Efectivamente, aquele chá parecera a Swann algo de precioso, tal como a ela, e o amor tem tanta necessidade de encontrar uma justificação para si mesmo, uma garantia de duração, em prazeres que, pelo contrário, sem ele o não seriam e com ele terminam, que, quando saíra às sete horas para ir a casa vestir-se, durante todo o trajecto que fez no seu coupé, não podendo conter a alegria que aquela tarde lhe causara, repetia para si mesmo: “Seria muito agradável ter assim uma pessoazinha, em casa de quem se pudesse achar essa coisa tão rara que é um bom chá.” Uma hora depois recebeu um bilhete de Odette e reconheceu logo aquela grande letra, em que um fingimento de rigidez britânica impunha uma aparência de disciplina aos caracteres informes que porventura teriam significado para olhos menos prevenidos a desordem do pensamento, a insuficiência da educação, a falta de franqueza e de vontade. Swann esquecera-se da cigarreira em casa de Odette. “Se se tivesse esquecido também do coração, não deixaria que o recuperasse.”
MARCEL PROUST, Em Busca do Tempo Perdido, volume I, Do Lado de Swann, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 236.
MARCEL PROUST, Em Busca do Tempo Perdido, volume I, Do Lado de Swann, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 236.
2 comentários:
Manuel:
Não podia ter, neste fim de tarde, evocação mais profunda, suscitada por esta tua referência a Um Amor de Swann.Fui então buscar, a uma prateleira alta (aquela onde se guardam memórias que não são de toda a hora, sabes?), uma edição da Difel, de 1984, tradução de Miguel Serras Pereira, que alguém me ofereceu, no Natal do mesmo ano...E recordo sempre que a leitura comum nos levava à última frase desta parte do 1º volume da Recherche, frase que para nós era um apropriado epílogo justamente para aquilo que o texto que transcreves prenuncia. Diz Swann: " Dizer que estraguei anos de vida, que tive vontade de morrer, que vivi o meu maior amor por uma mulher que não me atraía, que não era o meu tipo!".
Compreendo, Amélia. São admiráveis em Proust os pequenos detalhes narrativos, cheios de significado, que nenhum outro romancista se lembraria de convocar para a sua obra, e com os quais ele enche páginas e páginas sem que o leitor se canse.
É o caso da frase musical da sonata para violino e piano de Vinteuil (compositor fictício), uma espécie de símbolo do amor entre Swann e Odette, tocada em casa dos Verdurin: é como que se o fio da narrativa passasse para outra dimensão! Isto acontece em muitas outras situações.
Swann, de resto, é uma personagem extraordinária: vê aquela sua inclinação para referir as pessoas com os nomes das figuras dos grandes mestres da pintura, de acordo com as semelhanças que lhes encontrava nos traços do rosto. A jovem ajudante de cozinheira da casa de Combray era a "Caridade de Giotto". Mesmo Odette de Crécy, o seu amor, era a Zéfora de Sandro di Mariano, aliás Botticelli.
Até logo, em Sintra.
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