quinta-feira, julho 12, 2007

UM DESTINO INEXORÁVEL

Ela conhecia os matizes da dor que via estampados nos rostos dos familiares. Não se surpreendia com as palavras condescendentes ou as expressões de desdém que acolhiam as suas arrojadas certezas. E compreendia bem a indulgência dos que não queriam contrariá-la, receosos de verem agravado o seu estado de saúde. Sentia-se fraca, talvez por efeito da medicação que lhe era imposta, mas à sua volta nada acontecia que a deixasse indiferente. Estava sempre atenta às notícias dos jornais e da televisão, inteirava-se de tudo o que dizia respeito às pessoas da família, arriscando juízos e premonições como se de uma pitonisa se tratasse. Naquela mente que os médicos insistiam em caracterizar como perturbada, fervilhavam convicções poderosas e formas desmedidas de ver o mundo. Ela que sempre fora uma pessoa sem ideias próprias, acostumada a guiar-se pela cabeça dos outros, sentia-se de repente singularmente segura de tudo o que pensava e dizia, parecendo querer recuperar do seu longo passado de apatia.
No pico das noites, quando era hora de dormir e o sono teimava em não lhe procurar o refúgio dos olhos, tinha visões de estepes geladas por onde corriam cavalos de crinas ao vento, recortando-se na linha do horizonte manchas de bandos de aves, um sol alaranjado, o vulto de um deus revoltado com a imperfeição dos homens. Ela contava estes sonhos – assim lhes chamava – à irmã com quem vivia desde que se separara do marido. A irmã traía num esgar a crispação dos músculos da face, fazia-se lívida, afastava-se com o rumor dos pensamentos a fustigar-lhe as têmporas, e era incapaz de responder ou de avançar com uma palavra de alento.
Há muito que aquele mal – ou aquela diferença – se disseminara no magma genético da família, irrompendo com regularidade pelo menos uma vez em cada geração. Todos conheciam a ameaça em suspenso, a espada de Dâmocles que traziam por cima das cabeças, interrogando-se permanentemente sobre quem seria o próximo a sofrer o assédio.
Num dia em que ela, no cume do delírio, degolou o canário de canto mavioso a que a irmã tanto se afeiçoara, uma ambulância de onde saíram dois homens de bata branca e bíceps protuberantes, levou-a, num aparato de sirenes e correrias desrespeitadoras das regras de trânsito, para um pavilhão sombrio de um hospital psiquiátrico.
Então, enquanto toda a família sofria as ondas de choque do desenlace e se desdobrava na procura de soluções, a irmã distanciava-se do problema, agindo como se ele não existisse ou como se, existindo, não lhe dissesse respeito.
Houve quem manifestasse pesar por tão invulgar alheamento, quem se insurgisse pela falta de solidariedade, aduzindo argumentos recriminatórios. Não entenderam a questão para além de aquilo que se firmava diante dos olhos. O que pesava na atitude da irmã não era a falha do amor fraterno ou a quebra dos naturais sentimentos regidos pelo altruísmo. O problema era outro. Ela sentia-se já no declive por onde tinham resvalado, em sucessivas gerações, tantos membros da sua família. Por isso, e só por isso, num natural reflexo de autodefesa, lhe era impossível enfrentar a face do mal e lidar com as suas infinitas expressões. No fundo, era como se recusasse encarar antecipadamente o destino que sabia estar guardado para si.
D.E.

3 comentários:

João António disse...

Conto com uma narrativa densa, tipo «murro no estômago». Eis uma realidade bem mais comum do que muitos podem imaginar. É também um alerta. Gostei deste concentrado do Disperso.

Manuel Nunes disse...

Caro João,
Obrigado pelo teu comentário. Essa do "murro no estômago" ajusta-se bem. Entretanto, já eliminei uns tantos adjectivos e agumas expressões redundantes. Confesso que tive alguma dificuldade em escrever este texto, mas tinha de o fazer.
Um abraço,

Maria Carvalhosa disse...

Muito bom, Manuel. Já tinha saudades de um texto teu.

Beijos.