domingo, junho 07, 2015

NOITE DA LITERATURA EUROPEIA

«A História é a poesia dos vencedores / A Poesia é a história dos vencidos
--- Versos finais dum poema do poeta romeno Ioan Es. Pop, lido por Mónica Calle na Biblioteca da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (as duas primeiras fotografias).

segunda-feira, maio 18, 2015

POEMA DE AMOR A PARTIR DE WATTEAU

WATTEAU, A loja de Gersaint (1720-21)

Não quero saber de nenhum dos quadros
da loja, nem mesmo desse do Rei Sol
que o moço embala, com esmeros profissionais,
para um cliente importante. Basta-me a luz

do sapato ante o degrau, o jeito da perna
que precede o instante da levitação do corpo,
o volume das ancas e o mais que se não vê, mas
imagino. O resto, que não é pouco, só o direi a ti. 

 18/5/2015


domingo, maio 17, 2015

HISTÓRIAS DE AMORES E DESAMORES - A RAPARIGA DA BLUSA ROMENA

Conheci primeiro Odette de Crécy, há tanto tempo que não consigo dizer o ano ou o mês em que tal sucedeu. Vinha vestida, pareceu-me, à moda da Belle Époque, e foi como se assistisse ao nascimento de Vénus, adulta e nua como naquele quadro célebre de Botticelli. Depois chegou Natasha Rostova e só mais tarde, muito mais tarde, Elizabeth Bennet e Maria Monforte. Com esta tive uma relação duradoura, feita de olhares lânguidos, sempre à espera de ver aparecer um príncipe italiano que ma roubasse.
Frequentei o café durante muito tempo. Ali sentado na mesa do canto, fiz mais viagens que o Gulliver de Swift, conheci mais mulheres que o burlador de Sevilha. A verdade, porém, é que nunca chegava à fala com elas. Por timidez ou qualquer outra razão mais ou menos estúpida, não me sentia à vontade com o sexo oposto.  Elas entravam, eu olhava-as, dava-lhes um nome de ressonâncias artísticas ou literárias, e isso satisfazia-me. Foi assim durante muitos anos, eu era (e sou ainda, creio) uma espécie de onanista da imaginação.
O caso mudou de figura com uma rapariga que passou a estudar no café aí por Março ou Abril do ano passado. Era época de frequências. Trazia os seus livros e cadernos, sentava-se na mesa ao lado da minha e vestia sempre a mesma blusa. Creio que teria várias peças semelhantes, variando apenas em um ou outro detalhe do bordado, porque as blusas estavam sempre impecavelmente limpas e, parecendo a mesma, se calhar nenhuma seria igual à anterior.
O seu nome descobri-o com facilidade, estava escrito na capa dum caderno, sendo esse o dado que, para mim, a tornou diferente das outras. Eu sabia-lhe o nome, não tinha de o inventar.
Um dia dirigi-lhe a palavra. Perguntei-lhe que tal iam os estudos – que, pelos livros que via sobre a mesa, eram de História de Arte –, que não queria atrapalhá-la, mas que lhe desejava sorte e sucesso nas avaliações.
A rapariga, que se chamava Sandra, deve ter achado a minha conversa fora do comum. Olhou-me com um ar de vigilante de museu, igual ao que se tem quando um visitante se aproxima muito de uma obra exposta, ameaçando tocar-lhe, e agradeceu delicadamente. Eu compreendera que a minha abordagem não tinha sido perfeita, talvez pouco natural e com um palavreado fora de moda, mas fiquei satisfeito por ter sido um primeiro esforço de comunicação.  
Passei a falar-lhe sempre que se sentava na mesa ao lado da minha. Para a impressionar, referia-lhe Courbet e o Enterro em Ornans, Watteau e A Loja de Gersaint, grandes artistas e grandes obras, arengas que ela acolhia conformadamente, suspendendo o trabalho à espera que eu acabasse para poder continuar.
Andei nisto uns dias até que a rapariga passou a sentar-se em mesas cada vez mais afastadas da minha, lá para o fundo do café, atrás de uma coluna que nem dava para a ver. A verdade é que a minha conversa não atava nem desatava. Era, reconheço-o agora, do tipo “nem o pai morre nem a gente almoça”. As mulheres – eu não sabia, mas disse-me um antigo colega com quem agora costumo encontrar-me –, gostam é de homens do tipo “tiro e queda”, sem papas na língua, “Queres ou não queres? É em minha casa ou na tua?”
Graças às lições deste meu antigo colega, aprendi bastante. Fiquei mais preparado para enfrentar os desafios do mundo, não vivendo tanto da imaginação e dos seus floreados.
Esta semana, ao fim de algum tempo, voltei ao café. Sentei-me na mesa do costume e, coisa que já não esperava, tive uma recaída. Bebia uma água com gás quando vi entrar uma mulher que de imediato associei à Victorine Meurent do Almoço sobre a Relva: o mesmo cabelo, o mesmo sorriso entre o cândido e o perverso, as pernas e os seios igualmente desafiantes. Ainda aturdido, deitei os olhos para as mesas do fundo e lá estava, numa delas, a estudante de História de Arte. Só que já não era a Sandra que eu conhecera e com quem chegara a falar, mas a jovem mulher pintada por Matisse com uma blusa romena, a mesma que Sandra sempre trazia como se não tivesse mais nada para vestir.
Já decidi: não voltarei ao café tão cedo. O meu antigo colega apresentou-me uma jovem que trabalha como auxiliar de cozinha num restaurante do bairro. Talvez com ela, na simplicidade das nossas conversas, eu consiga esquecer a blusa romena, as outras mulheres, e acalmar o tormento da minha imaginação.
Auxiliar de cozinha? Mas como se chama  a auxiliar da cozinheira Françoise no romance Do Lado de Swann?

