domingo, julho 15, 2007

A SUBIDA DAS ÁGUAS ( 1 )

No dia em que Josué, de martelo em punho, reduziu a uma pilha de cacos o aparelho de televisão, houve quem visse naquele desvario uma genuína manifestação do síndroma do deslocado, designação criada pelos psicólogos que acompanhavam o povo da aldeia para classificar de forma científica e rigorosa os estranhos comportamentos observados nas gentes de Vilarinho do Rio.
Na nova aldeia, construída de raiz para os que foram obrigados a deixar o chão ancestral, Josué vivia tempos de melancolia, a memória dos antigos lugares aprisionada na tristeza da casa que lhe fora atribuída, um espaço que cheirava violentamente a novo, sem larguras de terra onde plantar uns pés de roseira ou semear umas vagens.
Josué é homem bem entrado na idade, viúvo, sem filhos, com cabelo e sobrancelhas que dão para uma casa de família, o nariz vagamente adunco, lábios finos e cova no queixo, estatura meã, pele tisnada. Todo o Inverno veste calças escuras e camisola de gola alta, e em dias de chuva enverga uma capa de borracha que lhe foi deixada por um embarcadiço seu amigo. Usa botas grossas, faz a barba dia sim dia não, e não é capaz de olhar de frente para uma mulher. Pescador em outros tempos, quando os barbos e as carpas corriam na babugem do rio, vivia do rendimento da pesca e do pouco que tirava da criação de patos e galinhas, trabalhando a horta para consumo próprio.
A porta da sua nova casa dá para uma calçada de pedra escura que margina o asfalto da rua. Nas traseiras há um quintal exíguo, onde, sob um telheiro, se guardam redes e outros apetrechos de pesca, umas enxadas e um ancinho. Ao lado da sua rua há mais duas, uma de cada lado, dispostas em paralelo, e a meio delas uma outra que as atravessava e vai dar ao largo onde foi reedificada a igreja matriz. É a esta geometria de ruas e casas brancas de traço monotonamente igual que dão agora o nome de Novo Vilarinho.
Josué foi ainda capaz de varrer os destroços do televisor, manobrando a vassoura e a pá com a destreza própria de quem não tem mulher em casa, sacudindo o tapete na soleira da porta, e, tomado de singular consciência ecológica, separou o metal, o plástico e o vidro, depositando em cada um dos contentores do lixo aquilo que lhes estava destinado receber. Parecia forte, mas deixou-se abater quando os vizinhos saíram à rua e começaram a abraçá-lo, recomendando-lhe calma e consolando-o com palavras amigas.
Josué foi o primeiro a escaqueirar o televisor, mas outros o seguiram. Jonas, também antigo pescador, teve o seu momento de cólera num dia húmido, pelas cinco da tarde, quando começavam as emissões diárias de circuito interno, explicando ao povo as vantagens do empreendimento. Depois foi Ruben, o carpinteiro. E Ester, e Daniel. Jacob, que se dizia ser um pouco tonto, agiu com grosseira violação das normas de segurança e foi electrocutado pela voltagem do aparelho. Ficou para a história como a primeira vítima da subida das águas, e há quem garanta sentir a sua alma, à noite, a deambular pelas ruas da aldeia.
Tudo isto se passava enquanto o povo menos consciente, ou talvez menos preparado para enfrentar o sofrimento, enganava a amargura dos dias na nova sociedade recreativa, jogando às cartas ou assistindo aos programas de televisão captados por antena parabólica, desafios de futebol, touradas, filmes às vezes um bocado picantes que as mulheres fingiam não ver e os homens só desfrutavam com satisfação quando elas não estavam presentes. Os psicólogos verificavam com a alegria própria do dever cumprido a integração destes deslocados nos novos espaços sociais. Não sabiam ao certo quantos eram, mas estavam seguros de que apenas uma pequena parte dos habitantes não se adaptara à nova situação. Tudo fora feito para suavizar os problemas da mudança, desde a entrega de casas novas, segundo as necessidades de cada família e a área das suas antigas habitações, até à reconstrução da igreja matriz, desmontada e montada pedra por pedra. Os restos mortais dos familiares foram exumados na antiga necrópole e sepultados nas campas e ossários do novo cemitério. Da cidade veio um entendido em assuntos de morte e sentimentos de perda para ajudar com o seu conselho os que poderiam deixar-se abater em tão doloroso transe. Nada foi deixado ao acaso pelos donos do empreendimento.
De entre todos os habitantes da aldeia, só Josué se recusou a levantar os ossos da mulher. Salomé se chamava ela, lá ficou sob o manto de água.

D.E.

2 comentários:

Maria Carvalhosa disse...

Também no que escreves nada é deixado ao acaso. Excelente até aqui. Aguardo, ansiosa, pela continuação.

Um beijo.

João António disse...

Esta história, a avaliar pela descrição psico-social, parece-me ser algo parecido, com Vilarinho das Furnas, Aldeia da Luz e outras que se seguirão. Os requintes de marquetingue inebrio-branqueador,estão aludidos na história. Alguns personagens, mostram uma sageza e força bíblica capazes de enfrentarem o dilúvio, enquanto outros sucumbem.
Boa Malha Manuel.
Fico a aguardar.
Um abraço