--- TEXTO PUBLICADO NESTE BLOGUE EM 2006 E AGORA REVISTO E MELHORADO (?) COM FOTOGRAFIAS DE AGOSTO DE 2015 ---



Para chegar ao Lagroal, àquelas quatro casas que
brotam da linha do rio, era preciso conhecer a geografia local, sair da estrada
que seguia para o Santuário e descer sempre às curvas por uma via que era de
terra batida e hoje se faz de piso alcatroado e barreiras metálicas sobre o
sufoco das ravinas.
Quem se metesse a caminho e esperasse encontrar alguma referência toponímica,
logo se desiludia. Não havia placa que indicasse o desvio ou a proximidade do lugar.
A única que se via era já à chegada, umas tábuas toscas:
CAZA DO LELITO
FRANGOS E ENTREMIADAS
VINHOS DOS MILHORES
CAMAS E DUXES QUENTES
A força do Lagroal era no Verão. Continua a ser. As casas enchiam-se de gente,
o Lelito fazia negócio com os banhistas que procuravam cura para males dos
olhos e doenças da pele. De um lado do tanque de banhos havia um muro alto que
servia de prancha de saltos e mirante, do
outro uma barreira de tábuas por onde a água transbordava para o leito do rio.
É antiga a fama do Lagroal. Há cem anos ia-se de carroça ou no dorso dos burros.
Chegava-se às águas e pessoas e bestas entravam nelas para se refrescarem da
viagem. Os homens de cuecas ou ceroulas, as mulheres aventuravam-se de corpete
e saiote, não havia fatos-de-banho. Pela hora do meio-dia sentavam-se à sombra
dos salgueiros e comiam tachadas de arroz
de coelho com pão de milho, bebiam vinho e dormiam a sesta. Ao fim da tarde,
depois dos banhos, tocava-se concertina e armava-se o baile.
Anos depois, começaram a chegar de carro, matrículas francesas eram muitas, o
estacionamento selvagem a subir pela estrada até ao coruto do monte.
No Lagroal há histórias curiosas que são conhecidas dos que se habituaram a
frequentar o local. A do Lelito, por exemplo. Chegou ali em certo Verão com uma
mão à frente e outra atrás. Tomou o barraco que herdara de uma tia, meteu-lhe
obras, e começou a assar frangos e a vender bebidas. Depois teve a sorte de
deitar o olho a uma moça roliça que ali passava o mês de Agosto por causa de um
problema de menstruações irregulares, que não havia médico, por mais sabido,
que atinasse com solução para o mal. A moça – chamava-se Magnólia – começou a
ajudar o Lelito no assador de frangos. Uma grelha de frangos assados, um mergulho
nas águas. Levava assim o dia. À noite não se sabia o que é que fazia, mas dava
para perceber que era cada vez mais unha
com carne com o Lelito. Curou-se, uma cura surpreendente, e nunca mais se
separou do assador.
Outra história é a do Padre Ramos, sacerdote novo, que estava colocado numa paróquia
próxima e vinha celebrar missa campal aos domingos. Ouvia em confissão, dava a
comunhão. Eram muitos os crentes que procuravam aos domingos o refrigério das
águas ou que estanciavam no local durante o mês de Agosto, mal acomodados, já se viu, pois não havia hotel ou mesmo
pensão modesta, apenas umas casas que ofereciam camaratas, homens para um lado,
mulheres para outro. Não se podia deixar essa gente sem conforto espiritual.
Só que o Diabo é um tentador – isso já se sabe – e o
Padre Ramos foi sua vítima. Quem fala do Diabo fala do Demónio, Demo, Satanás,
Satã, Mafarrico, Lúcifer, Cornudo, Belzebu, Bode-Preto, Tinhoso, Chavelhudo,
Maligno, Mico, Peneireiro, Rabão, Diacho, Coisa-Ruim, Pé-Cascudo, Porco-Sujo,
Cão-Tinhoso, Sarnento, Tisnado, Zarapelho, Maldito, Beiçudo, Mofento,
Lá-de-Baixo, Diasco, Excomungado, Arrenegado, Tendeiro, Tentador, Brazabum,
Mal-Encarado, Tição, Bicho-Preto, Azucrim, Dianho, Anjo Mau, Espírito das
Trevas – que tudo quer dizer o mesmo, é só escolher, compreende-se agora como é
difícil fugir às ciladas que nos arma, tantos os nomes e disfarces que usa.
Pois a tentação do Padre Ramos respondia pelo nome de Margarida, não a do Dr.
Fausto, mas uma que cursava Humanidades em Bobigny, região de Paris, onde vivia
com os pais, emigrantes. O Padre Ramos, grande admirador da cultura francesa,
não resistiu. Casou em França, onde fixou residência, e no Verão costuma vir a Lagroal
com a mulher e a prole.
