quinta-feira, maio 28, 2020

FICÇÕES


A FÍMBRIA DO VESTIDO AZUL

O resultado do teste foi inconclusivo, mas o alívio não veio. Continuava com a boca a saber a bafio, um odor que lhe subia às narinas igual ao que se sente quando se abre a porta de um velho quarto há muito tempo fechado. De noite não conseguia descansar. Crepúsculos roxos e amarelos atiravam-no para a cama onde o sono esquivo lhe moía os ossos, o termómetro furtando-se a marcar a ponta de febre que lhe secava a língua, e pela madrugada sonhava com mulheres nuas e tinha erecções violentas como nos tempos distantes da juventude.
O médico colombiano que ouvia as queixas soltou uma interjeição obscena em castelhano e mandou fazer segundo teste.
Quando se dera o contágio? Ele associava-o àquela manhã em que a mulher fizera a mala e saíra de casa. Descera atrás dela até ao carro estacionado na praceta a uns cinquenta metros do prédio. Implorara-lhe que não se fosse embora, mas ela não o ouvira, estava decidida a romper com o confinamento a dois. Com a precipitação de se furtar às súplicas, a fímbria do vestido azul ficara entalada na porta do carro e ela tivera de voltar a abri-la quando já tinha posto o motor a trabalhar. A última imagem que dela guardava era a da fímbria do vestido azul, luzente e bela como o céu num dia bom. Encaminhara-se então para o restaurante da rua em serviço takeaway, a entrada trancada por uma mesa romba, e tomara um café em copo descartável. Fora aí, pensava, que o vírus o fisgara, o danado esperando a vítima traiçoeiramente refastelado no plástico do copo ou no papel do pacote de açúcar.
O médico colombiano deu uma gargalhada sonora e anotou na ficha o resultado do segundo teste: não conclusivo. As noites continuavam na mesma, o tropel de bacantes no alto das madrugadas, os lençóis amanhecendo com manchas seminais de cor mostarda de Dijon.  
Em desalento, tinha deixado de cozinhar ou encomendar comida. A aparelhagem sonora da vizinha de baixo desfiava em altos berros todos os fados da Rádio Amália. E passou a sonhar com a vizinha da pior maneira: uma velha de carnes flácidas e seios descaídos com o corpo esparramado sobre as suas carnes febris, os movimentos frenéticos ao som do fado corrido, o suor atravessando-lhe a pele como uma lava impura.
O médico colombiano, leitor de Gabriel García Márquez, lembrou-se de Florentino Ariza e dos grandes surtos epidémicos da literatura. Receitou-lhe calmantes e paracetamol.
Então foi a própria mulher que lhe passou a aparecer nos seus delírios oníricos. Passeava-se com outros homens, insinuante e bela, deixava-se possuir por eles... Escreveu-lhe uma carta enviada por correio electrónico, pedia-lhe que voltasse para ficar à sua cabeceira nos dias de vida que lhe restavam.
Foi visitar o médico pela terceira vez. Obrigaram-no a pôr uma máscara, apontaram-lhe à cabeça uma pistola-termómetro e ordenaram-lhe abluções com gel desinfectante. O colombiano tinha vários livros em cima da mesa: Camus, Saramago e outros notáveis descritores de epidemias várias. Marcou-lhe novo teste para o dia seguinte.
De manhã, estava ainda na cama, viu passar no corredor a fímbria do vestido azul. Não era sonho, teve a certeza disso, porque de seguida ouviu descarregar o autoclismo da casa-de-banho e correr as persianas das janelas da sala. Ela tinha voltado.
À tarde foi fazer o terceiro teste cujo resultado deu negativo.


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