Um perfeito disparate – foi assim que Cláudia classificou a empresa em que eu me metera, deixando a casa e o emprego para ir em demanda de um hipotético manuscrito de Camões, como se o trabalho de investigar sobre tal matéria pudesse ser levado a cabo por alguém destituído de formação e experiência para o fim em causa. Que ela pesquisasse sobre os entrechos da expansão portuguesa no Oriente, nenhuma admiração, pois era labor próprio da sua condição de universitária e doutoranda; agora eu, um zé-ninguém metido dentro da farda de uma empresa de segurança, arrastando as horas de vigília nocturna com os olhos dormentes e a cabeça dolorida de sono, a querer armar-se em descobridor de manuscritos perdidos, era coisa que não lembrava ao diabo. E, com grande frieza, deu-me ordem de regresso, sob pena de o meu dislate conduzir a desentendimento grave e, admiti eu, a uma muito provável separação.
Dei comigo a pensar sobre os sacrifícios que fazemos para conservar a estabilidade dos nossos afectos. Tantos sonhos que abandonamos, tantos momentos da vida em que saímos do nosso caminho para seguir a luz do outro. A vida a dois é feita de cedências e ajustamentos, de renúncias recíprocas em vista da felicidade comum. Só que, no nosso caso, parecia-me ser eu o único a renunciar, aquela metade que tinha sempre de se acomodar à vontade da outra.
E lembrei-me de um episódio da vida de casado do meu tio Gilberto. Tinha-me sido contado por ele há uns bons anos, pois a grande amizade que tinha por mim levava-o sempre a procurar transmitir-me, com exemplos da vida, os ensinamentos de que eu carecia para a minha formação como homem. Apresentando-me esse episódio como uma experiência de onde era possível retirar uma lição, ironizava ao mesmo tempo sobre as peripécias e o desfecho do mesmo, como se, depois de tanto tempo, já não passasse de um incidente menor da sua vida, algo que, apesar da importância que tivera, o tempo se havia encarregado de situar no plano das coisas que já não tinham o poder de o afectar.
Na juventude, a minha tia, mãe daqueles incríveis primos a que me referi, era muito possessiva e assaz exigente na reivindicação dos seus direitos matrimoniais, prendendo o meu tio em casa, ao pé de si, tanto quanto podia. Durante os dias de semana, nas poucas horas que lhe sobravam do seu labor de funcionário público, ela lá ia conseguindo segurá-lo com aquelas artes que as mulheres possuem e já nascem com elas. Ao domingo, porém, tudo lhe saía ao contrário. O meu tio Gilberto tinha o gosto do futebol – uma inclinação que lhe ficara dos tempos de rapaz – e não passava um santo dia do Senhor que não se encontrasse com o seu grupo de amigos para um jogo matutino – uma espécie de partida de solteiros contra casados – seguindo-se o almoço entre camaradas e, durante a tarde, exacerbados entusiasmos de bancada no estádio do clube. Semana sim, semana não, a equipa de futebol do clube ia jogar fora, aos estádios ou aos singelos campos da bola dos adversários, e ele lá seguia em excursão até esses lugares, não sei se como membro de alguma ruidosa claque ou apenas como espectador sereno. Todo o dia de domingo era assim passado em convívios, entretenimentos e práticas desportivas de bancada, enquanto a minha tia ficava em casa, sozinha, sob a custódia dos Lares. Ela aguentou um certo tempo, tentando perceber até onde chegava o atrevimento, sempre à espera de o ver reconsiderar e arrepiar caminho, mas como não houvesse melhoras e muito menos sinais de arrependimento, leu-lhe a cartilha: ou acabava o futebol, ou acabava ela. Foi remédio santo, que aquilo era mesmo um casamento de amor e o meu tio não a queria perder.
Também eu, seguindo o exemplo do meu tio, cedi a Cláudia. Cheguei envergonhado ao pé do representante do sebo e dei o dito por não dito: ele que procurasse sozinho o manuscrito de Camões, bem podia ficar com os louros da descoberta todos para si, que eu, por imperiosos motivos familiares, me via obrigado a regressar a casa. O homem ainda tentou contrariar os meus propósitos de desistência, aduzindo formidáveis convicções e inexpugnáveis certezas, dizendo encontrar-se na pista certa, à beira de encontrar o que tão ansiosamente procurávamos, e lembrando-me os proveitos que daí adviriam para ambos. A minha decisão, no entanto, estava tomada, e isso ele acabou por compreender.
