sexta-feira, janeiro 30, 2015

XANADU DO AMOR (6)

Mandrake fumava sob a macieira de Cockaigne plantada no seu jardim de Xanadu.
Pensava: – Ela dizia o que não sentia ou exactamente o seu contrário… Fazia-se forte para não ceder aos sentimentos, confiante de uma impassibilidade que não era sua… E ele acreditava no que ela dizia, levava-a a sério, era aliás a única pessoa que a levava a sério… Ele não avançava por temor de ser rejeitado, enquanto ela esperava pelos seus avanços… Mas como podia ele avançar por caminhos que ela própria tornara ínvios?
“Há fogos que se devoram a si mesmos”, disse Mandrake para ninguém.
Pensou: – O amor deveria ser simples como uma árvore ou uma pedra.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

PORQUE ESPERASTE

Foto Kültür Tava 
Porque esperaste, ciente, a pele da minha mão?
-- JORGE DE SENA, "Fidelidade" (1958)


terça-feira, janeiro 27, 2015

A MEU FAVOR

Foto de OLAF MARTENS

A meu favor / Tenho o verde secreto dos teus olhos / Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor / O tapete que vai partir para o infinito / Esta noite ou uma noite qualquer // A meu favor / As paredes que insultam devagar / Certo refúgio acima do murmúrio / Que da vida corrente teime em vir / O barco escondido pela folhagem / O jardim onde a aventura recomeça.
-- ALEXANDRE O' NEILL, "No Reino da Dinamarca"
 

XANADU DO AMOR (5)


“Lotário”, disse Mandrake, “afinal nada é como parece”.
O africano distendeu os bíceps como se tal fosse imperativo para ouvir melhor. Veio-lhe um cheiro a terra e a embondeiros vermelhos, um leão rugiu-lhe numa dobra da alma, a gazela saltou em fuga, o caudal dum rio barrento bateu-lhe nas têmporas.
Nada é como parece, anuiu em pensamento, e foi como se sentisse a derrota de tudo o que abandonara: o seu povo, aquela que poderia ter sido a sua rainha, as noites de luar sentidas de paliçadas de sonho quando os pássaros nocturnos rasgam de luz o silêncio do tempo.
“Estão ambos apaixonados, só que é uma paixão sem saída”, tornou Mandrake. Lotário, porém, já não o ouvia.


domingo, janeiro 25, 2015

XANADU DO AMOR (4)


Mandrake teletransportou-se ao jardim perfumado onde ele e ela passeavam. A noite crescia de eflúvios e estrelas silentes. Quem visse de longe, diria que iam de mãos dadas, o que de facto não acontecia, pois só a proximidade dos corpos deixava essa ideia enganadora.
A poderosa mente do mago escrutinou a mente de cada um deles.
 

quarta-feira, janeiro 21, 2015

XANADU DO AMOR (3)


“Ela dá-lhe sinais contraditórios, com avanços e recuos que minam a confiança da progressão amorosa. É como se quisesse prendê-lo, sem desejar entregar-se. As mulheres…”
“Hum…”, nasalou Lotário, e uma dúvida salpicou de sombra a pele de leopardo que lhe cobria o tronco.
“Quando se encontram, ela tem sempre pressa em partir, como se cedo se fartasse da companhia ou tivesse alguém à sua espera. Ele teme-lhe as astúcias, o bate e foge com que o enleia.”
“Ele é um homem bom”, aduziu o africano.
“De bons homens está o mundo cheio”, replicou Mandrake, “e incompetentes nos lances do amor, também.”
A conversa não foi adiante, o mago sabia perfeitamente onde devia parar. Estava tudo na sua mão, era só urdir a teia.
Hojo acabava de aparecer, avantajado no seu quimono, a anunciar o jantar. Num instante,  Mandrake já estava sentado à mesa.

segunda-feira, janeiro 19, 2015

XANADU DO AMOR (2)


Mandrake vira-a uma vez, na primeira linha das mesas, durante um espectáculo de magia. Não teria mais de quarenta anos, o corpo era sólido, os seios pequenos. Os olhos tinham a cor da luz do céu e na boca fulgia o brilho ardente dos frutos de morder. Tinha feito voar uma pomba até à sua mesa, logo transformada em buquê de rosas, e ela dera um gritinho de surpresa, tocando as flores num gesto sensual e terno.
Ele fornecia lâmpadas e rolos de fio eléctrico para Xanadu. Fizera-se amigo de Lotário a quem insistentemente pedia, como se nunca tivesse chegado a compreender as causas, que lhe falasse da sua renúncia ao trono das Sete Nações Africanas.
O mago lembrava-se com saudade das suas aventuras passadas: a luta contra o crime, mas também de quando mediara Cupido na busca de uma mãe para o pequeno príncipe Randolph. Agora, de novo, aproximava-se do filho de Vénus. Mandrake tinha um interesse mágico pelas coitas de amor.