quarta-feira, maio 13, 2015

HISTÓRIAS DE AMORES E DESAMORES - A MINHA ANTIGA RAPARIGA


Não é que eu não gostasse das pernas dela, ou dos olhos, ou dos dentinhos ralos com que me mordia as orelhas quando repousávamos depois das cansativas sessões de cama.  A bem dizer, eu gostava da maior parte dos seus atributos físicos: os seios pequenos como limões; o seu ventre liso lavrado por uma tatuagem esquálida; os dedos finos, de unhas brilhantes sem pintura; as mãos que sabiam agarrar e se faziam sentir.
A minha rapariga era bonita e agradável, até sensual, mas uma coisa me tirava toda a alegria da relação: a sua voz.
A princípio não me dei conta disso. Embora nos amássemos muito, falávamos pouco.  A minha rapariga era operária de fábrica, não sabia conversar de política, nem de economia ou literatura, e eu não me interessava pela banalidade do seu quotidiano fabril. O que falávamos, alto e bom som, era a linguagem dos corpos e, mesmo assim, ela mais do que eu, pois para ser inteiramente franco, devo dizer que, como homem, sou um bocado fraco na cama.
A voz da minha rapariga, voltemos ao assunto, era de uma rouquidão que fazia lembrar um produto transgénico obtido por mistura das vozes distorcidas de Janis Joplin e Bruce Springsteen. Não me perguntem o que quero dizer com isto que não sei explicar. Era de uma rouquidão amoral, obscena e ao mesmo tempo aterrorizante. Ela não podia pronunciar nenhuma dessas palavras ou locuções que costumam sair da boca das mulheres quando estão no melhor da festa que logo eu me atrofiava todo e já não conseguia chegar a lado nenhum. As vergonhas por que então passei!
O caso pareceu-me de certa gravidade e, sem ela saber, consultei um curandeiro que me receitou pau-de-cabinda e algodão para os ouvidos. O homem interessou-se pelo problema da minha rapariga (ou seria meu?) e disse-me que lhe recomendasse uma infusão de coentros e flor de laranjeira para gargarejar duas vezes ao dia. Que a rouquidão passaria.
Fui para ela mais animado e toquei-lhe no assunto. O que eu fui fazer! A minha rapariga, até aí tão submissa, tão amiga, levantou-se alterada e começou a dizer que já desconfiava que eu não era homem para ela, que não viesse com desculpas para a minha imperícia e frustrações sexuais, que eu tinha a cabeça cheia de romances e outras porcarias dos livros e da Internet e que o que devia fazer era vergar a mola como ela, e não andar o dia inteiro a puxar o lustro às cadeiras das bibliotecas, a escrevinhar coisas parvas, que ela já tinha lido uma vez e não achara ponta por onde se pudesse pegar. E, estocada final, que já lhe dissera um colega do sindicato, amigo do peito, que a nossa relação era de um interclassismo estéril, antinatural, coisa que ela não percebeu mas que lhe pareceu fazer sentido.
Até me custa a continuar a narração. Ainda andei uns dias, tem-te não caias, a ver se compunha o ramalhete, a mandar-lhe flores e versos lúbricos, mas a minha rapariga não voltou a ser mesma. Trocou-me ao fim de umas semanas por um brasileiro bem apessoado que fazia entregas de pizzas numa loja do bairro.
Hoje, na mais completa solidão, não deixo de pensar na importância errada que dei à voz daquela que foi a minha rapariga, a forma como essa obsessão arruinou a nossa relação amorosa. Teria ela, de facto, essa voz rouca, indefinível e tormentosa, ou não teria sido tudo uma falsa percepção, uma forma inconsciente de eu mascarar a minha incapacidade para sentir e amar de forma plena?
Ontem mesmo, e daí a razão deste escrito, encontrei a minha antiga rapariga na mercearia da rua a comprar uns morangos para a sobremesa do jantar. Talvez se preparasse para uma refeição à luz das velas com o citado brasileiro entregador de pizzas. Trocámos umas breves palavras e, coisa estranha, não lhe senti a rouquidão da voz, mas, pelo contrário, tudo o que lhe saía da boca eram palavras límpidas e harmoniosas, boas de ouvir e tomar.  Verti uma lágrima e, uma vez mais na vida, tive pena de ter perdido um amor.

