terça-feira, fevereiro 05, 2019

O ELOGIO DO FLIRT

MARC CHAGALL, Sobre a cidade (1918), óleo sobre tela, Galeria Tretyakov, Moscovo


Se há passagem das Viagens que sempre amei é essa do Capítulo XLIV, a carta de Carlos a Joaninha datada de Évora-Monte, Maio de 1834. Ela supera em muito outras conhecidas passagens da obra, entre elas a que se tornou insuportável por tão usada que tem sido em jornais, blogues e demais lugares da Internet, quando não na boca de pregoeiros da justiça universal que nem sequer promovem a justiça naquilo a que podem chegar, e que se traduz pela interrogação: «Eu pergunto aos economistas (...) se já calcularam o número de indivíduos que é preciso condenar à miséria (...) para produzir um rico?»
Não chega à beleza da que se segue, quando Carlos explica à Menina dos Rouxinóis o seu relacionamento com as mulheres inglesas: «O tom perfeito da sociedade inglesa inventou uma palavra que não há nem pode haver noutras línguas enquanto a civilização não as apurar. To flirt é um verbo inocente que se conjuga ali entre os dois sexos, e não significa namorar — palavra grossa e absurda que eu detesto –  não significa “fazer a corte”; é mais do que estar amável, é menos do que galantear, não obriga a nada, não tem consequências, começa-se, acaba-se, interrompe-se, adia-se, continua-se ou descontinua-se à von­tade e sem comprometimento.»
É o elogio do flirt, descontando os perigos que ele encerra. Lembro-me sempre da beleza do flirt quando vejo os apaixonados voadores de Marc Chagall. Tanta leveza e seguro desprendimento nada tem a ver com a palavra namorar, grossa e absurda na poética e arriscada concepção de Carlos.


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