sexta-feira, junho 03, 2011

CASAMENTO DA MORTE








































Dizia um nosso grande cortesão, que havia três castas de casamento no mundo: casamento de Deus, casamento do diabo, casamento da morte. De Deus, o do mancebo com a moça. Do diabo, o da velha com o mancebo. Da morte, o da moça com o velho.

D. Francisco Manuel de Melo
Carta de Guia de Casados


Ela dava aulas na faculdade, lia Foucault, tinha a cabeça cheia de filosofia e o corpo muito feito a satisfações metafísicas, a fenomenologias frenéticas, a ontologias gritantes. Ele limitava-se a passear os olhos por romances, por um ou outro livro de poesia, e tentava uma vaga investigação literária num trabalho académico de improvável mérito.
Como é que tudo começou? Ninguém pode dizer ao certo o princípio das coisas! Se fosse possível saber onde se levanta o vento, em que região do mar se forma a onda, em que recesso da alma desponta o amor – então o homem seria um lago de águas paradas, não haveria a emoção da vida nem o milagre da dúvida, estaria condenado ao mais pardo dos conformismos existenciais, sujeito a um determinismo tirânico, abominável e destruidor.
Na primeira noite que passaram juntos a coisa não correu mal de todo. Quando entraram na alcova, ela fechou um livro que estava aberto sobre a cama, no qual se viam grandes sublinhados a lápis castanho, tirou os óculos, a camisa e as calças, deixou brilhar o mármore dos seios e a promessa segura do triângulo púbico, e ele agiu como se lhe lesse, sem perceber, uma página densa de Heidegger. A parada era alta, mas lá se safou.
Na noite imediata foi como se lhe recitasse um poema mal decorado. Falhou nas estrofes preliminares, conseguiu recompor-se a meio do texto, e acabou no limiar duma indisposição grave, o coração a galope nas arcadas do peito.
Foram assim as duas primeiras noites. Nas que se seguiram é que foi pior. Ela queria Foucault, Deleuze, Derrida, e ele mal lhe conseguia ler um capítulo de Régio, um poema de Sophia, um artigo do JL dos mais ligeiros.
O amor pelas leituras, no entanto, parecia feito de uma liga forte. Ao fim do dia, antes de se meterem pelo Calhariz e subirem a Rua da Rosa a caminho do segundo andar do prédio em que ela morava, bebiam imperiais na Trindade e passeavam no Chiado de mãos dadas. Uma vez, uma senhora idosa que ia para a missa da tarde na Igreja dos Mártires gabou aquela ternura que via entre pai e filha, algo a que já não se assistia num tempo tão dado a conflitos geracionais. Uma amiga não menos carregada de anos que a acompanhava, mais preparada, contudo, para as realidades do século, pediu-lhe que não dissesse asneiras e ficasse calada. A senhora caiu em si e benzeu-se com veemência, rezando mentalmente a Santo Expedito por todos os que neste mundo se desviam do caminho certo.
O tempo foi passando. Na maior parte das noites não havia filosofia que viesse em seu auxílio. Ela mostrava-se compreensiva, lia e sublinhava encostada ao espaldar da cama, enquanto ele dormia, passeando por sonhos em que entravam pastoras da arcádia, toques de flauta e amores castos.
Sentiu o cheiro da morte numa madrugada de Primavera assustadora e quente. Ela lera os filósofos até tarde, os olhos correndo as páginas como se as quisesse meter dentro de si. Da rua vinha o ruído da malta dos copos, peregrinando de bar em bar. Ele estivera ao computador, escrevendo umas linhas frouxas, e a inevitabilidade do diálogo filosófico crescia como a sombra da noite. Os primeiros embates ultrapassou-os de forma satisfatória, só depois veio o mais complicado. Ela fixava-se num texto de Blanchot sobre Foucault e sexualidade, sabendo ele que quem fala em barcos quer embarcar. Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!, disse o poeta. Ele sentiu saudades de outros tempos e de outros cais onde embarcara, e deixou-se ir na corrente como quem se entrega. Acabou destroçado do excesso, um comprimido de emergência debaixo da língua. Filosofias…
Foi então que se lembrou de ter visto e fotografado no campus universitário de São Paulo, nas paredes de uma qualquer faculdade, uma inscrição a que agora dava completo sentido:

FOUCAULT É A MORTE DA FILOSOFIA!
DELEUZE E DERRIDA TAMBÉM!

Gostava muito dela, mas não aguentou o alto nível do debate filosófico em curso. Nunca mais poderá esquecer o andar velhinho da Rua da Rosa, a alcova semeada de livros, a roupa íntima espalhada pelo chão e o ruído que subia da rua até alta madrugada. Às vezes, por muito que custe, é preciso aprender com os clássicos. Casamento da morte…

4 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Ele sonhava com pastoras da arcádia e na cama tinha um compêndio. Só podia fazer-lhe mal.

Manuel Nunes disse...

Ricardo: Era filosofia a mais!

Joca disse...

E no princípio era o verbo...e faltavam as palavras...porque a vida são momentos registados.

Manuel Nunes disse...

Minha Amiga:
No princípio era o quê?
Não no princípio mas no meio da semana temos o homem do turbante verde. Com caracóis?