quinta-feira, abril 30, 2015

ÁLVARO DE CAMPOS E FERREIRA DE CASTRO - A VERTIGEM FEBRIL DAS MÁQUINAS

Dois textos e temáticas afins:

1/. A "Ode Triunfal" de ÁLVARO DE CAMPOS
 
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r  eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo quanto eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(…)

2/. A peregrina do mundo novo, novela futurista de FERREIRA DE CASTRO publicada na revista ABC entre 13 de Agosto a 31 de Dezembro de 1925. Ilustrações de Emérico Nunes e Roberto Nobre.


domingo, abril 12, 2015

ESTAR OU NÃO ESTAR NUMA RELAÇÃO


As ligações afectivas mais ou menos duradouras são por vezes designadas, nas redes sociais da Internet, por esta expressão singular: “estar numa relação”. A princípio era o precariado juvenil que se servia dela, mas ultimamente tem vindo a estender-se a outros estratos etários, alguns de pessoas de razoável nível social e cultural.
Um professor universitário apresenta no seu perfil da rede social facebook um dado curioso: «Numa relação desde Janeiro de 2015».
“Estar” numa relação não é o mesmo que “ter” uma relação, porque a diferença entre ter e estar exprime um sinal de precariedade característico da sociedade moderna em que vivemos, uma sociedade de “corrosão do carácter”, como foi assinalado pelo sociólogo Richard Sennett.
Quando “estiver” numa nova relação, o dito professor indicará provavelmente “desde Agosto de 2015” ou “desde Fevereiro de 2016”, fixando assim o curso temporal e a transitoriedade dos seus afectos. Hoje, e cada vez mais, o que parece corresponder às aspirações de muitos não são  relações que se desejem duradouramente boas, mas, simplesmente, que sejam boas enquanto durarem.
“Estar numa relação” é uma coisa tão moderna que não nos vemos a dizer de Franz Kafka que esteve numa relação com Felice Bauer ou Milena Jesenská. E o mesmo de Garrett com a Viscondessa da Luz.
“Estar numa relação” é, portanto, matéria de Sandras Vanessas e Alexes Romeus, miudagem dos nossos dias, mas também de alguns senhores e senhoras com nomes antigos e idades para serem vovós.
Cá por mim, que sou mais antigo que moderno, ainda vou preferindo o “ter” ao “estar”. Mas isso,  dirão os meus amigos e eu humildemente aceito, são manias de quem quer ser diferente e, afinal, não deixa de ser igual aos demais.  

