domingo, setembro 16, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 7 )

O achigã é um peixe voraz e belo, originário dos grandes lagos norte-americanos, cujo nome, na língua falada pelos índios do Canadá, tem o significado exacto de “aquele que salta”. Foi introduzido na Europa na segunda metade do século dezanove, apresentando semelhanças com a perca, uma espécie de barbatanas duras e espinhosas que, acredita-se, já cruzava as águas do Nilo em tempos tão remotos como o dos grandes construtores de pirâmides. Atira-se-lhe uma linha sem nenhum isco comestível, apenas com uma placa vagamente pisciforme, uma amostra, como se diz, com um riscado rômbico imitando escamas, e é ver o peixão a abocanhar o falso alimento, ficando preso no anzol na ponta do fio que o carrete enrola, debatendo-se contra a morte irremediável por entre golpes de cauda e brados surdos.
Jonas e Daniel interrogavam-se sobre donde poderia ter vindo aquela espécie. Já a conheciam de outras albufeiras, sabendo da excelência da sua carne muito apreciada por todos os amadores da pesca. Agora que o lago estava cheio e os achigãs apareciam a colonizar as águas, acreditavam ingenuamente que, à semelhança do que pensavam acontecer com as enguias, eles viriam pelos rios interiores, passando de um lago a outro, seguindo os caminhos dessa hidrografia subterrânea e profunda que pressentiam como misteriosa mas, ao mesmo tempo, plausível.
Era assim que todos os dias, pela manhã, ao demandarem as margens do lago, pareciam entusiasmados com a pescaria em perspectiva, fazendo apostas sobre o tamanho e o peso dos espécimes que esperavam capturar.
Josué não os acompanhava. Tinha-se ido muito abaixo com o episódio do televisor, arrastando-se agora entre psicólogos e médicos do centro de saúde a contas com severas prescrições de ansiolíticos que o deixavam trémulo e desmemoriado. Os companheiros tinham reagido melhor. Ao destruírem os seus televisores, não mais se preocuparam com as emissões de circuito interno produzidas pelos donos do empreendimento, ficando livres daquela acção psicológica dirigida a quem não pudera escolher o rumo das suas vidas, sempre a tentar persuadi-los de que estavam agora melhor que nunca, com uma aldeia nova e limpa, casas modernas, apoio social e assistência médica. Havia quem não entendesse por que razão tinham dado cabo dos aparelhos de televisão, quando bastaria, para não receberem as emissões, não os ligar no canal respectivo. Os que exprimiam tais juízos não compreendiam, porém, a real dimensão do mal que os assediava.
Assim, não passou muito tempo que Jonas não começasse a dar sinais de que algo errado se estava a passar consigo, convencendo-se de que havia um grande peixe no lago, tão grande e temeroso como as baleias que sabia existirem no alto-mar. E uma estranha fixação começou a dominá-lo: descobrir esse ser monstruoso cuja respiração sentia subir à superfície numa nuvem escura e húmida, e mostrá-lo a toda a comunidade como a maior aberração gerada pela subida das águas.
Foi quando deixou de se interessar pela pesca. Descia para o lago apenas para vigiar a planura das águas, os olhos bem abertos sob o azul líquido como se estivesse no cesto da gávea de um navio a perscrutar, por alvíssaras, as lonjuras do mar.
Então sucedeu que durante três dias e três noites ninguém soube nada dele. Daniel viu-o descer em direcção ao lago, foi o último a pôr-lhe a vista em cima antes de desaparecer. E todos deram como muito provável que pudesse ter-se afogado, pois sabia-se que ultimamente ficava longas horas sentado na margem sob um grande rícino que lhe fazia sombra mas que, entretanto, veio a secar, talvez por capricho de algum deus cruel. Passava então as tardes de cabeça ao sol, os olhos postos nas águas, e os amigos temeram uma insolação, um possível desmaio que o tivesse precipitado, de roldão, nas profundezas do lago.
Mandaram vir os bombeiros, mergulhadores de escafandro e garrafas de oxigénio, barcos de borracha com motores fora de borda que bateram as pequenas enseadas e os longos esteiros que se metiam como veias pelo corpo da terra. Esquadrinharam minuciosamente a superfície das águas, binóculos assestados sobre a vastidão, comunicando por rádio com a central. Uma ambulância permanecia de plantão num pequeno molhe de barcos de recreio, preparada para levar o ferido à urgência hospitalar ou o falecido à morgue. Um jipe da Guarda estacionara ao lado da ambulância para tomar conta da ocorrência, e o Presidente da Câmara apresentara-se no local para, com o seu interesse, tomar conta dos votos dos seus eleitores.
Não encontraram Jonas no primeiro nem no segundo dias. No terceiro chegaram os repórteres da televisão, os jornalistas da imprensa regional e das rádios locais, os ambientalistas de passagem para uma acção de destruição de uns hectares de milho geneticamente modificado, e peroraram sobre o monstruoso predador introduzido no lago, dizimando as espécies nativas e desassossegando os homens. Então os donos do empreendimento sentiram-se na obrigação de fazer um comunicado à imprensa, e asseveraram que nada de anormal estava a acontecer, que a espécie com que se povoara o grande lago era o conhecido achigã, habitante irrepreensível de outros lagos e albufeiras do país, de nome científico micropterus salmoides, também identificado pelas designações vulgares de perca americana, robalo negro, perca-truta e boca-grande, alimentando-se em grande parte de insectos aquáticos, dando também a sua dentada em algum peixe e uns tantos moluscos, assim os apanhasse a jeito, mas nada de colocar em perigo as pequenas espécies, um animal que só excepcionalmente poderia atingir os dez quilos de peso.
Ninguém ficou tranquilo com o comunicado, antes recrudesceram os boatos e especulações. Mas depois do terceiro dia, manhã cedo, Jonas apareceu na aldeia. Vinha transtornado e muito magro. Garantia ter sido engolido pelo grande peixe, em cujo ventre ficara durante três dias e três noites até o monstro o vomitar na orla do lago, e lá, no abismo das suas entranhas, pensara na vida e na maldade dos dias. E falava de coisas estranhas que nunca as gentes da aldeia tinham ouvido de si, como se falasse pela boca de outrem ou apenas emprestasse a sua a quem não a tinha para se exprimir perante os homens. Os amigos deram-lhe de comer e beber, aconselharam-no a ter calma, mas ele não voltou a ser o mesmo.
A meio da manhã, a ambulância subiu do molhe com o ruído da sua sirene e levou-o, manietado por dois auxiliares de enfermagem, para um destino por todos pressentido mas de que ninguém se atrevia a falar.
Nunca mais voltou à aldeia e, para toda a gente, era como se tivesse morrido. Foi a segunda vítima da subida das águas.
D.E.

1 comentário:

João António disse...

Cá está!!
O Jonas desceu aos infernos, viu a verdade, e mais uma vez foi de «cana»
para a prisa ou para o hospício.
Só ao ler este trecho, finalmente, fiquei com uma descrição do achigã de que tanto ouvia falar e que é pescado nas barragens.
Até à próxima leitura