quinta-feira, novembro 03, 2011

VOU LENDO

Efectivamente, aquele chá parecera a Swann algo de precioso, tal como a ela, e o amor tem tanta necessidade de encontrar uma justificação para si mesmo, uma garantia de duração, em prazeres que, pelo contrário, sem ele o não seriam e com ele terminam, que, quando saíra às sete horas para ir a casa vestir-se, durante todo o trajecto que fez no seu coupé, não podendo conter a alegria que aquela tarde lhe causara, repetia para si mesmo: “Seria muito agradável ter assim uma pessoazinha, em casa de quem se pudesse achar essa coisa tão rara que é um bom chá.” Uma hora depois recebeu um bilhete de Odette e reconheceu logo aquela grande letra, em que um fingimento de rigidez britânica impunha uma aparência de disciplina aos caracteres informes que porventura teriam significado para olhos menos prevenidos a desordem do pensamento, a insuficiência da educação, a falta de franqueza e de vontade. Swann esquecera-se da cigarreira em casa de Odette. “Se se tivesse esquecido também do coração, não deixaria que o recuperasse.”

MARCEL PROUST, Em Busca do Tempo Perdido, volume I, Do Lado de Swann, tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, p. 236.

2 comentários:

Maria Amélia disse...

Manuel:
Não podia ter, neste fim de tarde, evocação mais profunda, suscitada por esta tua referência a Um Amor de Swann.Fui então buscar, a uma prateleira alta (aquela onde se guardam memórias que não são de toda a hora, sabes?), uma edição da Difel, de 1984, tradução de Miguel Serras Pereira, que alguém me ofereceu, no Natal do mesmo ano...E recordo sempre que a leitura comum nos levava à última frase desta parte do 1º volume da Recherche, frase que para nós era um apropriado epílogo justamente para aquilo que o texto que transcreves prenuncia. Diz Swann: " Dizer que estraguei anos de vida, que tive vontade de morrer, que vivi o meu maior amor por uma mulher que não me atraía, que não era o meu tipo!".

Manuel J. M. Nunes disse...

Compreendo, Amélia. São admiráveis em Proust os pequenos detalhes narrativos, cheios de significado, que nenhum outro romancista se lembraria de convocar para a sua obra, e com os quais ele enche páginas e páginas sem que o leitor se canse.
É o caso da frase musical da sonata para violino e piano de Vinteuil (compositor fictício), uma espécie de símbolo do amor entre Swann e Odette, tocada em casa dos Verdurin: é como que se o fio da narrativa passasse para outra dimensão! Isto acontece em muitas outras situações.
Swann, de resto, é uma personagem extraordinária: vê aquela sua inclinação para referir as pessoas com os nomes das figuras dos grandes mestres da pintura, de acordo com as semelhanças que lhes encontrava nos traços do rosto. A jovem ajudante de cozinheira da casa de Combray era a "Caridade de Giotto". Mesmo Odette de Crécy, o seu amor, era a Zéfora de Sandro di Mariano, aliás Botticelli.

Até logo, em Sintra.