terça-feira, janeiro 24, 2006

FLORES DA ÁGUA


Escusam de procurar que não encontrarão no mapa. Para chegar a Lagroal, àquelas quatro casas que brotam do vale brumoso sobre a linha do rio, é preciso conhecer a geografia local, sair da estrada que segue para o Santuário e descer sempre às curvas por uma via de terra batida que o Inverno torna intransitável. Nenhum problema por isso: ninguém vai no Inverno a Lagroal, ninguém lá mora durante esse tempo – as casas ficam vazias e apenas as cabras se aventuram pelas ravinas a morder o mato.

Quem se meter a caminho e esperar encontrar alguma referência toponímica, que se desiluda. Não há placa, por mais singela que seja, que indique o desvio ou a proximidade do lugar. A única que encontramos é já à chegada, umas tábuas toscas:

CAZA DO LELITO
FRANGO ASSADO E ENTREMIADA
VINHOS DO MILHOR
CAMAS E DUXES QUENTES

A força de Lagroal é no Verão. As casas regurgitam de gente, o Lelito faz negócio com os banhistas da fervilhante praia fluvial, com os que procuram cura para achaques do peito e doenças de pele na rudimentar piscina por onde irrompe a água salutífera: de um lado um muro alto, que serve de prancha de saltos e de mirante, onde se debruçam os que se arredam do banho, do outro uma barreira de tábuas por onde a água transborda para a língua do rio, borbulhante, tal como sai das entranhas da terra.

Vem de longe a fama de Lagroal. Há cem anos ia-se de carroça ou no dorso das alimárias. Chegava-se à improvisada piscina, já então com aspecto semelhante ao que hoje persiste em mostrar, e homens e bestas entravam nas águas para se refrescarem. Os homens iam de cuecas ou ceroulas, as mulheres aventuravam-se de corpete e saiote, ninguém tinha fato-de-banho. Pela hora do meio-dia sentavam-se à sombra dos salgueiros na orla do rio e comiam o arroz de coelho com pão de milho, bebiam da farta pinga e dormiam a sesta. Ao fim da tarde tocava-se concertina e armava-se o baile.

Hoje vêm de carro, matrículas francesas aos molhos, e o estacionamento selvagem sobe pela estrada até ao coruto do monte.

Em Lagroal há histórias curiosas que só são conhecidas dos que se habituaram a frequentar o local. O Lelito, por exemplo, chegou ali num certo Verão com uma mão à frente e outra atrás. Tomou o barraco que herdara de uma tia, meteu-lhe obras, e começou a assar frangos e a vender bebidas. Depois teve a sorte de deitar o olho a uma rapariga roliça que ali passava o mês de Agosto por causa de um problema de desregulação dos fluxos menstruais, que não havia médico que atinasse com o mal, e até já tinha ido a uma consulta da especialidade sem que conseguisse resolver o delicado problema. A moça – chamava-se Magnólia – começou a ajudar o Lelito no assador de frangos. Uma grelha de frangos assados, um mergulho nas águas. Levava assim todo o dia. À noite não se conseguia apurar o que é que fazia, mas dava para perceber que cada vez era mais unha com carne com o Lelito. Curou-se, uma cura surpreendente, e nunca mais se separou do assador.

Uma outra história é a do Padre Ramos, sacerdote ainda jovem, que estava colocado numa paróquia próxima e vinha dar missa campal todos os domingos. Ouvia em confissão, ministrava a comunhão. Eram muitas as almas que procuravam aos domingos o refrigério das águas ou que estanciavam no local durante o Verão, mal acomodadas, pois já se viu que não havia hotel ou mesmo pensão modesta, apenas umas casas que ofereciam umas camaratas, homens para um lado, mulheres para outro. Não se podia deixar essa gente sem conforto espiritual. Só que o Diabo é um tentador – isso já se sabe – e o Padre Ramos foi vítima de tentação. Quem fala do Diabo fala do Demónio, Demo, Satanás, Satã, Mafarrico, Lúcifer, Cornudo, Belzebu, Bode-Preto, Tinhoso, Chavelhudo, Maligno, Mico, Peneireiro, Rabão, Diacho, Coisa-Ruim, Pé-Cascudo, Porco-Sujo, Cão-Tinhoso, Sarnento, Tisnado, Zarapelho, Maldito, Beiçudo, Mofento, Lá-de-Baixo, Diasco, Excomungado, Arrenegado, Tendeiro, Tentador, Brazabum, Mal-Encarado, Tição, Bicho-Preto, Azucrim, Dianho, Anjo Mau, Espírito das Trevas – que tudo quer dizer o mesmo, é só escolher, compreende-se agora como é difícil fugir às ciladas que nos arma, tantos os nomes e disfarces que usa. Pois a tentação do Padre Ramos respondia pelo nome de Margarida, uma moça esperta que cursava Humanidades em Bobigny, na região de Paris, onde vivia com os pais, emigrantes. O Padre Ramos, que sempre tinha manifestado uma grande admiração pela cultura francesa, não resistiu. Casou em França, onde fixou residência, e no Verão costuma vir a Lagroal com a mulher e a prole.

