“Chamo-me Francisco, Paco para os
amigos, sou de Salamanca, cidade que a uns cura e a outros manca, vou para San
Sebastian, ou Donostia, em serviço da minha empresa, trabalho como
caixeiro-viajante. São saborosas as suas bolachas, não, obrigado, não quero
mais, nunca tenho grande fome pela manhã, daqui a pouco vou à carruagem-restaurante,
tomo um café com leite e fico bem.”
Exprimia-se num castelhano límpido, versátil,
utilizando vocábulos da língua portuguesa em substituição de outros menos
compreensíveis da sua, como, por exemplo, dizer luvas em vez de guantes ou quintas em vez de fincas. Falava dos seus amores. Hermes,
aparentemente alheado do discurso, deitava os olhos para os renques de árvores
que corriam na borda da linha, a grande velocidade e em sentido contrário.
“ Há uma altura certa para dizermos
as coisas”, começou, “ou as dizemos ou calamo-las para sempre. Falo de
sentimentos, já percebeu… Mas talvez não lhe interesse ouvir estas confidências,
já chegam os nossos problemas, por que razão havemos de querer saber os dos
outros?”
Fechei e guardei o pacote das
bolachas, o que deverá ter sido entendido como sinal para continuar.
“Nos afectos sempre fui comandado
pela cabeça, nunca pelo coração. Encarei os amores entre o desejo de entrega e
o receio de me sair mal, e assim cheguei a esta idade, a ponto de me fazer
velho, sem ter tido relações duradouras com mulheres.”
Deteve-se a olhar para Hermes, como
se quisesse avaliar de que forma ele acolhia o seu discurso.
“Os
últimos tempos vivi-os entre a ilusão de um amor e a indecisão em o seguir. Bem
vê, já fiz cinquenta e cinco anos, não sou nenhuma criança, não tenho idade para
andar a experimentar mulheres à espera de ver em qual acerto… Há idades para o
amor, na juventude é uma coisa, agora é outra, lembro-me sempre do que dizia
aquela personagem de Gabriel García Márquez, mais ou menos isto, o amor é
ridículo aos sessenta anos, mas a partir dos setenta é obsceno… Claro que me
agrada a ideia de uma companhia, quien
solo vive, solo muere, embora haja outro ditado, para mal maridar, más vale nunca casar, este aplicável tanto a
homens como a mulheres, parece-me… Está a ver a questão, não está?”
Claro que estava.
“Eu sabia que ela tinha uma simpatia
por mim, depois tornou-se bem mais do que isso e começámos a sair juntos, a
jantarmos aos sábados, a irmos ao cinema, sabe como essas coisas são… Não sei
se o senhor é casado… Ah, não é? Desculpe, mas talvez assim me entenda melhor.”
O salamanquense, salamanquino,
salmanticense ou salmantino, que por todos estes nomes são conhecidos os filhos
da velha cidade do Tormes, parou uns segundos, como que a ganhar ânimo,
enquanto ajeitava a camisa descomposta por entre o cós das calças.
“Só que eu nunca cheguei a
decidir-me”, continuou, “não é que não gostasse dela, mas o meu receio de
falhar falou sempre mais alto. Eu perguntava-me, que posso esperar desta
relação, de uma mulher com um passado, mãe de filhos já homens e à beira de ter
netos, certamente marcada pelos fantasmas de um ou mais maridos, que ao certo e
de verdade nunca soube quantos tivera. E disse cá para mim, Paco, não te metas
nisso, vais ficar à prova e ser motivo de comparação com todos os homens que
passaram pela sua vida, vais ter de aturar a família e os amigos, ser
apresentado em sociedade como ave rara, os tipos a pensarem, olha o gajo, tem
cara de choninhas, é bem diferente dos outros que tinham pinta de galãs e machos
fornicadores. E andei assim durante meses, entre a hesitação e o desejo, a
fugir-lhe sempre que as coisas se encaminhavam para o momento vertiginoso da
consumação carnal. O senhor desculpe, não quero maçá-lo, estou a ser
absolutamente sincero, já alguma vez passou por uma situação como esta?”