domingo, abril 05, 2015

DE EGITANIA À PONTE ROMANA DE ALCÁNTARA

Egitania foi o nome dado pelos visigodos a Civitas Igaeditanorum, hoje Idanha-a-Velha. A história da cidade encontra-se ligada à ponte romana de Alcántara (século II), pois como consta de inscrição colocada no seu arco central, os igaeditani contribuíram em dinheiro, como outros povos da Lusitânia, para a realização da obra. (Ver JORGE DE ALARCÃO, O Domínio Romano em Portugal). Fotos de 2/4/2015.

domingo, março 01, 2015

METRO DO PORTO, LINHA B


De Vila do Conde à Póvoa de Varzim
vão três estações de metro: Alto de Pega,
Portas Fronhas e São Brás. O comboiozinho
amareleja sobre carris cansados e o mar,
de rebentações lúbricas, pressente-se
para lá das casas. E o amor, quem pressente
o amor?, pergunto retro-retoricamente.
Então oiço uma voz de dentro: – Cala-te mas é
ó incontinente das paixões palavrosas!
Guarda o caderno e o lápis e não sejas parvo
que chegado és à estação terminal.

27/2/2015
 

terça-feira, fevereiro 24, 2015

XANADU DO AMOR (7)

Fragmento duma carta captado pela mente de Mandrake:
« Nunca me deste um sinal, nunca percebi o que querias de mim. Aprecio mais os gestos do que as palavras, um toque de mãos pode ser melhor que uma declaração de amor, o movimento do corpo é mais eloquente do que um discurso. E assim ficámos no meio termo do encantamento possível. Bem vistas as coisas, acho que pertencemos a mundos diferentes: nenhuma ponte, nenhum caminho, apenas o vento que vai de um para o outro...»

RESPEITINHO É QUE É PRECISO (verso de Alexandre O´Neill)

Por favor, a Comissão Europeia que faça chegar rapidamente ao gabinete da ministra Maria Luís a lista das reformas propostas pelos gregos. E não se esqueça de esclarecer a questão dos procedimentos. Felizmente, temos uma ministra que pensa pela sua cabeça, não pela do senhor Wolfgang Shaüble... :)
 

quinta-feira, fevereiro 12, 2015

SONETO PARA UMA CORÇA

Foto: Kültür Tava
 
És uma corça roída de cio ciúme. Cicio
ternos bramidos enquanto roço a galhada
pelo teu focinho húmido e, mesmo assim,
achas que não te amo.
Espanta o pássaro que te adorna o flanco
– melancólica intrusão visual –
e abandona-te, meu bicho,
à sombra lume das araucárias.
(Este Inverno é como se fosse a Primavera.)
Sente o perfume dos líquenes, o calor
do húmus que sobe erecto da terra
e deixa manar a seiva que há em ti.
Assim, até que as folhas tremam, como asas
de borboletas cegas de encontro à luz.


2/2/2015

sexta-feira, janeiro 30, 2015

XANADU DO AMOR (6)

Mandrake fumava sob a macieira de Cockaigne plantada no seu jardim de Xanadu.
Pensava: – Ela dizia o que não sentia ou exactamente o seu contrário… Fazia-se forte para não ceder aos sentimentos, confiante de uma impassibilidade que não era sua… E ele acreditava no que ela dizia, levava-a a sério, era aliás a única pessoa que a levava a sério… Ele não avançava por temor de ser rejeitado, enquanto ela esperava pelos seus avanços… Mas como podia ele avançar por caminhos que ela própria tornara ínvios?
“Há fogos que se devoram a si mesmos”, disse Mandrake para ninguém.
Pensou: – O amor deveria ser simples como uma árvore ou uma pedra.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

