domingo, abril 29, 2007

UMA LUZ INDIZÍVEL NOS OLHOS

Nenhuma mulher escapava ao seu olhar de fera desapiedada, de animal insaciado, congeminando lascívias em cada hora do dia por mais trabalho que o prendesse ou maior canseira que lhe morasse no corpo. Chico Gostoso, talhante de profissão, trinta anos de idade, cingia carcaças de borrego e porco, alombava com pesadas pernas de bovino dos frigoríficos para a mesa de desmancha, cortava bifes e costeletas, picava carne, usava a faca e o cutelo com inexcedível mestria – era um amante das carnes, mais das vivas que das mortas.
Trabalhava no mercado. Através da montra aberta sobre os lugares dos vendeiros, procurava com os olhos a Isabel Alface ou a Rita Marmota, peixeira esta, vendedora de frutas e hortaliças aquela, às vezes era alguma freguesa – das mais jovens às mais entradas no abismo da idade, fossem solteiras ou casadas – que lhe despertava a atenção e as libidinosas pulsões. Chico Gostoso ia a todas.
Era voz corrente no mercado que desfrutava, em concomitância, tanto a Rita do peixe como a Isabel das hortaliças, mas nenhuma delas parecia acreditar em tão arrojada deslealdade. Se lhe pediam para jurar, jurava: que era mentira e inveja, nunca fora homem de se comprometer, ao mesmo tempo, com duas mulheres.
Rita era uma mulheraça, trinta e muitos, de boas carnes, desamigada de matrimónios e compromissos estáveis, despachava caixas de carapau e sardinha como quem bebe um copo de água, conhecia à distância as cores de todos os peixes e os cheiros exalados pelas suas entranhas, arrepiava pescadas, escamava abróteas e garoupas como quem limpa o rabo a meninos, era exímia na arte de descongelar e recongelar. Isabel era peça mais delicada e de viçosa idade, uma falsa magra, a cintura fina, as pernas bem torneadas, os seios redondos como meloas, tinha um olhar dengoso que desnorteava e fulgia, a boca era apetecível como um pomo maduro.
Para além destas duas havia a Maria Leiteira, dona de uma venda de queijos e enchidos regionais – morcelas, alheiras de Mirandela, paios e chouriços da Beira Baixa, queijos flamengo, Rabaçal e tipo Serra –, uma rapariga anódina, sem graça, já um pouco atrasada para o sacramento do matrimónio, que a pouca beleza do rosto e as carnes direitas do corpo não puxavam os homens para namoros ou vívidos relacionamentos. Chico Gostoso cortara-lhe uma vez um quilo de fígado de porco, era na hora em que o estabelecimento estava quase a fechar, não havia ninguém por perto, de sorte que, ao entregar-lhe o saco de plástico com o avio, deteve-se a sua mão na da triste feia, de forma tão carinhosa e inesperada que a rapariga subiu aos céus de consolação. A partir desse momento tomou-a um fraquinho pelo oficial das carnes, onde ele estivesse e o pudesse lobrigar lá estavam os seus olhos tristes. Ele é que fez logo marcha atrás com quanta força tinha, arrependendo-se do mau passo : com tanto gado de primeira para lidar, logo havia de ir desinquietar aquela rês famélica e descorçoada.
Os companheiros do mercado – o Zé dos bolos, o Manel dos congelados, o Paulo dos secos – gozavam com Chico Gostoso: É pá!, uma boa posta de peixe há-de ser sempre acompanhada de umas batatas novas e de uns legumes viçosos, só com acompanhamento é que a comida sabe bem; uma fatia de queijo para sobremesa também não vai mal, mas aqui o amigo Chico parece ter medo desse alimento: é que o queijo é magro e mal curado, deve ser por isso.
Durante algum tempo repartiu-se Chico Gostoso entre a dama do peixe e a jovem das frutas e hortaliças. Saía do pé de uma para se encontrar com a outra, lá ia chegando para as encomendas, nenhuma se queixava, que o homem era tão exímio nos volteios do amor como no manejo do cutelo e da faca de desossar.
Quem lhe estragou o arranjinho foi o Joca dos salgados, um sujeito miudinho e invejoso que mercadejava rissóis, chamuças, bolinhos de bacalhau e pastéis de massa tenra, e que, além disso, mau grado as dificuldades do intricado negócio, ainda ficava com tempo para vazar a gula dos olhos sobre as formas deliciosas da Isabel Alface. Despeitado pela má distribuição da riqueza que lavrava naquele mercado – um figurão batendo-se com duas mulheres, quando a ele não lhe tocava nada – resolveu bufar às damas as infidelidades do açougueiro, avançando com dias, horas, sítios em que as mesmas se cometiam, sem margem para dúvidas ou refutações, que para tal andou armado em espia durante um largo período de tempo.
As mulheres conferenciaram entre elas. Se o promíscuo assim agia, gozando com ambas de forma tão leviana, teria de levar uma lição. E em momento azado, quando o Chico Gostoso se fazia a mais um encontro amoroso com uma delas, em vez de encontrar uma encontrou as duas, que logo ali se dispuseram a render-lhe conjuntamente os especiosos favores que antes lhe dispensavam em separado.
Perante o imprevisto triângulo amoroso, vacilou o pinga-amor, aturdido, abalada a sua segurança de macho proficiente, ele que se habituara a conduzir e não a ser conduzido, apavorado com a possibilidade de não dar conta do recado. Ficou gelado, o membro frouxo num grande desconcerto vascular que lhe causou vergonha e medo.
No dia seguinte, todo o mercado comentava o sucedido, rindo de Chico Gostoso e da sua falsa prosápia. Rita Marmota e Isabel Alface, se o viam, chispavam-lhe olhares de escárnio. Alguns, depois dos primeiros momentos de gozo, chegaram a ter pena dele, tão enfiado que o viam, atrás do balcão do talho, lidando a custo com as grossas peças da alcatra e da vazia, levantando a cara, a medo, para as clientes que antes costumava despir com os olhos lúbricos. Chico Gostoso era um animal ferido, parecia que todos lhe tinham perdido o respeito. No entanto, quem passasse pelo lugar da Maria Leiteira e reparasse na triste vendedora de queijos e enchidos, notaria no seu rosto, como coisa nunca vista, uma rara expressão entre a esperança e a felicidade, um desses indefiníveis reflexos da alma que só raramente se fixam no semblante dos mortais, uma luz indizível nos olhos, como se começasse a apreciar a vida ou a acreditar no amor.

D.E.

5 comentários:

Maria Carvalhosa disse...

Blogues que dão que pensar...

Olá Manuel,

Decidi nomear-te porque bem o mereces.

Se quiseres dar continuidade à corrente, passa lá em casa, copia o selo do "pensador" e nomeia outras cinco vítimas.

Um beijo.

bruno cunha disse...

Parabéns!

É 1 excelente conto!

Anónimo disse...

Uy... fatam-me as interjecções em português....
Lindo e triste... pra levar em conta... sobre todo os homens...

João António disse...

Quem tudo quer, tudo perde!
Olha o magarefe!!
Gostei. É um aviso para os marialvas!!

Maurette disse...

Ahhh... consigo ver essa luz indizível avançar, poderosamente, no espaço que separa a Maria Leiteira do Chico Gostoso...
(Maravilha de texto! Parabéns!)