domingo, janeiro 18, 2015

XANADU DO AMOR (1)


“Ele pensa que ela tem uma vida secreta, uma zona de sombra que não revela aos amigos nem aos familiares mais directos.”
“Como assim?”, estranhou Lotário, passando os dedos pelo feltro duro do seu novo fez, acabado de estrear.
“Ela é demasiado equilibrada e forte para uma mulher que se diz sozinha, sem homem.”, acrescentou Mandrake, enquanto fazia desaparecer, num passe de mágica, a laranja fulva que tinha na mão. “Está apaixonado, já entrou naquela zona de perigo de onde só a magia o pode tirar.”
“Estou a ver”, articulou Lotário no seu falar arranhado, “mas é um caso que não nos diz respeito, acho .”
Mandrake anuiu com um gesto subtil de mãos. Xanadu respirava silêncios e tecnologias, o fim do dia alaranjava-se de sonho. E disse:
“Mas temos de o ajudar. Pela magia, pela hipnose ou por qualquer outra via. O amor…”
Mandrake pensava em Narda, e calou-se.  

sexta-feira, dezembro 12, 2014

A CASA


Às vezes penso que a Casa não existe; que a colina, o largo, as escadinhas que dão para as ruas de baixo e de cima não existem; que os livros, os quadros e o cinema são sonho sobre sonho, irrealidade. A Casa é, para mim, um apeadeiro de ilusões, a pintura inacabada, um poema a escrever, a amiga ou o amigo a quem se dá o braço.
Observo-lhe as traves altas, as janelas, as portas que se abrem para fora como nos desenhos das crianças, e o sonho tem vida. Para lá da ilusão, a Casa existe.
Na Casa já vi e senti muito:
Ler e ouvir ler.
As mantas com cheiro a cinema naquele espaço entre dois prédios, um rio de luz correndo na parede oblíqua.
O inconformismo.
          As cores da paleta.
Os afectos e as afinidades.
Na Casa somos maiores e não estamos sós.
 
Escrito para a CASA DA ACHADA, 11/12/2014

sexta-feira, novembro 28, 2014

EM PARATY

para ti - mensagem

daqui
não posso ouvir o sino das tuas quatro
igrejas nem mirar meu rosto de cair de
tarde nas águas do teu rio-poesia
imitando as velhas árvores.
mas, em cada pedra redonda da tua rua
deixei uma lágrima escondida
que fará brotar mais ervas
(ervas que as mulheres
capinam durante o dia
e à noite continuam a crescer).
(...)
JOSÉ KLEBER (1932-1989), poeta paratiense

 

domingo, novembro 02, 2014

AMIZADES ERÓTICAS


“Kundera enganou-se”, disse-me o meu amigo, piscando os olhos onde vogava um brilho de assertividade.
“Enganou-se”, repetiu.
Foi aí, no fulgor inesperado da repetição, que a coisa começou a interessar-me.
“Enganou-se em quê?”, perguntei.
E ele:
“Enganou-se naquela definição das amizades eróticas. Não é nada daquilo que ele diz, duzentas mulheres em oito anos, isso é a voragem do engate, apenas isso, o gajo confundiu as coisas.”
Admirei-me.
E o meu amigo:
“Sei bem o que são amizades eróticas, tenho várias.”
E acrescentou, o despudorado:
“Amizade erótica, como eu a vejo, é uma amizade marcada pelo erotismo, mas sem consumação carnal.”
Voltei a admirar-me.
“Escuta”, continuou, “é o mais erótico que há: uma amizade que se prolonga sob o signo do impulso sexual, porque há sempre erotismo numa amizade, mas retardada a sua concretização até aos limites do possível… ou do já não possível. Sentir-se que o que podia ter acontecido ainda não aconteceu, a vela do mistério a arder até ao fim, é muito estimulante… Porque depois de se passar ao acto, acaba-se o mistério, é sempre igual ao anterior.”
“Ó pá, mas isso dá mau resultado, elas têm pressa, não gostam de esperar…”
“Eu sei”, respondeu-me o meu amigo, “por isso é que em oito anos não tive duzentas, como a personagem do Kundera, mas apenas duas.”
Saí de ao pé dele e pus-me a deambular pela cidade, precisava de apanhar ar na cara. Há cada tipo mais esquisito! E são estes os amigos que temos!
 