PORQUE ESPERASTE

Foto Kültür Tava 
Porque esperaste, ciente, a pele da minha mão?
-- JORGE DE SENA, "Fidelidade" (1958)


terça-feira, janeiro 27, 2015

A MEU FAVOR

Foto de OLAF MARTENS

A meu favor / Tenho o verde secreto dos teus olhos / Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor / O tapete que vai partir para o infinito / Esta noite ou uma noite qualquer // A meu favor / As paredes que insultam devagar / Certo refúgio acima do murmúrio / Que da vida corrente teime em vir / O barco escondido pela folhagem / O jardim onde a aventura recomeça.
-- ALEXANDRE O' NEILL, "No Reino da Dinamarca"
 

XANADU DO AMOR (5)


“Lotário”, disse Mandrake, “afinal nada é como parece”.
O africano distendeu os bíceps como se tal fosse imperativo para ouvir melhor. Veio-lhe um cheiro a terra e a embondeiros vermelhos, um leão rugiu-lhe numa dobra da alma, a gazela saltou em fuga, o caudal dum rio barrento bateu-lhe nas têmporas.
Nada é como parece, anuiu em pensamento, e foi como se sentisse a derrota de tudo o que abandonara: o seu povo, aquela que poderia ter sido a sua rainha, as noites de luar sentidas de paliçadas de sonho quando os pássaros nocturnos rasgam de luz o silêncio do tempo.
“Estão ambos apaixonados, só que é uma paixão sem saída”, tornou Mandrake. Lotário, porém, já não o ouvia.


domingo, janeiro 25, 2015

XANADU DO AMOR (4)


Mandrake teletransportou-se ao jardim perfumado onde ele e ela passeavam. A noite crescia de eflúvios e estrelas silentes. Quem visse de longe, diria que iam de mãos dadas, o que de facto não acontecia, pois só a proximidade dos corpos deixava essa ideia enganadora.
A poderosa mente do mago escrutinou a mente de cada um deles.
 

quarta-feira, janeiro 21, 2015

XANADU DO AMOR (3)


“Ela dá-lhe sinais contraditórios, com avanços e recuos que minam a confiança da progressão amorosa. É como se quisesse prendê-lo, sem desejar entregar-se. As mulheres…”
“Hum…”, nasalou Lotário, e uma dúvida salpicou de sombra a pele de leopardo que lhe cobria o tronco.
“Quando se encontram, ela tem sempre pressa em partir, como se cedo se fartasse da companhia ou tivesse alguém à sua espera. Ele teme-lhe as astúcias, o bate e foge com que o enleia.”
“Ele é um homem bom”, aduziu o africano.
“De bons homens está o mundo cheio”, replicou Mandrake, “e incompetentes nos lances do amor, também.”
A conversa não foi adiante, o mago sabia perfeitamente onde devia parar. Estava tudo na sua mão, era só urdir a teia.
Hojo acabava de aparecer, avantajado no seu quimono, a anunciar o jantar. Num instante,  Mandrake já estava sentado à mesa.

segunda-feira, janeiro 19, 2015

XANADU DO AMOR (2)


Mandrake vira-a uma vez, na primeira linha das mesas, durante um espectáculo de magia. Não teria mais de quarenta anos, o corpo era sólido, os seios pequenos. Os olhos tinham a cor da luz do céu e na boca fulgia o brilho ardente dos frutos de morder. Tinha feito voar uma pomba até à sua mesa, logo transformada em buquê de rosas, e ela dera um gritinho de surpresa, tocando as flores num gesto sensual e terno.
Ele fornecia lâmpadas e rolos de fio eléctrico para Xanadu. Fizera-se amigo de Lotário a quem insistentemente pedia, como se nunca tivesse chegado a compreender as causas, que lhe falasse da sua renúncia ao trono das Sete Nações Africanas.
O mago lembrava-se com saudade das suas aventuras passadas: a luta contra o crime, mas também de quando mediara Cupido na busca de uma mãe para o pequeno príncipe Randolph. Agora, de novo, aproximava-se do filho de Vénus. Mandrake tinha um interesse mágico pelas coitas de amor.

domingo, janeiro 18, 2015

XANADU DO AMOR (1)


