simplesmente:
“O menino morreu. Achei melhor voltar.”
Ele viu-a desfazer a trouxa da roupa e arrumar as peças nas gavetas com gestos naturais e precisos. Reparou no seu corpo que, apesar do sofrimento marcado no rosto, irradiava um inquietante perfume de sensualidade. Não foi capaz de pronunciar uma só palavra. Saiu para a rua e, como se não fosse senhor de vontade própria, deixou-se ficar, apático, enquanto os vizinhos iam chegando em busca de novidades. Bebia o ar quente da tarde, talvez chorasse.
Foi quando as condições meteorológicas melhoraram, naquele tempo a que chamam o Verão de S. Martinho, que a gravidez de Salomé se revelou como uma evidência clara. E então, como se algo de extraordinário se tivesse passado, toda a aldeia começou a falar do caso. Uma coisa daquelas parecia nunca ter sido vista: cinco anos de tentativas vãs, de desconcertos, e de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, despontavam as formas arredondadas do seu ventre maternal.
Um anjo apareceu em sonhos a Josué. Tinha o mesmo rosto, os mesmos anéis de cabelos de ouro daquele outro que figurava no quadro pendurado na parede de casa. Josué esperou dele uma revelação, uma palavra apaziguadora, mas os seus lábios permaneceram mudos e nenhuma voz perturbou a imponderabilidade do sonho. Poder-lhe-ia ter dito: “Josué, não tenhas medo do que vês no corpo de tua mulher, continua a recebê-la e a amá-la como esposa porque foi a tua semente que nela concebeu o fruto desejado”. Mas não. O anjo limitou-se a olhá-lo com um silêncio infinito, desafiante, onde se metiam todos os enigmas do mundo, todas as interrogações que a alma de um homem pode guardar. E ele acordou sobressaltado, com o coração a bater desordenadamente, o peito a doer-lhe, a cabeça pesada e um sabor azedo na boca.
Então decidiu falar com a mulher. Tinha de saber a verdade. A incerteza que o tomava raiava-lhe os olhos de sangue e abria-lhe as primeiras rugas na cara quando ainda não havia chegado aos trinta anos de idade. Mas no momento de descerrar os lábios, faltava-lhe a coragem. Ela fitava-o como se já conhecesse as palavras que ele lhe ia dizer, mas nenhum som lhe chegava vindo da sua boca. E viveu assim durante uma mão de dias e de noites, desesperado e ferido, incapaz de a enfrentar.
Um dia, foi ela que disse:
“Vou para casa de minha mãe, é melhor assim.”
Ele viu-a sair para a paragem da camioneta com um saco de roupa à cabeça, o guarda-chuva na mão, uma pequena mala preta enfiada no braço. E era como se um pedaço da sua carne se lhe soltasse do corpo, como se, de repente, lhe tivessem amputado um membro e ficasse aleijado para toda a vida. Por mais que tivesse desejado não foi capaz de chorar. Ficou a vê-la seguir no seu passo ágil e determinado, sem nunca olhar para trás, até dobrar a esquina da rua, até a perder por inteiro. Então entrou em casa e tirou da parede o quadro do anjo, extraiu com um martelo de orelhas o prego de aço que o sustinha. Depois esmigalhou o quadro com uma raiva serena, não deixando pedaço de metal, cartão ou vidro que pudesse ser aproveitado. Josué não podia saber que com esse mesmo martelo destruiria, trinta e tal anos mais tarde, em outro acesso de desespero, o seu aparelho de televisão. De resto, nem imaginava que pudesse vir a ter, um dia, um aparelho de televisão, e tão pouco que uma ferramenta tosca, de confecção quase artesanal, lograsse obrar tais destruições com tão amplo arco de tempo metido pelo meio.
Veio depois o Inverno e estendeu sobre o rosário dos dias uma atmosfera incrivelmente fria e seca. O rio, prematuramente torrencial, seguia agora brando, tropeçando nas pedras que se atravessavam na corrente, e os homens podiam montar as redes nos baixios e capturar grandes quantidades de pescado. De dentro das tabernas e das casas da aldeia saía o aroma álacre das fritadas de peixe, os subtis eflúvios dos molhos de escabeche: vinagre, cebola e alho, folhas de louro e pimenta. Salomé sabia cozinhar bem, pensava Josué enquanto seguia para casa com o cesto e os apetrechos da pesca. Como parecia tarefa fácil fazer uma fritura de peixe! No entanto havia que amanhá-lo, deitar-lhe o sal certo, cortá-lo em finas postas, cobri-lo de farinha. É também por coisas como estas que faz muita falta em casa uma mulher.
Estava agora entregue a si próprio. Tratava da sua roupa, comia sozinho as refeições que confeccionava. À noite, na cama de casal, alvoraçava-se a carne jovem, carente de fêmea e satisfação. Era então que Onan o visitava, uma assombração medonha e doce que saía das profundezas do Génesis para lhe serenar o fogo do corpo. Mas ele não tinha nenhuma mulher ao lado, estava completamente só naquela cama onde durante cinco anos dormira Salomé. Aparecia o espectro bíblico, sonegador de sémen, a quem durante cinco longos anos nunca deixara de o dar à sua esposa. Só que, em verdade, era como se o deitasse fora, não produzindo nenhum efeito naquelas entranhas entorpecidas por mais regado que fosse o vaso, por maior desejo com que o fizesse.
E assim se ia cumprindo a vida de Josué. Para grande espanto de todos, um dia, a mesma camioneta que levou Salomé numa manhã húmida de Outono, trouxe-a de novo quase um ano depois. Entrou em casa como se nunca dela tivesse saído e disse simplesmente:
“O menino morreu. Achei melhor voltar.”
Ele viu-a desfazer a trouxa da roupa e arrumar as peças nas gavetas com gestos naturais e precisos. Reparou no seu corpo que, apesar do sofrimento marcado no rosto, irradiava um inquietante perfume de sensualidade. Não foi capaz de pronunciar uma só palavra. Saiu para a rua e, como se não fosse senhor de vontade própria, deixou-se ficar, apático, enquanto os vizinhos iam chegando em busca de novidades. Bebia o ar quente da tarde, talvez chorasse.
D.E.
2 comentários:
O interesse intrigante está instalado. Josué/Salomé o eterno par da Criação com os seus sortilégios de aproximação e afastamento, encontros e desencontros.
Estamos a chegar ao sete!!
oi:) belo blog:)
achas q podes colocar uma noticia a convidar os teus leitores para o lançamento do meu livro de poesia?
Tem uma capa gira:
podes ver aqui:
www.tiagonene.pt.vu (podes colocar tb a capa)
E, claro, espero por ti lá:)
Tiago
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