segunda-feira, julho 30, 2012

"FEDRA" de Racine, um palimpsesto

Palimpsesto é, segundo o dicionário Houaiss, um “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado para dar lugar a outro.” 
O conceito liga-se em literatura ao de intertextualidade, a possibilidade infinita de os textos dialogarem com outros textos. Escreveu Fernando Pessoa/Ricardo Reis: “Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.”
Fedra de Racine é um desses pergaminhos em que se escreveu sobre textos “raspados” de Eurípedes, Sófocles, Séneca e de toda a vasta tradição oral dos antiquíssimos mitos.
Se Thomas de Quincey via o cérebro humano como um palimpsesto (sobreposição de inumeráveis camadas de ideias, imagens e sentimentos), Baudelaire apontava nos Paraísos Artificiais a diferença entre este palimpsesto da criação divina e o literário: o caos fantástico e grotesco do primeiro face à fatalidade artística e harmoniosa do segundo.
 

4 comentários:

Maria Amélia disse...

Quando se fala em palimpsesto, só me vem à memória, como exemplo acabado, os grafismos parietais líticos da pré-história: figura sobre figura, testemunhando ciclos de retorno à mesma ideia, ao mesmo objetivo, ao mesmo clamor. Sabemos que assim é, porque de cada vez há traços que desenham o mesmo desejo fora dos limites do anterior...

Manuel J. M. Nunes disse...

Sim, do grego antigo παλίμψηστος (palimpsestos), que quer dizer
"riscar de novo".
As coisas que conseguimos saber pela Wikipédia! :)

Manuel Nunes disse...

O Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
tem esta explicação:

[O Nosso Idioma]

Palimpsestos *

Ana Martins

Chama-se palimpsesto ao pergaminho manuscrito que, na Idade Média, era raspado para se poder voltar a escrever nele. Reciclagem à moda antiga.

Por associação de ideias, palimpsesto é um termo usado para explicar que, muitas vezes, um discurso entra em diálogo com outros discursos, dizeres ou vozes, de outros tempos e lugares, cumprindo novos propósitos comunicativos. Por debaixo de um enunciado há outro enunciado. Interpretar um texto é, então, dar conta de como outros dizeres aí ressoam.
Este fenómeno é uma constante da comunicação e é muitas vezes projectado nos títulos dos artigos de jornal: «Separar o trigo do diesel» (Público, 25/4/08), sobre a produção de biocombustível, que exige muito combustível fóssil; «As bases e os "barões" assinalados"» (Público, 1/5/08), sobre a polarização entre militantes incógnitos e militantes notáveis do PSD; «Pouca terra ou pouco tino?» (Público, 5/5/08), sobre o desastre económico que pode ser o TGV.
Portanto, quando se diz que a língua é cultura e história é preciso ter em mente a língua em uso, para além do sistema abstracto de regras gramaticais. Um enunciado formado impecavelmente segundo os princípios de codificação e postulados de significação pode não ter sentido nenhum. O significado é dado pelo dicionário e pela gramática, mas o sentido é criado a partir do conhecimento do que já foi dito e do que se diz numa comunidade de falantes.
Por isso é que um brasileiro teria dificuldade em perceber o terceiro título citado. Para ele, o comboio faz "café com pão, café com pão", para nós, "pouca terra, pouca terra". E a língua é a mesma.

* Artigo publicado no semanário Sol de 10 de Maio de 2008, na coluna Ver como Se Diz :: 11/05/2008

Maria Amélia disse...

Muito interessante: tem pano para ideias!