“Ele pensa que ela tem uma vida secreta, uma zona de sombra que não revela aos amigos nem aos familiares mais directos.”
“Como assim?”, estranhou Lotário, passando os dedos pelo feltro duro do seu novo fez, acabado de estrear.
“Ela é demasiado equilibrada e forte para uma mulher que se diz sozinha, sem homem.”, acrescentou Mandrake, enquanto fazia desaparecer, num passe de mágica, a laranja fulva que tinha na mão. “Está apaixonado, já entrou naquela zona de perigo de onde só a magia o pode tirar.”
“Estou a ver”, articulou Lotário no seu falar arranhado, “mas é um caso que não nos diz respeito, acho .”
Mandrake anuiu com um gesto subtil de mãos. Xanadu respirava silêncios e tecnologias, o fim do dia alaranjava-se de sonho. E disse:
“Mas temos de o ajudar. Pela magia, pela hipnose ou por qualquer outra via. O amor…”
Mandrake pensava em Narda, e calou-se.  

sexta-feira, dezembro 12, 2014

A CASA


Às vezes penso que a Casa não existe; que a colina, o largo, as escadinhas que dão para as ruas de baixo e de cima não existem; que os livros, os quadros e o cinema são sonho sobre sonho, irrealidade. A Casa é, para mim, um apeadeiro de ilusões, a pintura inacabada, um poema a escrever, a amiga ou o amigo a quem se dá o braço.
Observo-lhe as traves altas, as janelas, as portas que se abrem para fora como nos desenhos das crianças, e o sonho tem vida. Para lá da ilusão, a Casa existe.
Na Casa já vi e senti muito:
Ler e ouvir ler.
As mantas com cheiro a cinema naquele espaço entre dois prédios, um rio de luz correndo na parede oblíqua.
O inconformismo.
          As cores da paleta.
Os afectos e as afinidades.
Na Casa somos maiores e não estamos sós.
 
Escrito para a CASA DA ACHADA, 11/12/2014

sexta-feira, novembro 28, 2014

EM PARATY

para ti - mensagem

daqui
não posso ouvir o sino das tuas quatro
igrejas nem mirar meu rosto de cair de
tarde nas águas do teu rio-poesia
imitando as velhas árvores.
mas, em cada pedra redonda da tua rua
deixei uma lágrima escondida
que fará brotar mais ervas
(ervas que as mulheres
capinam durante o dia
e à noite continuam a crescer).
(...)
JOSÉ KLEBER (1932-1989), poeta paratiense

 

domingo, novembro 02, 2014

AMIZADES ERÓTICAS


“Kundera enganou-se”, disse-me o meu amigo, piscando os olhos onde vogava um brilho de assertividade.
“Enganou-se”, repetiu.
Foi aí, no fulgor inesperado da repetição, que a coisa começou a interessar-me.
“Enganou-se em quê?”, perguntei.
E ele:
“Enganou-se naquela definição das amizades eróticas. Não é nada daquilo que ele diz, duzentas mulheres em oito anos, isso é a voragem do engate, apenas isso, o gajo confundiu as coisas.”
Admirei-me.
E o meu amigo:
“Sei bem o que são amizades eróticas, tenho várias.”
E acrescentou, o despudorado:
“Amizade erótica, como eu a vejo, é uma amizade marcada pelo erotismo, mas sem consumação carnal.”
Voltei a admirar-me.
“Escuta”, continuou, “é o mais erótico que há: uma amizade que se prolonga sob o signo do impulso sexual, porque há sempre erotismo numa amizade, mas retardada a sua concretização até aos limites do possível… ou do já não possível. Sentir-se que o que podia ter acontecido ainda não aconteceu, a vela do mistério a arder até ao fim, é muito estimulante… Porque depois de se passar ao acto, acaba-se o mistério, é sempre igual ao anterior.”
“Ó pá, mas isso dá mau resultado, elas têm pressa, não gostam de esperar…”
“Eu sei”, respondeu-me o meu amigo, “por isso é que em oito anos não tive duzentas, como a personagem do Kundera, mas apenas duas.”
Saí de ao pé dele e pus-me a deambular pela cidade, precisava de apanhar ar na cara. Há cada tipo mais esquisito! E são estes os amigos que temos!
 

