domingo, maio 17, 2015

HISTÓRIAS DE AMORES E DESAMORES - A RAPARIGA DA BLUSA ROMENA

Conheci primeiro Odette de Crécy, há tanto tempo que não consigo dizer o ano ou o mês em que tal sucedeu. Vinha vestida, pareceu-me, à moda da Belle Époque, e foi como se assistisse ao nascimento de Vénus, adulta e nua como naquele quadro célebre de Botticelli. Depois chegou Natasha Rostova e só mais tarde, muito mais tarde, Elizabeth Bennet e Maria Monforte. Com esta tive uma relação duradoura, feita de olhares lânguidos, sempre à espera de ver aparecer um príncipe italiano que ma roubasse.
Frequentei o café durante muito tempo. Ali sentado na mesa do canto, fiz mais viagens que o Gulliver de Swift, conheci mais mulheres que o burlador de Sevilha. A verdade, porém, é que nunca chegava à fala com elas. Por timidez ou qualquer outra razão mais ou menos estúpida, não me sentia à vontade com o sexo oposto.  Elas entravam, eu olhava-as, dava-lhes um nome de ressonâncias artísticas ou literárias, e isso satisfazia-me. Foi assim durante muitos anos, eu era (e sou ainda, creio) uma espécie de onanista da imaginação.
O caso mudou de figura com uma rapariga que passou a estudar no café aí por Março ou Abril do ano passado. Era época de frequências. Trazia os seus livros e cadernos, sentava-se na mesa ao lado da minha e vestia sempre a mesma blusa. Creio que teria várias peças semelhantes, variando apenas em um ou outro detalhe do bordado, porque as blusas estavam sempre impecavelmente limpas e, parecendo a mesma, se calhar nenhuma seria igual à anterior.
O seu nome descobri-o com facilidade, estava escrito na capa dum caderno, sendo esse o dado que, para mim, a tornou diferente das outras. Eu sabia-lhe o nome, não tinha de o inventar.
Um dia dirigi-lhe a palavra. Perguntei-lhe que tal iam os estudos – que, pelos livros que via sobre a mesa, eram de História de Arte –, que não queria atrapalhá-la, mas que lhe desejava sorte e sucesso nas avaliações.
A rapariga, que se chamava Sandra, deve ter achado a minha conversa fora do comum. Olhou-me com um ar de vigilante de museu, igual ao que se tem quando um visitante se aproxima muito de uma obra exposta, ameaçando tocar-lhe, e agradeceu delicadamente. Eu compreendera que a minha abordagem não tinha sido perfeita, talvez pouco natural e com um palavreado fora de moda, mas fiquei satisfeito por ter sido um primeiro esforço de comunicação.  
Passei a falar-lhe sempre que se sentava na mesa ao lado da minha. Para a impressionar, referia-lhe Courbet e o Enterro em Ornans, Watteau e A Loja de Gersaint, grandes artistas e grandes obras, arengas que ela acolhia conformadamente, suspendendo o trabalho à espera que eu acabasse para poder continuar.
Andei nisto uns dias até que a rapariga passou a sentar-se em mesas cada vez mais afastadas da minha, lá para o fundo do café, atrás de uma coluna que nem dava para a ver. A verdade é que a minha conversa não atava nem desatava. Era, reconheço-o agora, do tipo “nem o pai morre nem a gente almoça”. As mulheres – eu não sabia, mas disse-me um antigo colega com quem agora costumo encontrar-me –, gostam é de homens do tipo “tiro e queda”, sem papas na língua, “Queres ou não queres? É em minha casa ou na tua?”
Graças às lições deste meu antigo colega, aprendi bastante. Fiquei mais preparado para enfrentar os desafios do mundo, não vivendo tanto da imaginação e dos seus floreados.
Esta semana, ao fim de algum tempo, voltei ao café. Sentei-me na mesa do costume e, coisa que já não esperava, tive uma recaída. Bebia uma água com gás quando vi entrar uma mulher que de imediato associei à Victorine Meurent do Almoço sobre a Relva: o mesmo cabelo, o mesmo sorriso entre o cândido e o perverso, as pernas e os seios igualmente desafiantes. Ainda aturdido, deitei os olhos para as mesas do fundo e lá estava, numa delas, a estudante de História de Arte. Só que já não era a Sandra que eu conhecera e com quem chegara a falar, mas a jovem mulher pintada por Matisse com uma blusa romena, a mesma que Sandra sempre trazia como se não tivesse mais nada para vestir.
Já decidi: não voltarei ao café tão cedo. O meu antigo colega apresentou-me uma jovem que trabalha como auxiliar de cozinha num restaurante do bairro. Talvez com ela, na simplicidade das nossas conversas, eu consiga esquecer a blusa romena, as outras mulheres, e acalmar o tormento da minha imaginação.
Auxiliar de cozinha? Mas como se chama  a auxiliar da cozinheira Françoise no romance Do Lado de Swann?

Sem comentários: