Tinha uma gaveta cheia de cartas de amor, maços de folhas manuscritas em caligrafia esmerada, nem sempre igual, o desenho das letras – largo ou contido – graduando a expressão dos afectos, o lume das paixões.
Sabe-se que não se ama sempre da mesma maneira, ainda que a qualquer paixão se associem por natureza a imoderação, o arrebatamento, o despojamento das faculdades racionais em tudo o que se relacione com a pessoa amada. Como andava frequentemente apaixonada, imagine-se o alvoroço da sua vida em risco permanente de se despenhar no insondável precipício dos sentimentos excessivos.
Mariana – assim se chamava. Uma gaveta cheia de cartas de amor que nunca chegaram a ser enviadas. Começou a escrevê-las aí pelos catorze anos, num tempo de manhãs ternas e tardes ensolaradas. Descobrira a centelha que lhe incendiava a alma e só era capaz de se aventurar pela seara da escrita.
Aos dezoito anos os pais comentaram: “A rapariga ainda não namora.” Aos vinte, concluíram: " Por este andar fica solteira.” E no entanto, a gaveta dilatava-se de inflamadas cartas que lhe brotavam naturalmente como uma respiração. E ia lendo Florbela, Camões, António Boto, poetas maiores do sentimento amoroso.
Aos vinte e três anos terminou o curso universitário, e teve de atender os conselhos familiares no sentido de começar a projectar o futuro, de pensar em constituir família, que não era na orla dos trinta que uma mulher devia dar esse passo. Agora que tinha concluído os estudos e já assegurara um estágio profissional, era despachar-se. Sem precipitações, claro, mas quanto mais cedo melhor.
Mariana lia por essa altura as cartas da outra Mariana, a do convento de Beja, dirigidas ao oficial francês por quem irremediavelmente se apaixonara. Eram tão diferentes as suas cartas. Era tão diferente o sentimento que a envolvia. Ou talvez até não houvesse diferença nenhuma – já não sabia ao certo! – o sentimento possivelmente era o mesmo, a diferença estava no modelo de expressão. O seu sentimento parecia-lhe mais profundo, mais verdadeiro, pela dificuldade que tinha em ser assumido.
Nos primeiros tempos de produção epistolar, os escritos de Mariana versavam essencialmente os aspectos afectivos, os desencontros e as separações, a ausência da pessoa amada e o desejo de a ver, de simplesmente a ver – eram cantigas de amor de um trovador moderno. O fogo das paixões agitava-lhe o viço da carne, desassossegava-a, mas havia sempre a ternura e a paz de uma carta que a resgatava do vazio da noite e a apaziguava madrugada fora. Mas isso foi no princípio. Com o passar dos anos, ultrapassado o patamar da adolescência, as cartas de Mariana foram-se tornando copiosamente sensuais, tons de carmim e ocre sobre o azul da inocência perdida.
E Mariana passou a sair muito, a chegar de madrugada, a fazer e a receber muitos telefonemas para acertar encontros e combinar recreios. Os pais observaram: “Deve ter arranjado namorado, já não era sem tempo.” E começaram a insistir com ela para que lhes fosse apresentado o eleito do coração.
Ela continuava a fazer a sua vida, independente, imune à curiosidade familiar, enquanto a produção de cartas se ressentia daquele frenesi vivencial. Passaram-se muitas semanas sem escrever uma única carta de amor.
Veio o tempo de férias e deixou-se arrebatar por nova paixão. Tinha ido sozinha para a praia, o Verão é sempre uma boa estação para amar. Uma paixão de sal, cabelos ruivos e sardas na pele, o amor em língua inglesa. Sarou as feridas da separação com muitas cartas escritas em inglês, a gaveta voltava à sua antiga opulência. Então os pais, que a viam passar mais tempo em casa, disseram: “Anda mais sossegada, era tão bom que esta rapariga assentasse.” Não sabiam nada da vida de Mariana, nunca souberam nada, uma filha que tinham em casa e que era quase como uma estranha. Sentiam que algo lhes escapava, que alguma coisa não estava bem, se ao menos ela arranjasse namorado para casar. Era mais do que tempo, já ia a caminho dos trinta.
E surpreendentemente, numa manhã de inexcedível felicidade, Mariana anunciou-lhes que iria viver com uma pessoa. Uma pessoa que ela amava, e por quem era amada. “Não há casamento?” – perguntaram. “Com casamento era mais bonito” – atreveram-se a sugerir. Que não, que não havia casamento, uma união livre, para durar enquanto durasse o amor. E combinou-se a apresentação: viria jantar no sábado seguinte.
Que azáfama com aquele jantar! Que cuidados postos na preparação dos pratos! O pai caprichou na escolha do vinho, que a um convidado, para mais sendo homem, oferece-se sempre um bom vinho, bebida nobre, néctar de deuses. Finalmente iam conhecer o namorado da filha, o homem com quem ela iria viver e mais tarde casar, isso estava fora de dúvidas, pois a legalização da situação acaba sempre por acontecer, torna-se tudo mais fácil, e depois há os filhos, é sempre bom os pais estarem casados.
Mariana chegou pelo fim da tarde, o rosto afogueado de emoção, os seios túrgidos de palpitações, trazendo pela mão o seu amor. Chamava-se Ana Maria, tinha no olhar um azul de aguarela pura e a boca era uma água límpida de se beber. E valia bem uma carta de amor.
D.E.
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