Tudo isso se passou muito antes de D. Rosa, mulher vistosa, ter incendiado a orla do rio com as fulgurações do seu biquini amarelo, e de Alberto, o marido, ter granjeado famas incómodas por consentir à esposa tão magnânima exposição corporal. D. Rosa, a quem faltava qualquer coisa, pensava que a fama sem proveito era algo difícil de suportar. Se davam em ornar a cabeça do marido com excrescências ósseas, ao menos que colhesse ela o proveito, que de nenhum mau passo, até ao momento – não podia falar pelo dia de amanhã! – lhe pesava a consciência.

Mas o caso mais perturbante que se viveu em Lagroal – e que agitou toda a região – teve lugar aí há uns dez anos. Começou a correr entre os banhistas, que lhes dissera o Lelito e confirmara uma senhora que sofria de inchaços nas pernas e era funcionária da Câmara, haver um projecto para desviar as águas de Lagroal para o Santuário a fim de aí se instituir um moderno estabelecimento termal de curas miraculosas. Um arquitecto que pertencia à Obra Divina, uma conhecida organização religiosa, já tinha desenhado os edifícios, as fontes e as piscinas que acolheriam os enfermos em desespero. Chamemos as coisas pelo nome: o Santuário atravessava por essa altura uma arreliadora crise de milagres. Depois dos acontecimentos extraordinários do princípio do século, com danças astrais e chusmas de paralíticos a saltarem das cadeiras de rodas, a força milagreira foi abrandando. Só muito raramente se aludia a um ou outro caso extraordinário obrado por santo milagre, e mesmo assim havia logo médicos que torciam o nariz e davam explicações científicas para os pretensos fenómenos: uma úlcera feia que sarava, um membro decrépito que ganhava o vigor antigo, uma aperto do coração que se sumia. Apesar de tudo, como se pode ver, casos de somenos importância… As águas de Lagroal pareciam ser a tábua de salvação para renovados milagres. E houve quem garantisse que um engenheiro dos Serviços Municipalizados já tinha encomendado as bombas e as condutas para levar a água serra acima. De tudo isto se começou a falar em Lagroal por meados de Agosto, altura em que os frequentadores viviam em pleno as delícias da época balnear. O espanto e a tristeza não podiam ser maiores.

Foi então que em Pomar e Dourém – as cidades mais importantes da região – e até nos aglomerados populacionais mais pequenos como Freixarias ou Caxianda, saltou a indignação popular. Como dizia a propaganda da altura, os povos ergueram-se como um só homem para impedir o roubo das águas. Organizaram-se manifestações junto das câmaras municipais, os funcionários dos partidos políticos pediram esclarecimentos às estruturas concelhias, estas às direcções de distrito, e o assunto subiu aos conselhos nacionais, foi discutido no governo e no parlamento, as televisões apareceram, e começou a falar-se de boicote às eleições que se aproximavam.

Com a ajuda das televisões, os boicotes eleitorais são momentos altos de defesa e afirmação dos direitos cívicos. A receita é simples: toma-se uma corrente com o respectivo aloquete – aloquete quer dizer cadeado, usa-se esta variante lexical para dar um cunho mais elegante à prosa; fecha-se com essas alfaias a assembleia de voto; entretanto, tenta-se deitar a mão aos boletins e urnas para queimar todo o material; a Guarda aparece, ameaça restabelecer a ordem democrática, e é nesse momento que algumas cidadãs fazem frente à corporação policial – está comprovado que é mais difícil os guardas tomarem qualquer acção de força contra elementos do sexo feminino; chegam os repórteres das televisões e então, encenação primorosa, o presidente da junta de freguesia pede aos cidadãos que dispersem para que o direito de voto se exerça em liberdade; aumentam os protestos e o presidente da junta retira-se conformado. É nesta altura que o repórter anuncia que, nos termos da lei, o acto eleitoral será repetido na semana seguinte.

Mas não foi preciso chegar tão longe. O Santuário tinha adquirido, entretanto, novos argumentos para relançar os seus milagres e o povo confirmou o direito às águas. Se calhar puseram-se a fazer contas e concluiram pela inviabilidade do projecto. Talvez tivessem encontrado efeitos nocivos de impacto ambiental, talvez mexesse com as aves migratórias, com as espécies protegidas, e não pudesse beneficiar dos fundos comunitários. Algo aconteceu. Nos tempos que correm nada se faz sem demorados estudos prévios, até os grandes projectos abortam. Para os habituais frequentadores, sem meios para demandarem as praias ou as termas, foi uma sorte. Nem chegou a ser um milagre. Há lá milagre maior que os pequenos milagres da vida que todos os anos têm lugar em Lagroal: o corpo bonito de D. Rosa, na borda do rio, sob o esplendor dos salgueiros; o amor de Padre Ramos e de Margarida; as formas arredondadas de Magnólia com a pele em brasa ao lume do assador. E tantos outros de que nem temos conhecimento. Flores da água. E as curas do corpo e da alma, santuário verdadeiro sobre a língua do rio, três meses felizes de Verão. Para o ano há mais. Todos os anos.
D.E.

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