Naquela noite, numa das minhas deambulações pelas ruas da cidade, fui dar à velha praça onde se ergue a estátua do Poeta. Sempre me deslumbrou aquele monumento: a figura grave do grande Vate, com a sua espada e o livro da Epopeia, sobrepujando em bela pose as oito estátuas de pedra de cronistas e homens de letras em redor do pedestal. Obra de escultor romântico, não dá para enganar… Como já passasse da uma da manhã e estranhamente a iluminação do monumento continuasse por desligar, quedei-me a pensar como era absurdo aquele dispêndio de quilovátios num momento em que o país está tão carecido de atingir o equilíbrio das suas contas e quando a propósito de tudo e de nada tanto se fala de poupança de energia. Detido nestas ideações de pendor economicista, exercício a que muitas vezes me entrego, fui interpelado por uma voz de timbre invulgar que logo me pareceu provir das alturas da estátua.
- O senhor, por mercê, veja se me enxota este pombo que está pousado na minha coroa de louros. Já não aguento o fedor das dejecções que me lança.
Embora surpreendido por tão singular pedido, dispus-me a afrontar a ave columbina com o interjectivo xô da praxe, mas não chegou a ser preciso. Como se tivesse ouvido e compreendido o rogo do Poeta, logo deixou a cabeça laureada para se ir instalar, em voo picado, na do cronista Fernão Lopes.
- Vossa Excelência perdoe-me – tartamudeei – mas se bem me parece é uma estátua e as estátuas não costumam falar. É certo que Vossa Excelência não é uma estátua qualquer, mas, mesmo assim, estava longe de imaginar que possuísse o dom da palavra…
Apesar da distância e do desconforto angular com que o observava, vi claramente visto que me lançava um olhar de gozo pela observação proferida, respondendo-me de imediato.
- Em primeiro lugar peço-lhe para não me tratar com tanta formalidade. Sabe, nunca fui habituado… Trate-me por Luís, ou… pensando melhor, por Dom Luís. Afinal, ainda provenho da nobreza galega e, além disso, tenho idade mais que suficiente para ser seu tetravô. Dito isto, fique a saber que mantenho o poder da palavra por especial mercê de Vénus, deusa que sempre me acompanhou e a quem nunca faltei, como é sabido, com a minha veneração literária. Só há um pequeno problema: Vénus não me concede mais do que uma hora em cada mês para desenferrujar esta língua centenária, e sempre a horas mortas, quando não há gente metediça por perto, por razões que naturalmente compreenderá. Como se me afigura pessoa digna, com quem se pode ter uma conversa, vou aproveitar. Talvez esgote o meu tempo deste mês. Só lhe peço para não falarmos de política, pois como sabe é ciência que retalha o coração dos homens e não lhes traz o mor proveito da temperança.
Hesitei um pouco, e arrisquei uma primeira questão.
- Senhor Dom Luís, há grandes dúvidas quanto a alguns dos seus dados biográficos. Sabemos, por exemplo, que o exilaram no Ribatejo por causa de amores no Paço, fossem eles com Dona Catarina de Ataíde ou com a Infanta Dona Maria, filha do Rei Venturoso. Até usou nos seus poemas o nome críptico de Natércia… É verdade que amou a bela e culta infanta? Quem era Natércia?
Aquele olho de grande visionário pareceu ganhar um revérbero de fogo.
- O senhor foi logo tocar no maior segredo da minha vida. Como ousa pretender que venha pôr em praça pública matéria de tamanha delicadeza? Sempre fui um cavalheiro respeitador do bom nome das damas da nobreza. Aliás, sempre respeitei todas as damas, mesmo as ninfas de água doce que frequentavam a taverna Mal Cozinhado, e até defendi junto do Rei, como é sabido, uma boa mulher de família que ia ser deportada por, devido a necessidade, ter praticado a prostituição. Portanto não lhe digo nada sobre esse assunto. Não sou como o Visconde de Almeida Garrett que pôs a nu, naquela incrível peça chamada Um Auto de Gil Vicente, o romance de amor entre o meu colega Bernardim e a Infanta D. Beatriz, a futura duquesa de Sabóia. Ardi em muitas flamas, é certo, mas sempre observei a tradição cavalheiresca dos cancioneiros medievais: nunca se revela o nome da dama.