Isto passou-se muito antes de D. Rosa, mulher vistosa, ter incendiado a orla do
rio com as fulgurações do seu biquíni amarelo, e de Alberto, o marido, ter
granjeado famas incómodas por consentir à esposa tão magnânima exposição corporal.
Mas o caso mais perturbante que se viveu em Lagroal teve lugar aí há uns dez
anos. Começou a correr entre os banhistas, que lhes dissera o Lelito e
confirmara uma funcionária da Câmara que sofria de inchaços nas pernas, haver
um projecto para desviar as águas de Lagroal para o Santuário a fim de aí se
criar um moderno estabelecimento termal de curas milagrosas. Um arquitecto da Obra
Divina já tinha desenhado os edifícios, as fontes e as piscinas que acolheriam
os enfermos em desespero.
Chamemos as coisas pelo seu nome: o Santuário
atravessava por essa altura uma arreliadora crise de milagres. Depois dos
acontecimentos extraordinários do princípio do século, com danças astrais e
chusmas de paralíticos a saltarem das cadeiras de rodas, a força milagreira foi
abrandando. Só muito raramente se aludia a um ou outro caso extraordinário, e
mesmo assim havia logo médicos que torciam o nariz e davam explicações
científicas para os fenómenos: uma úlcera feia que sarava, um membro decrépito
que ganhava o vigor antigo, uma aperto do coração que se sumia. Apesar de tudo,
como se pode ver, casos de somenos importância… As águas de Lagroal pareciam
ser a tábua de salvação para renovados milagres. E houve quem garantisse que um
engenheiro dos Serviços Municipalizados já tinha encomendado as bombas e as
condutas para levar a água serra acima. De tudo isto se começou a falar em
Lagroal por meados de Agosto, altura em que os frequentadores viviam em pleno
as delícias dos banhos. O espanto e a tristeza não podiam ser maiores.
Foi então que em Pomar e Dourém – as cidades mais importantes da região – e até
nas terras mais pequenas como Freixarias ou Caxianda, saltou a indignação
popular. Como dizia a propaganda da altura, os povos ergueram-se como um só
homem para impedir o roubo das águas. Organizaram-se manifestações junto das
câmaras municipais, os funcionários dos partidos pediram esclarecimentos às
estruturas concelhias, estas às direcções distritais, e o assunto subiu aos
conselhos nacionais, foi discutido no governo e no parlamento, as televisões
apareceram, e começou a falar-se de boicote às eleições que se aproximavam.
Com a ajuda das televisões, os boicotes eleitorais são momentos altos de defesa
e afirmação dos direitos cívicos. A receita é simples: toma-se uma corrente com
o respectivo aloquete (aloquete quer
dizer cadeado, usa-se esta variante lexical para dar um cunho mais especioso à
prosa); fecha-se com essas alfaias a assembleia de voto; entretanto, tenta-se
deitar a mão aos boletins e urnas para queimar todo o material; a Guarda
aparece, ameaça restabelecer a ordem democrática, e é nesse momento que algumas
cidadãs fazem frente à corporação policial – está provado que é mais difícil os
guardas tomarem qualquer acção de força contra as mulheres; chegam os
repórteres das televisões e então, encenação primorosa, o presidente da junta
de freguesia pede aos cidadãos que dispersem para que o direito de voto se
exerça em liberdade; aumentam os protestos e o presidente da junta retira-se
conformado. É nesta altura que o repórter anuncia que, nos termos da lei, o
acto eleitoral será repetido na semana seguinte.
Mas não foi preciso chegar tão longe. O Santuário tinha adquirido, entretanto,
novos argumentos para relançar os seus milagres e o povo confirmou o direito às
águas. Se calhar puseram-se a fazer contas e concluíram pela inviabilidade do
projecto. Talvez tivessem encontrado efeitos nocivos de impacto ambiental,
talvez mexesse com as aves migratórias, com as espécies protegidas, e não
pudesse beneficiar dos fundos comunitários. Algo aconteceu. Nos tempos que
correm nada se faz sem demorados estudos prévios, por causa deles até os
melhores projectos abortam. Para os habituais frequentadores, sem meios para
demandarem as praias ou as termas, foi uma sorte. Nem chegou a ser um milagre.
Há lá milagre maior que os pequenos milagres da vida que todos os anos têm
lugar em Lagroal: o corpo bonito de D. Rosa sob o esplendor dos salgueiros; o
amor do Padre Ramos e de Margarida; as formas arredondadas de Magnólia com a
pele em brasa ao lume do assador. E tantos outros de que nem temos
conhecimento. Flores da água. E as curas do corpo e da alma, santuário verdadeiro
sobre a língua do rio, três meses felizes de Verão. Todos os anos.