Deixei Salamanca, a cidade que a uns sara e a outros manca, como diz o velho adágio, e meti-me à estrada. Ia meditando na minha vida e no meu casamento, sentindo que a partir daquela experiência falhada já nada voltaria a ser como dantes. Acabara por descobrir em Cláudia uma mulher fria e intransigente, criticando o arrebatamento que me tomara quando eu apenas pretendia sair da sombra e chamar a sua atenção sobre a minha pessoa. Afinal, o que via Cláudia em mim? Que futuro poderia ser o da nossa relação? E comecei a valorizar certos sinais, pequenos incidentes que antes havia encarado com bonomia e desprendimento, como se não tivessem nada a ver com a essência dos nossos afectos e fossem apenas o resultado de desiguais ritmos de vida, de diferentes projectos profissionais que exigiam a um o que não se pedia ao outro, mas que afinal continham o germe de uma união fracassada, que dificilmente iria longe. Por que razão Cláudia nunca me apresentava aos seus colegas da universidade? Como explicar o desinteresse que me dedicava, mal se aproximando de mim dias a fio? E que dizer das vezes em que não vinha dormir a casa, ficando toda a noite, segundo dizia, na universidade, preparando a matéria da sua tese, fazendo directas ou limitando-se a dormir umas escassas horas, sobre a madrugada, encostada a um maple do seu gabinete? Se me fosse possível mudar alguma coisa na minha atitude – como em tempos fizera o tio Gilberto ao deixar o seu grupo de amigos e entregando-se por inteiro ao remanso doméstico em companhia da sua esposa– certamente o faria. Mas eu não tinha nada que, de imediato, pudesse ou devesse mudar. Só queria que Cláudia se sentisse bem ao pé de mim. Não tinha amigos que me afastassem de casa e a única vez que a tinha deixado sozinha fora nessa triste demanda que me levara a Salamanca e de onde regressara de orelha murcha, com o ego desfeito. Nunca poderia alterar de um dia para o outro a pequenez da minha estatura intelectual nem a configuração das minhas limitações. Ou Cláudia me aceitava tal como era, ou não havia nada a fazer. E decidi que teria de me entender com ela logo que chegasse a casa. Estaria disposto a tudo para não a perder, apresentar-lhe-ia um plano de reabilitação da nossa relação. Seria capaz de voltar à universidade para reiniciar os estudos interrompidos, tentando dessa forma superar o desnível de habilitações que existia entre nós. Talvez, quem sabe, terminada a licenciatura, pudesse também fazer um doutoramento. Estava disposto a esquecer tudo, a pôr de parte as dúvidas que me assediavam e a acreditar de novo no nosso amor.
Cheguei a casa e fui recebido por Cláudia com absoluta normalidade. Isso desarmou-me. Nos dias seguintes, retomado o meu trabalho de vigilante nocturno, foi-me faltando a coragem para lhe falar e debater com ela aquilo a que me obrigara em pensamento.
Hoje, passados vários meses sobre a minha ida a Salamanca, a nossa forma de vida não sofreu alteração. Com os horários de trabalho trocados, eu entro em casa, de manhã, quando ela acaba de sair para a universidade. Vejo-a escassamente durante os dias da semana, e aos domingos, à medida que se aproxima a data de apresentação da sua tese, cada vez lhe noto menos disponibilidade e maior dose de impaciência para comigo. Sinto que esta situação não poderá continuar por muito tempo e algum dia teremos de discutir a sério a nossa relação. Poderá ser na próxima semana, poderá ser no próximo mês, quando me sentir capaz de falar com ela. Até lá, faço por acreditar que algum facto inesperado, algum sopro de vida podem ainda surgir e salvar o nosso casamento do coma profundo em que se encontra. Entretanto, hei-de passar um dia destes pelo alfarrabista do Bairro Alto. Pode ser que ele tenha notícias do representante do sebo e que algo se descubra sobre o Parnaso de Luís de Camões. Estou convencido de que isso modificaria muito, para melhor, a opinião de Cláudia a meu respeito.