- Mas, Senhor Dom Luís – argui – o senhor é uma homem do Renascimento, não é um trovador medieval…
- Mas é claro que não sou um trovador medieval. Escrevi sonetos e odes à maneira do estilo novo, embora não tenha desprezado os géneros tradicionais como vilancetes e cantigas. Conceda-me porém a graça de não me catalogar como renascentista, ou maneirista, ou lá o que seja nessa vossa febre de periodologia literária, pois em realidade fui um romântico, avant-la-lettre se quiser, mas um romântico.
- Bem – arisquei – o senhor aprendeu com os clássicos da Antiguidade. Leu Virgílio, Horácio…
- E Plauto, e Terêncio, e Ovídio. E também Petrarca, e Dante, e Boscan, e Garcilaso, e Sannazaro. Conceda-me a graça de me poupar a comentários desse jaez, pois leitura foi ofício que sempre pratiquei, azeite que nunca faltou na torcida da minha candeia.
- Bem, não queria ofender, apenas queria exprimir, no meu falar singelo, que o senhor Dom Luís fez aquilo que todos os renascentistas fizeram: estudar os clássicos da Antiguidade e imitá-los. Por isso é que andou lá por Coimbra, na Universidade, como escolar…
Arrependi-me logo de tão inoportuna observação. O Épico pareceu ficar fora de si, abandonando a rigidez da postura e revolvendo-se freneticamente no cume do pedestal.
- Não diga isso nem a brincar! Assevero-lhe que não andei em nenhuma Universidade. O que aprendi, e não foi pouco, foi no Colégio das Artes em Santa Cruz. Por isso é que nunca me trataram por Doutor como soía acontecer com bacharéis e licenciados e sempre fizeram com o Doutor Sá de Miranda ou com o Doutor António Ferreira. Pensa o senhor que é preciso ir à Universidade para obter formação? Às vezes o melhor é mesmo não pôr lá os pés… Mas retomemos o tema do meu exílio ribatejano. O que eu sofri! Nem as ninfas do Tejo que tantas vezes invoquei em Santarém e em Constância minoraram a minha amargura. Tão perto e tão longe dos amores… Por isso é que me alistei como voluntário para o Norte de África…
- Onde perdeu o olho…
- Sim, onde perdi o meu olho direito numa rixa nocturna na casbá de Ceuta…
Atrevi-me então a observar que não era dessa forma que a tradição nos narrava o infeliz sucesso. Sempre nos ensinaram na escola que o Poeta tinha perdido o seu olho direito em feroz combate com os infiéis, em defesa da Pátria e da Cristandade. E ele riu, a única vez que o vi rir durante a nossa conversa, confessando o seu vicioso comportamento de espadachim quezilento, sempre pronto a soltar a lâmina da espada, como daquela vez em que feriu um tal Gonçalo Borges numa rixa no Rossio, indo bater com os costados na Prisão do Tronco, de onde só saiu para seguir na nau S. Bento para o serviço da Índia.
Neste ponto da conversa, abandonou surpreendentemente a posição erecta que lhe é conhecida e sentou-se no bordo do pedestal, as pernas pendentes em direcção à cabeça do cronista e gramático João de Barros.
- Senhor Dom Luís – atrevi-me a perguntar – em todos esses transes da sua vida nunca recorreu a influências, nunca lhe valeram os amigos?
Uma sombra pareceu correr sobre o rosto de bronze do Épico.
- O senhor, por mercê, veja se me enxota este pombo que está pousado na minha coroa de louros. Já não aguento o fedor das dejecções que me lança.
Embora surpreendido por tão singular pedido, dispus-me a afrontar a ave columbina com o interjectivo xô da praxe, mas não chegou a ser preciso. Como se tivesse ouvido e compreendido o rogo do Poeta, logo deixou a cabeça laureada para se ir instalar, em voo picado, na do cronista Fernão Lopes.
- Vossa Excelência perdoe-me – tartamudeei – mas se bem me parece é uma estátua e as estátuas não costumam falar. É certo que Vossa Excelência não é uma estátua qualquer, mas, mesmo assim, estava longe de imaginar que possuísse o dom da palavra…
Apesar da distância e do desconforto angular com que o observava, vi claramente visto que me lançava um olhar de gozo pela observação proferida, respondendo-me de imediato.
