segunda-feira, outubro 16, 2006

UM ALEPH NO SÓTÃO

Um Aleph é, segundo Borges, além da primeira letra do alfabeto da língua sagrada, um ponto do espaço onde estão contidos todos os pontos, um lugar onde se concentram todos os lugares do mundo, vistos na multiplicidade dos seus infinitos ângulos. Quem descobrir um Aleph terá acesso a tudo o que existe e não existe, será possuidor da verdade sobre a essência das coisas, verá cada pessoa por fora e por dentro, conhecerá todos os mares e todos os rios, os desertos e os vales férteis de todo o planeta.
Isto dizia-me, num dos habituais serões em sua casa, o meu amigo Sousa, enquanto ia fumando o cachimbo e bebendo generosos tragos de brandy Miguel Torres, um néctar destilado e engarrafado em Vilafranca del Penedés, Catalunha, que lhe chegava com regularidade, em caixas de seis unidades, através dos seus delegados comerciais de Barcelona.
O meu amigo era, além de bom anfitrião, um ávido leitor de Borges, e estava sempre disposto a inquietar a indigência das minhas aptidões especulativas com divagações do género das que o poeta argentino faz no Argumentum Ornithologicum ou em enigmáticas narrativas como O jardim dos caminhos que se bifurcam ou A biblioteca de Babel.
Devo dizer que apesar da minha velha amizade com o Sousa, vinda do tempo em que fui contabilista na editora de publicações esotéricas que ele dirigia, era por causa de Ester que frequentava os seus serões e me conformava a suportar o aborrecimento da suas invulgares conversas.
Ester era casada com o meu amigo e, se for perdoável a hipérbole, direi que podíamos ler mais nos seus olhos do que em todos os livros da vasta biblioteca de sua casa.
A sala onde nos reuníamos naqueles serões estava toda decorada com espelhos. Havia a um canto um tigre de loiça em tamanho natural, comprado em Moçambique, num bazar de um comerciante paquistanês, por um escritor que vira uma obra sua editada pelo Sousa. Um tabuleiro de xadrez com as peças em marfim repousava sobre uma mesa de jogo. E havia ainda, numa parede, o elemento decorativo de que eu mais gostava: uma tapeçaria de arte moderna, em tons de azul escuro e vermelho, sugerindo o inquietante perfil de um labirinto. Era junto de essa tapeçaria que Ester se costumava sentar. Eu ficava a olhar não sei bem se a obra de arte se a arte do corpo de Ester, a ler no livro aberto dos seus olhos, até o Sousa interromper o deslumbramento com referências a Teseu e Ariadne, a Dédalo e ao insaciável Minotauro, percorrendo a alameda dos mitos até chegar à família dos Palântidas, a Hipólito e a Fedra.
Imaginem o que é descobrirmos um Aleph, insistia ele, podermos saber de tudo e de todos, darmos conta do verdadeiro e do falso, conhecermos os esgares ínfimos da mentira, os rostos da traição… E eu arrepiava-me, temendo que algum inopinado Aleph pudesse alguma vez denunciar a minha indisfarçável atracção pelo corpo de Ester, ou até os pensamentos lúbricos que me corroíam a mente quando me punha a imaginá-la nua e a fazer amor, tocando a felicidade de estrepitosos orgasmos. Mas logo abjurava a irracionalidade dos meus temores, incomodado por me deixar sugestionar pela conversa do Sousa.
Ester atravessava os serões em silêncio. Apenas os olhos falavam. Não sei se leria nos meus.
Mas houve uma noite em que o meu amigo Sousa carregou de mais os balões de brandy. Como sempre, falou de Borges e de mitologia, mas a voz foi-se-lhe entaramelando, e quando se preparava para comparar a obra The God of the Labyrinth, de Herbert Quain, com os romances policiais de Agatha Christie, começou a sentir grandes dificuldades de expressão, não atinando com as palavras, deixando as frases a meio. Um pouco depois sobreveio-lhe um torpor fatal que o lançou nos braços de Morfeu. Ester e eu levámo-lo para o quarto, despimo-lo, metemo-lo entre lençóis.
Foi assim que fiquei sozinho com Ester. Apenas os espelhos, devassos, deitavam sobre nós os seus grandes olhos de luz. Ficámos sentados, ao lado um do outro, no sofá fronteiro à tapeçaria do labirinto. Nunca nos tínhamos habituado a falar, sempre nos limitáramos a ser ouvintes do Sousa, daí a dificuldade em iniciarmos uma conversa. Falaram os olhos, enquanto o Sousa ressonava no quarto. Os joelhos e os braços nus de Ester enchiam de reflexos o cristal dos espelhos. E havia o labirinto, qual o caminho que ia da sombra à claridade?
Ester parecia-me nessa noite mais bela e sensual, mas isso devia ser por a ter ali ao pé de mim, sozinha, disponível, afinal tão frágil.
Foi ela que estendeu o fio no chão, bastou segui-lo, no labirinto das emoções, para encontrar a luz. Depois já não soubemos nada de nós nem de ninguém, ia alta a madrugada quando a deixei.
O meu amigo Sousa telefonou-me uns dias mais tarde. Perguntei por Ester. Disse-me que tinha saído para casa da mãe, por uns tempos ou para o tempo todo da vida. Estranhei o tom da conversa. Mas o mais surpreendente foi a comunicação que me fez, com solenidade, de ter descoberto um Aleph no sótão de sua casa.
Imagina, dizia ele, um ponto que contem todos os pontos, onde podemos ver e saber de tudo. E fazia questão que fosse a sua casa, nessa noite, para subir ao sótão e no ângulo próprio certificar-me do seu grande achado.
Não sei se alguma vez cheguei a acreditar na possibilidade de existir um Aleph no sótão da casa do Sousa ou até de poder ser real essa alegada fantasia de Borges. Sou um céptico por natureza e não confundo literatura com realidade. Mas pelo sim pelo não, resolvi não ir. Aliás, nunca mais voltei a encontrar-me com o meu amigo. Mesmo que o enigmático ponto não passasse de uma invenção sua e não existisse portanto qualquer possibilidade de, por essa via, se vir a descobrir o que se passara entre mim e Ester, creio que o Sousa teria lido tudo com facilidade nos meus olhos. Como os olhos de Ester e de todos os puros, também os meus são um livro aberto.

D.E.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom, D.E.

Também eu tenho um post dedicado ao "Aleph" de Borges, mas não me atrevi a construir, como tu, uma história paralela em que o "eu" do texto é o protagonista, um potencial "eu", tal como o de Borges, iniciável na descoberta de um Aleph no sótão do Sousa, como o próprio Borges conta ter sido o seu na cave de Carlos Argentino; um protagonista seduzido pela beleza de Ester, mulher de Sousa, em vez de um fervoroso apaixonado pela memória de uma Beatriz que, tendo falecido, terá levado consigo, para sempre, o coração daquele que, contrariamente ao teu, não resistiu a espreitar o Aleph...

Um beijo.

Manuel Nunes disse...

Maria:

Agradeço o precioso comentário.
É de facto uma história paralela, uma tentativa de diálogo com o grande Borges e uma homenagem. Aqui, peguei no "Aleph", mas tenho outro post onde agarrei os poemas que ele escreveu sobre Camões e os seus antepassados portugueses de Torre de Moncorvo.
Os espelhos, o xadrez, o labirinto e o tigre também não estão aqui por acaso...

Aparece sempre.

Beijos,

Manuel

Anónimo disse...

Caro D.E.,

Dá para perceber que nada do que está no teu texto é por acaso. Parabéns, mais uma vez, pelo excelente escrito.

Beijo.