O PODER DAS CARTAS

 
Vi-o cair. Estava eu sentado na esplanada do café, ruminando um jornal do dia na companhia de uma bebida que me trouxera um empregado aciganado, de brinquinho na orelha, movendo-se nuns ténis azuis e brancos de marca indefinida.
Caiu à minha frente como uma maçã de Newton, os pés a fugirem-lhe, a cara no chão.
“Ajudem o rapaz por amor de Deus”, disse uma senhora decrépita que acolitava uma distribuidora de folhetos das Testemunhas de Jeová.
“Dêem-lhe um copo de água, não vá desmaiar”, aconselhou a dona da loja das revistas, uma loira boa de quarenta e tal anos.
Um moço bombeiro que bebia uma imperial prestou os primeiros socorros.
“Um pacotinho de açúcar, por favor, isto deve ser hipoglicémia”, gritou para dentro do café.
O rapaz, branco como uma raspadinha sem prémio, recebeu o açúcar por via sublingual. Olhou em volta: viu o moço bombeiro, a senhora decrépita e a loira boa. Suspirava à medida que se recompunha, e disse:“Podia ter acabado o namoro por SMS, ou apagado o meu nome na sua página do facebook, ou pintado na parede do meu prédio um esquece-me ou um deixa-me… Mas não, teve o requinte de me escrever uma carta, tudo dito e explicado. Isto já não se usa, por isso é que me custou tanto.”
Do bolso do casaco saía-lhe um sobrescrito de correio azul, lívido apesar de azul. Tive pena.
 

sexta-feira, outubro 31, 2014

O KITSCH

Em “A arte do romance”, Milan Kundera define um conjunto de sessenta e sete palavras que são, por assim dizer, o léxico-base ou o léxico-problema dos seus romances. Entre elas a palavra «kitsch», associada muitas vezes, de forma redutora, a «arte de pacotilha», mas que, segundo Hermann Broch, é algo diferente de uma mera obra de mau gosto.
Presente em toda a sexta parte de “A insustentável leveza do ser”, o kitsch de Kundera desdobra-se em declarações tão interessantes como esta: “O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os partidos e de todos os movimentos políticos”.
Há o kitsch totalitário, o familiar, o amoroso... Digo, por minha conta e risco, que um caso de kitsch amoroso é uma mulher convidar um homem para a cama e ele não aceitar. Não tem este meu juízo qualquer conteúdo valorativo, porque o kitsch não é bom nem mau, é simplesmente diferente. Ainda segundo Kundera, o kitsch é a ditadura do coração, e está tudo explicado.
 

quarta-feira, outubro 08, 2014

NOBEL DA LITERATURA 2014

Será um destes dois - o japonês HARUKI MURAKAMI ou o queniano NGUGI WA THIONG´O. Quem o diz não é a universidade, nem a crítica, mas as casas de apostas. Quem sou eu para duvidar de tão esclarecidas organizações? Amanhã saberemos, mas, está mais que visto, a coisa decide-se entre eles. 

quarta-feira, outubro 01, 2014

MURAKAMI, OUTRA VEZ

O segundo conto já cá canta. É a história de um casal que acorda de madrugada com um grande acesso de fome. Como não tinham comida em casa, resolvem assaltar uma padaria. O problema é que em Tóquio, àquela hora, não conseguiram lobrigar padaria aberta. Em alternativa, já desesperados, despejam a vérmina criminal da fome sobre uma loja McDonald´s. Ameaçando os empregados com uma arma, roubam nada mais nada menos que trinta hambúrgueres Big Macs.
Moral do conto: só em estado de grande necessidade se troca uma refeição de pão fresco pela comida de plástico da conhecida cadeia alimentar.
Uma coisa não se compreende: a nota da tradutora na página 44. Eu acho, o que não é uma certeza, que os tradutores têm prejudicado muito o Murakami, ou seja, têm-no baixado deliberadamente de nível, em traduções de segundo e terceiro grau, talvez com o objectivo de o tornarem ainda mais vendável.
Às minhas amigas admiradoras deste muito provável Nobel (umas quatro, no mínimo), recomendo que aprendam rapidamente japonês.  

terça-feira, setembro 30, 2014

TEXTO E SUBTEXTO

Para quem não sabe, digo que não morro de amores por este escritor, eterno candidato ao Nobel de Literatura, mas pode ser que lá chegue este ano. Li hoje, a modos que por dever de ofício, o primeiro conto da colectânea “O Elefante Evapora-se”, uma história com um homem, três mulheres, um gato desaparecido e um pássaro de corda. Das mulheres, que é o que mais interessa, uma é uma espécie de telefonista de linhas eróticas; outra, uma adolescente a cheirar a leite, mas muito atrevida; e a última é a legítima do homem à beira de deixar de o ser. Não está mal, só que ainda ando à procura do subtexto. Como as coisas estão, duvido bem que o venha a encontrar.