- Em primeiro lugar peço-lhe para não me tratar com tanta formalidade. Sabe, nunca fui habituado… Trate-me por Luís, ou… pensando melhor, por Dom Luís. Afinal, ainda provenho da nobreza galega e, além disso, tenho idade mais que suficiente para ser seu tetravô. Dito isto, fique a saber que mantenho o poder da palavra por especial mercê de Vénus, deusa que sempre me acompanhou e a quem nunca faltei, como é sabido, com a minha veneração literária. Só há um pequeno problema: Vénus não me concede mais do que uma hora em cada mês para desenferrujar esta língua centenária, e sempre a horas mortas, quando não há gente metediça por perto, por razões que naturalmente compreenderá. Como se me afigura pessoa digna, com quem se pode ter uma conversa, vou aproveitar. Talvez esgote o meu tempo deste mês. Só lhe peço para não falarmos de política, pois como sabe é ciência que retalha o coração dos homens e não lhes traz o mor proveito da temperança.
Hesitei um pouco, e arrisquei uma primeira questão.
- Senhor Dom Luís, há grandes dúvidas quanto a alguns dos seus dados biográficos. Sabemos, por exemplo, que o exilaram no Ribatejo por causa de amores no Paço, fossem eles com Dona Catarina de Ataíde ou com a Infanta Dona Maria, filha do Rei Venturoso. Até usou nos seus poemas o nome críptico de Natércia… É verdade que amou a bela e culta infanta? Quem era Natércia?
Aquele olho de grande visionário pareceu ganhar um revérbero de fogo.
- O senhor foi logo tocar no maior segredo da minha vida. Como ousa pretender que venha pôr em praça pública matéria de tamanha delicadeza? Sempre fui um cavalheiro respeitador do bom nome das damas da nobreza. Aliás, sempre respeitei todas as damas, mesmo as ninfas de água doce que frequentavam a taverna Mal Cozinhado, e até defendi junto do Rei, como é sabido, uma boa mulher de família que ia ser deportada por, devido a necessidade, ter praticado a prostituição. Portanto não lhe digo nada sobre esse assunto. Não sou como o Visconde de Almeida Garrett que pôs a nu, naquela incrível peça chamada Um Auto de Gil Vicente, o romance de amor entre o meu colega Bernardim e a Infanta D. Beatriz, a futura duquesa de Sabóia. Ardi em muitas flamas, é certo, mas sempre observei a tradição cavalheiresca dos cancioneiros medievais: nunca se revela o nome da dama.
- Mas, Senhor Dom Luís – argui – o senhor é uma homem do Renascimento, não é um trovador medieval…
- Mas é claro que não sou um trovador medieval. Escrevi sonetos e odes à maneira do estilo novo, embora não tenha desprezado os géneros tradicionais como vilancetes e cantigas. Conceda-me porém a graça de não me catalogar como renascentista, ou maneirista, ou lá o que seja nessa vossa febre de periodologia literária, pois em realidade fui um romântico, avant-la-lettre se quiser, mas um romântico.
- Bem – arisquei – o senhor aprendeu com os clássicos da Antiguidade. Leu Virgílio, Horácio…
- E Plauto, e Terêncio, e Ovídio. E também Petrarca, e Dante, e Boscan, e Garcilaso, e Sannazaro. Conceda-me a graça de me poupar a comentários desse jaez, pois leitura foi ofício que sempre pratiquei, azeite que nunca faltou na torcida da minha candeia.
- Bem, não queria ofender, apenas queria exprimir, no meu falar singelo, que o senhor Dom Luís fez aquilo que todos os renascentistas fizeram: estudar os clássicos da Antiguidade e imitá-los. Por isso é que andou lá por Coimbra, na Universidade, como escolar…
Arrependi-me logo de tão inoportuna observação. O Épico pareceu ficar fora de si, abandonando a rigidez da postura e revolvendo-se freneticamente no cume do pedestal.