Disse-lhe que não.
“Uma noite, quando me despedia depois
de termos ido a uma sessão de cinema, ela convidou-me para tomar uma bebida em
sua casa. É claro que vivia sozinha. Achei aquilo de uma grande ousadia, o que
poderia querer uma mulher ao convidar um homem para sua casa àquela hora da
noite?”
Hermes levantou-se como se
pretendesse dirigir-se à casa-de-banho ou simplesmente desentorpecer as pernas,
mas, estranhamente, não saiu do seu lugar. Olhou os longes de searas fulvas que
corriam para lá das janelas como em ecrã panorâmico, ajeitou a mala na bagageira,
num gesto inútil, e voltou a sentar-se.
“Não aceitei o convite, dei uma desculpa
vaga. Temia iniciar uma relação para a qual não me encontrava preparado. O
senhor está a achar isto estranho, parece-me…”
Disse-lhe que não, cada um tem as suas
maneiras de sentir e nisto de amores nunca se sabe como é. Ele ficou mais
confiante.
“Uma coisa sei, meu caro senhor, as
mulheres raramente toleram as nossas indecisões, mas, pior do que isso, o que
elas nunca perdoam é que possamos alguma vez dizer-lhes não. Sedutoras por
natureza, conhecendo o poder que têm, não admitem uma desfeita. Não voltou a
convidar-me para sair, havia uma reserva da sua parte, como se pretendesse
certificar-se até que ponto ia o meu interesse. Eu esperava desesperadamente
que fosse ela a quebrar o gelo, a dizer-me uma palavra apaziguadora, mas essa
palavra tardava em chegar. Ao fim de alguns meses fui eu que telefonei a
convidá-la para jantar. Que não podia nessa semana, respondeu-me, muito trabalho
no seu escritório, que lhe falasse lá mais para o fim do mês. Voltei a
telefonar-lhe na altura indicada e ela, então, aceitou jantar numa sexta-feira.
As esperanças que eu depositei nesse reencontro, cheguei a acreditar que ela
renovaria o convite para acabar a noite em sua casa, estando disposto a
aceitá-lo, pedindo-lhe embora que me desse um tempo para quebrar os meus medos
e tabus. Nos dias que antecederam o nosso jantar andei dividido entre a
felicidade de poder vir a tê-la nos braços e o temor de não saber o que fazer
com essa felicidade, mas nada aconteceu como pensara. Ela foi amistosa, delicada,
mas sem avanços. Alegou trabalho extraordinário no dia seguinte, que era sábado, e
despediu-se pelas dez horas da noite. Vi-a meter-se num táxi à porta do
restaurante e desaparecer ao fundo da rua por dentro de um cone de sombra que
ela o reflexo amargo dos meus pensamentos. Nenhum aceno de dentro do carro, nenhum
olhar, apenas a lembrança de um beijo rápido já com a porta do táxi aberta.”
O viajante interrompeu a sua
narrativa por uns instantes. Não posso garantir, mas acho que uma lágrima lhe
rebrilhou a um canto do olho.
“Vim a saber”, continuou, “que começou a
andar com um camionista da empresa onde trabalha, um tipo quinze anos mais novo,
de cabelo rapado e brinquinho na orelha. Está a ver, uma mulher diplomada em
contabilidade, uma chefe de departamento, envolver-se com um tipo assim…”
Fiz-lhe sentir que os amores são
alheios à razão e à conveniência social, manifestando-lhe o meu pesar pelo desfecho
do seu caso. E lembrei-me de Willy Loman e Gregor Samsa, dois
caixeiros-viajantes que moram nas estantes da minha casa, qual deles mais
infeliz, qual deles com mais história.
Olhei Hermes, afundado no seu assento,
com uma quase imperceptível tristeza na sombra do olhar. Não podia imaginar que
uma carta de Ofélia lhe seria entregue em Bordéus nesse dia à noite. Via-se,
porém, que uma qualquer mágoa, prenunciadora desses estados de alma em que os
homens acertam contas com os seus sentimentos, devia estar a morder-lhe, ávida
e maldosa, as fímbrias do coração.
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