Dei comigo a pensar sobre os sacrifícios que fazemos para conservar a estabilidade dos nossos afectos. Tantos sonhos que abandonamos, tantos momentos da vida em que saímos do nosso caminho para seguir a luz do outro. A vida a dois é feita de cedências e ajustamentos, de renúncias recíprocas em vista da felicidade comum. Só que, no nosso caso, parecia-me ser eu o único a renunciar, aquela metade que tinha sempre de se acomodar à vontade da outra.
E lembrei-me de um episódio da vida de casado do meu tio Gilberto. Tinha-me sido contado por ele há uns bons anos, pois a grande amizade que tinha por mim levava-o sempre a procurar transmitir-me, com exemplos da vida, os ensinamentos de que eu carecia para a minha formação como homem. Apresentando-me esse episódio como uma experiência de onde era possível retirar uma lição, ironizava ao mesmo tempo sobre as peripécias e o desfecho do mesmo, como se, depois de tanto tempo, já não passasse de um incidente menor da sua vida, algo que, apesar da importância que tivera, o tempo se havia encarregado de situar no plano das coisas que já não tinham o poder de o afectar.
Na juventude, a minha tia, mãe daqueles incríveis primos a que me referi, era muito possessiva e assaz exigente na reivindicação dos seus direitos matrimoniais, prendendo o meu tio em casa, ao pé de si, tanto quanto podia. Durante os dias de semana, nas poucas horas que lhe sobravam do seu labor de funcionário público, ela lá ia conseguindo segurá-lo com aquelas artes que as mulheres possuem e já nascem com elas. Ao domingo, porém, tudo lhe saía ao contrário. O meu tio Gilberto tinha o gosto do futebol – uma inclinação que lhe ficara dos tempos de rapaz – e não passava um santo dia do Senhor que não se encontrasse com o seu grupo de amigos para um jogo matutino – uma espécie de partida de solteiros contra casados – seguindo-se o almoço entre camaradas e, durante a tarde, exacerbados entusiasmos de bancada no estádio do clube. Semana sim, semana não, a equipa de futebol do clube ia jogar fora, aos estádios ou aos singelos campos da bola dos adversários, e ele lá seguia em excursão até esses lugares, não sei se como membro de alguma ruidosa claque ou apenas como espectador sereno. Todo o dia de domingo era assim passado em convívios, entretenimentos e práticas desportivas de bancada, enquanto a minha tia ficava em casa, sozinha, sob a custódia dos Lares. Ela aguentou um certo tempo, tentando perceber até onde chegava o atrevimento, sempre à espera de o ver reconsiderar e arrepiar caminho, mas como não houvesse melhoras e muito menos sinais de arrependimento, leu-lhe a cartilha: ou acabava o futebol, ou acabava ela. Foi remédio santo, que aquilo era mesmo um casamento de amor e o meu tio não a queria perder.
Também eu, seguindo o exemplo do meu tio, cedi a Cláudia. Cheguei envergonhado ao pé do representante do sebo e dei o dito por não dito: ele que procurasse sozinho o manuscrito de Camões, bem podia ficar com os louros da descoberta todos para si, que eu, por imperiosos motivos familiares, me via obrigado a regressar a casa. O homem ainda tentou contrariar os meus propósitos de desistência, aduzindo formidáveis convicções e inexpugnáveis certezas, dizendo encontrar-se na pista certa, à beira de encontrar o que tão ansiosamente procurávamos, e lembrando-me os proveitos que daí adviriam para ambos. A minha decisão, no entanto, estava tomada, e isso ele acabou por compreender.