- Não diga isso nem a brincar! Assevero-lhe que não andei em nenhuma Universidade. O que aprendi, e não foi pouco, foi no Colégio das Artes em Santa Cruz. Por isso é que nunca me trataram por Doutor como soía acontecer com bacharéis e licenciados e sempre fizeram com o Doutor Sá de Miranda ou com o Doutor António Ferreira. Pensa o senhor que é preciso ir à Universidade para obter formação? Às vezes o melhor é mesmo não pôr lá os pés… Mas retomemos o tema do meu exílio ribatejano. O que eu sofri! Nem as ninfas do Tejo que tantas vezes invoquei em Santarém e em Constância minoraram a minha amargura. Tão perto e tão longe dos amores… Por isso é que me alistei como voluntário para o Norte de África…
- Onde perdeu o olho…
- Sim, onde perdi o meu olho direito numa rixa nocturna na casbá de Ceuta…
Atrevi-me então a observar que não era dessa forma que a tradição nos narrava o infeliz sucesso. Sempre nos ensinaram na escola que o Poeta tinha perdido o seu olho direito em feroz combate com os infiéis, em defesa da Pátria e da Cristandade. E ele riu, a única vez que o vi rir durante a nossa conversa, confessando o seu vicioso comportamento de espadachim quezilento, sempre pronto a soltar a lâmina da espada, como daquela vez em que feriu um tal Gonçalo Borges numa rixa no Rossio, indo bater com os costados na Prisão do Tronco, de onde só saiu para seguir na nau S. Bento para o serviço da Índia.
Neste ponto da conversa, abandonou surpreendentemente a posição erecta que lhe é conhecida e sentou-se no bordo do pedestal, as pernas pendentes em direcção à cabeça do cronista e gramático João de Barros.
- Senhor Dom Luís – atrevi-me a perguntar – em todos esses transes da sua vida nunca recorreu a influências, nunca lhe valeram os amigos?
Uma sombra pareceu correr sobre o rosto de bronze do Épico.
- Fala-me de amigos. Amigos verdadeiros tive poucos, não mais que o número de sílabas de um verso em medida velha. Olhe, tome nota: O Doutor Garcia de Orta, que fez a mercê de publicar uma ode minha no prefácio do seu Colóquio dos Simples e Drogas, o meu primeiro trabalho publicado; Diogo do Couto, que me resgatou em Moçambique, onde passava fome, sem dinheiro para prosseguir a viagem de regresso à Pátria; Heitor da Silveira, moço infeliz, meu colega, morreu à entrada da barra do Tejo; D. Gonçalo Coutinho, chamou-me Príncipe dos Poetas e pôs uma pedra na minha campa rasa; D. Manuel de Portugal, o meu Mecenas, sem ele se calhar não teria publicado Os Lusíadas...
- Os Lusíadas, Senhor Dom Luís, a Grande Epopeia, de que fizeram aquela edição pirata no ano de 1572…
Aqui o Épico voltou a tomar-se de uma invulgar excitação.
- Edição pirata, o senhor não sabe o que diz. Faz-me dó ver o tempo que se tem perdido com essa polémica. Não houve nenhuma edição pirata, saíram ambas da oficina de António Gonçalves, o meu impressor. Lá porque uma edição tem o pelicano do rosto com o bico para o lado esquerdo e na outra está o ridículo palmípede com o bico para o lado direito, idearam logo que a segunda era contrafacção. Já viu bem o trabalho que fizeram? Aqueles risíveis golfinhos, aqueles grotescos motivos vegetalistas, aquelas colunas e arquitrave que escandalizariam Vitrúvio se nelas botasse os olhos? Aquilo foi tudo feito a trouxe-mouxe. Uma edição miserável, cheia de gralhas, indigna do meu trabalho. Digo-lhe que odiei aqueles oficiais impressores. Havia de ver os canecos que viravam à hora de comer. Se a composição se tivesse feito da parte da tarde, quando destilavam a bebedeira, teriam botado no rosto do livro em vez de um pelicano uma galinha, ou um pato marreco, sabe-se lá…
- É de facto surpreendente essa informação que me dá…
- Inventaram muitas coisas a meu respeito, não se admire, podia estar aqui a enumerá-las o resto da noite. Desconhecem a minha vida, e como não sabem, inventam.
Perante esta afirmação, pareceu-me ter chegado a minha oportunidade de brilhar, e fui dizendo:
- Nem pense nisso, Senhor Dom Luís. Todos sabemos que passou dezasseis anos no Oriente, andou pelo Malabar em acesa luta contra o Rei da Pimenta, no estreito de Meca contra os navios muçulmanos, sulcou os mares da China, esteve em Macau como Provedor dos Defuntos e Ausentes onde terá sido injustamente acusado de ilícitos de colarinho branco, como hoje dizemos... Foi preso em Goa, naufragou na foz do rio Mecom…
- Alma minha gentil que te partiste…
- Sim, esse belo soneto à Dinamene que perdeu nessa tragédia marítima… Mas hoje é uma figura inquestionável da nossa memória colectiva. Sem a sua obra Portugal se calhar não existiria, o senhor reinventou a nossa História, foi o grande arquitecto da Língua Portuguesa, o seu labor só merece referências elogiosas…
O Poeta aqui resolveu corrigir-me.
