quinta-feira, novembro 02, 2006

CÂNTICO IMPERFEITO PARA UMA TABERNA DE PROVÍNCIA

Vemo-lo seco de carnes, curvado sobre a torneira da pipa, tremendo-lhe nos dedos ancilosados o copo de vidro grosso que o esguicho vai tingindo de escuro. Sob uma lâmpada frouxa, enquanto larga sobre a tábua do balcão o avio do freguês com nome e registo de fiados inscritos num destrambelhado caderno de folhas de papel pardo, dá para notar que tem barba de vários dias, um olho baço onde há muito não se detém um grão de luz, uma camisa esfiapada e umas calças que não sendo justas nem largas estão presas à cintura por uma volta dupla de barbante.
Do lado de dentro do balcão há um alguidar de tremoços que ressumam sal e servem para puxar a pinga, uma pia onde os copos se passam por água e umas poucas garrafas sujas de vinho tinto com espessas películas secas agarradas aos fundos.
Não dá para perceber se a telefonia da taberna toca alguma moda conhecida ou se debita noticiários espúrios. Nestes lugares onde nos encontramos é tudo silêncio. Só podemos entender o que se fala pelo movimento dos lábios, ou pela linguagem dos olhos, ou pelos rictos que desenham a cara dos homens, trabalhadores de enxada, jornaleiros da gleba contratados na praça pública, as mãos cheias de calos e as gargantas com uma sede igual à da terra.
Nas paredes singram aranhas desajeitadas, alojadas em panos de teias, e há insectos que vêm à luz e que os homens procuram afastar com movimentos bruscos da cabeça e dos braços.
Há um bom bocado que a noite deu em cair sobre os telhados e as paredes das casas, envolveu a torre da antiquíssima igreja, encheu de breu todas as ruas e praças, o coreto, os mármores brancos das lápides do cemitério, a capela de Nossa Senhora do Desterro, as pontes e a fonte. A luz que se côa através das cortinas das janelas e sai das raras montras de lojas de comércio não ousa contrariar o seu império.
Pelo declive que leva à linha do rio sobe agora uma névoa muito clara e lúcida que tirante os voos rasantes de querubins em nada fica a dever à que se expande pelas alamedas destes lugares de onde observamos. Só que aquela, carregada de humidade terrena, é fria e dá cabo dos ossos. Encosta-se então a porta como remédio para o desagasalho, os fregueses ficam do lado de dentro, quem se quiser chegar que empurre as tábuas e entre.
Corre o vinho e o tremoço, muito fiado. De vez em quando, uma moeda cai na gaveta como um badalo choco. Gostaríamos de poder ouvir o que os homens dizem.
Vemos agora umas meninas que assomam à porta por onde se passa da casa para o espaço público da taberna. São puxadas para trás por dois braços fortes de mulher. Aquele lugar não é para elas.
Começa a fazer-se tarde, há um pedaço de tempo que nenhum freguês demanda aviamento, seja de bebidas fermentadas, abafados ou produtos de destilaria, que de tudo há na taberna para satisfação da clientela. Também se vendem pirolitos e laranjadas, mas estas qualidades são as que saem menos, procuradas apenas por mulheres e crianças a horas diurnas. São magros os dinheiros dos homens e os fiados são para arrumar na primeira ocasião. Quando são, folheia-se o caderno de papel pardo, vê-se onde está o nome, a data, o estrago feito, e realiza-se a paga.
Agora é muito tarde. Entra-lhe no corpo moído uma modorra feita de todas as canseiras do dia. Está sentado num pequeno banco com uma mão apoiada na torneira da pipa, cabeceando às arremetidas do sono, prestes a render-se, dorido das horas de trabalho nas terras da vinha, sachando as ervas daninhas, curando, enxofrando. É então que um freguês menos escrupuloso lhe surripia um copo de bagaço.
Entretanto, a névoa já se tornou cerração. Os homens começam a sair da taberna, cada qual para seu lado, casas e tugúrios da vila, casais próximos e menos próximos, apalpando caminhos, os olhos piscos de nevoeiro e álcool. Quem tem pernas monta-se em velhas bicicletas pasteleiras, quem não tem leva-as seguras pelo guiador, como quem conduz um animal pela arreata.
Vemos no relógio da torre da igreja que já passa das onze. Amanhã o trabalho começa ao nascer do sol.
Sai o último freguês, fecha-se a porta. As meninas já dormem?
O nevoeiro cerrado toma conta de tudo. Brota do escorredoiro do rio numa nuvem de muitos braços, mete-se em todas as ruas e vielas, espalha-se nas praças e terreiros, branco, muito branco, como nestes lugares de onde lançamos o olhar sobre a vida e a condição dos homens.
Na taberna há ainda uma frincha de luz que se escoa por baixo da porta, a única que agora vemos na noite da vila, arcano sinal à procura do céu.
Estamos à tua espera.


D.E.

1 comentário:

N.L. disse...

Olá Nunes
Tenho andado ha´muito tempo para lhe dizer que gostei muito e acho que o tempo em que eu vivi la´na Lapa com o Tio Augusto ... assim era realmente fabuloso.... foi realmete o melhor que tive do meu tempo de crianca.
Até outro dia
Beijos
N.