Deixei Salamanca, a cidade que a uns sara e a outros manca, como diz o velho adágio, e meti-me à estrada. Ia meditando na minha vida e no meu casamento, sentindo que a partir daquela experiência falhada já nada voltaria a ser como dantes. Acabara por descobrir em Cláudia uma mulher fria e intransigente, criticando o arrebatamento que me tomara quando eu apenas pretendia sair da sombra e chamar a sua atenção sobre a minha pessoa. Afinal, o que via Cláudia em mim? Que futuro poderia ser o da nossa relação? E comecei a valorizar certos sinais, pequenos incidentes que antes havia encarado com bonomia e desprendimento, como se não tivessem nada a ver com a essência dos nossos afectos e fossem apenas o resultado de desiguais ritmos de vida, de diferentes projectos profissionais que exigiam a um o que não se pedia ao outro, mas que afinal continham o germe de uma união fracassada, que dificilmente iria longe. Por que razão Cláudia nunca me apresentava aos seus colegas da universidade? Como explicar o desinteresse que me dedicava, mal se aproximando de mim dias a fio? E que dizer das vezes em que não vinha dormir a casa, ficando toda a noite, segundo dizia, na universidade, preparando a matéria da sua tese, fazendo directas ou limitando-se a dormir umas escassas horas, sobre a madrugada, encostada a um maple do seu gabinete? Se me fosse possível mudar alguma coisa na minha atitude – como em tempos fizera o tio Gilberto ao deixar o seu grupo de amigos e entregando-se por inteiro ao remanso doméstico em companhia da sua esposa– certamente o faria. Mas eu não tinha nada que, de imediato, pudesse ou devesse mudar. Só queria que Cláudia se sentisse bem ao pé de mim. Não tinha amigos que me afastassem de casa e a única vez que a tinha deixado sozinha fora nessa triste demanda que me levara a Salamanca e de onde regressara de orelha murcha, com o ego desfeito. Nunca poderia alterar de um dia para o outro a pequenez da minha estatura intelectual nem a configuração das minhas limitações. Ou Cláudia me aceitava tal como era, ou não havia nada a fazer. E decidi que teria de me entender com ela logo que chegasse a casa. Estaria disposto a tudo para não a perder, apresentar-lhe-ia um plano de reabilitação da nossa relação. Seria capaz de voltar à universidade para reiniciar os estudos interrompidos, tentando dessa forma superar o desnível de habilitações que existia entre nós. Talvez, quem sabe, terminada a licenciatura, pudesse também fazer um doutoramento. Estava disposto a esquecer tudo, a pôr de parte as dúvidas que me assediavam e a acreditar de novo no nosso amor.
Cheguei a casa e fui recebido por Cláudia com absoluta normalidade. Isso desarmou-me. Nos dias seguintes, retomado o meu trabalho de vigilante nocturno, foi-me faltando a coragem para lhe falar e debater com ela aquilo a que me obrigara em pensamento.
Hoje, passados vários meses sobre a minha ida a Salamanca, a nossa forma de vida não sofreu alteração. Com os horários de trabalho trocados, eu entro em casa, de manhã, quando ela acaba de sair para a universidade. Vejo-a escassamente durante os dias da semana, e aos domingos, à medida que se aproxima a data de apresentação da sua tese, cada vez lhe noto menos disponibilidade e maior dose de impaciência para comigo. Sinto que esta situação não poderá continuar por muito tempo e algum dia teremos de discutir a sério a nossa relação. Poderá ser na próxima semana, poderá ser no próximo mês, quando me sentir capaz de falar com ela. Até lá, faço por acreditar que algum facto inesperado, algum sopro de vida podem ainda surgir e salvar o nosso casamento do coma profundo em que se encontra. Entretanto, hei-de passar um dia destes pelo alfarrabista do Bairro Alto. Pode ser que ele tenha notícias do representante do sebo e que algo se descubra sobre o Parnaso de Luís de Camões. Estou convencido de que isso modificaria muito, para melhor, a opinião de Cláudia a meu respeito.
D.E.
2 comentários:
Lembrei-me do Conde Lucanor... com seus exemplos... tão a tom com os problemas do seu aluno...(No que respeita ao “tio”)
Mas depois fiquei pensando em quantos casais podem até estar passando por isso, tese de doutorado é um bocado difícil... absorve a pessoa por completo... É sempre a mesma... o equilíbrio entre as demandas de fora, do entorno e a necessidade vital de viver, de ser uma pessoa...
Às vezes, muitas vezes, esquecemos disso...
Bem actual esta história.
Leva a interrogar-me:
O que é principal numa relação conjugal?
Sim, porque afinal, há ou não prioridades?
As prioridades podem ser permutáveis?
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