- Também tive os meus detractores, sabe? O Verney, por exemplo, que assinou o Verdadeiro Método de Estudar com o criptónimo de Frade Barbadinho da Congregação de Itália, disse muito mal de mim. Eu desculpo-o, coitado, coisas de racionalistas deslumbrados com Kant e com o progresso das ciências … Mas também houve muitos que se aproveitaram do meu nome. Veja o caso daquele escritor realista, o José Maria Eça de Queirós: veio acabar o seu romance O Crime do Padre Amaro aqui junto das antigas grades do meu monumento. Lá talento tinha ele, não nego, mas estava atrapalhado par pôr um fim na obra. Não admira, com tantos padres e beatas falsas, até um bom escritor pode vacilar. Então desfiou uma conversa reaccionária entre dois sacerdotes viciosos e um fidalgo decrépito e rematou a falar do meu olhar de bronze e dos meus largos ombros de cavaleiro. O que tenho eu a ver com aquele romance naturalista? Nada. Meteu-me ali para se safar, foi só isso… E o Visconde de Almeida Garrett, que no seu drama romântico Frei Luís de Sousa põe aquela patética personagem chamada Telmo a dizer que andou comigo lá pela Índia, em terra de prodígios e bizarrias? Eu desculpo tudo isto, são fingimentos de poetas, mas escusam de estar sempre a bater no mesmo…
- Pelo que vejo, o Senhor Dom Luís está informado de tudo… Tanto conhece a literatura dos Antigos como a dos Modernos…
- Saiba o senhor que estou morto, mas não durmo…
- Sim, efectivamente…
- Veja só o que se passa agora com essa manifestação artística de duvidoso gosto, a Cow Parade. Pois não é que fizeram uma miserável imitação da minha pessoa numa ridícula vaca a que puseram o nome de Vacamões? A isto, sinceramente, esperava ser poupado. Soube-o hoje mesmo. Quem me trouxe a notícia foi o meu colega Ribeiro Chiado que está ali diante de A Brasileira, e soube-o por alguém que veio do Rossio e lhe contou. É incrível! Sabe por que razão procedem assim, sabe? Porque eu vendo, tenho aceitação no mercado, nem preciso de marketing. Ah! se pudesse registar a minha trade mark como fez a Margarida da infraliteratura, havia de ver o dinheiro que ganhava só em direitos de imagem e merchandising… Mas, pensando bem, para que queria eu riquezas, se nunca as conheci nem me daria bem com elas? O meu único rendimento certo foi a tença de 15 000 réis anuais dada por D. Sebastião, justamente por ter escrito Os Lusíadas. Só que o pobre moço nunca deve ter lido o meu poema…
Por esta altura, o pombo que dormitava empoleirado na cabeça de Fernão Lopes descerrou uma pálpebra de sono como se estivesse a suplicar silêncio. Comecei a sentir frio e o cansaço começou insidiosamente a tomar conta de mim. Caminhava depressa a madrugada. O carro da recolha do lixo, vindo das bandas do Loreto, deu a volta à praça com grande estrépito e meteu-se nas ruas do Bairro Alto. Pela Rua das Flores chegava um hálito de rio em maré vazante. Desligaram-se as luzes do monumento.
- Senhor Dom Luís – disse respeitosamente – com a sua permissão, retiro-me; já é muito tarde, e tenho à minha frente um dia de trabalho.
Mas já não me respondeu o grande Vate. Tinha assumido de novo a majestade do seu porte, hirto, e eu vi que era apenas uma estátua que ali estava, uma estátua romântica com uma espada, uma coroa de louros na cabeça, e segurando um livro que encostava ao peito de bronze como se o quisesse meter no coração – coração que as estátuas não têm, por maiores que sejam os sonhos dos homens ou a exaltação poética dos artistas.
Tomei um táxi na Rua do Alecrim e fui para casa tentar dormir.
D.E.
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