O PODER DAS CARTAS

 
Vi-o cair. Estava eu sentado na esplanada do café, ruminando um jornal do dia na companhia de uma bebida que me trouxera um empregado aciganado, de brinquinho na orelha, movendo-se nuns ténis azuis e brancos de marca indefinida.
Caiu à minha frente como uma maçã de Newton, os pés a fugirem-lhe, a cara no chão.
“Ajudem o rapaz por amor de Deus”, disse uma senhora decrépita que acolitava uma distribuidora de folhetos das Testemunhas de Jeová.
“Dêem-lhe um copo de água, não vá desmaiar”, aconselhou a dona da loja das revistas, uma loira boa de quarenta e tal anos.
Um moço bombeiro que bebia uma imperial prestou os primeiros socorros.
“Um pacotinho de açúcar, por favor, isto deve ser hipoglicémia”, gritou para dentro do café.
O rapaz, branco como uma raspadinha sem prémio, recebeu o açúcar por via sublingual. Olhou em volta: viu o moço bombeiro, a senhora decrépita e a loira boa. Suspirava à medida que se recompunha, e disse:“Podia ter acabado o namoro por SMS, ou apagado o meu nome na sua página do facebook, ou pintado na parede do meu prédio um esquece-me ou um deixa-me… Mas não, teve o requinte de me escrever uma carta, tudo dito e explicado. Isto já não se usa, por isso é que me custou tanto.”
Do bolso do casaco saía-lhe um sobrescrito de correio azul, lívido apesar de azul. Tive pena.
 

sexta-feira, outubro 31, 2014

O KITSCH

Em “A arte do romance”, Milan Kundera define um conjunto de sessenta e sete palavras que são, por assim dizer, o léxico-base ou o léxico-problema dos seus romances. Entre elas a palavra «kitsch», associada muitas vezes, de forma redutora, a «arte de pacotilha», mas que, segundo Hermann Broch, é algo diferente de uma mera obra de mau gosto.
Presente em toda a sexta parte de “A insustentável leveza do ser”, o kitsch de Kundera desdobra-se em declarações tão interessantes como esta: “O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos e de todos os movimentos políticos”.
Há o kitsch totalitário, o familiar, o amoroso... Digo, por minha conta e risco, que um caso de kitsch amoroso é uma mulher convidar um homem para a cama e ele não aceitar. Não tem este meu juízo qualquer conteúdo valorativo, porque o kitsch não é bom nem mau, é simplesmente diferente. Ainda segundo Kundera, o kitsch é a ditadura do coração, e está tudo explicado.
 

quarta-feira, outubro 08, 2014

NOBEL DA LITERATURA 2014

Será um destes dois - o japonês HARUKI MURAKAMI ou o queniano NGUGI WA THIONG´O. Quem o diz não é a universidade, nem a crítica, mas as casas de apostas. Quem sou eu para duvidar de tão esclarecidas organizações? Amanhã saberemos, mas, está mais que visto, a coisa decide-se entre eles. 

quarta-feira, outubro 01, 2014

MURAKAMI, OUTRA VEZ

O segundo conto já cá canta. É a história de um casal que acorda de madrugada com um grande acesso de fome. Como não tinham comida em casa, resolvem assaltar uma padaria. O problema é que em Tóquio, àquela hora, não conseguiram lobrigar padaria aberta. Em alternativa, já desesperados, despejam a vérmina criminal da fome sobre uma loja McDonald´s. Ameaçando os empregados com uma arma, roubam nada mais nada menos que trinta hambúrgueres Big Macs.
Moral do conto: só em estado de grande necessidade se troca uma refeição de pão fresco pela comida de plástico da conhecida cadeia alimentar.
Uma coisa não se compreende: a nota da tradutora na página 44. Eu acho, o que não é uma certeza, que os tradutores têm prejudicado muito o Murakami, ou seja, têm-no baixado deliberadamente de nível, em traduções de segundo e terceiro grau, talvez com o objectivo de o tornarem ainda mais vendável.
Às minhas amigas admiradoras deste muito provável Nobel (umas quatro, no mínimo), recomendo que aprendam rapidamente japonês.