Era seguido por um bode de grandes cornos e pêlo farto, tão chegado às suas pernas que mais parecia bicho de espécie canina. Se parava, logo o animal detinha o seu andamento; se estugava o passo, procurando deixar para trás o seguidor, este dava corda aos cascos e o focinho barbudo não desgrudava dos calcanhares do bípede.
Há uma hora que andava nisto, noite de Lua cheia, por carreiros e estradas de terra de regresso a casa.
O bode aparecera-lhe numa curva do caminho, inopinadamente, como se tivesse saído das funduras do chão. Primeiro, imaginara tratar-se de animal tresmalhado do rebanho ou fugido de algum curral, outra explicação não encontrava, mas depois, observando o seu estranho comportamento e sentido o bafo gelado que lhe deitava nas pernas foi levado para outro campo de ideações.
Aqui anda coisa do diabo, pensou, passando os dedos sob a camisa pelo espaço aberto entre os botões, tocando no crucifixo e no sino-saimão pendentes do fio de prata que trazia ao pescoço. Se fosse homem de rezas, ter-se-ia benzido e pedido auxílio a São Jorge, intrépido matador de dragões e outras bestas ruins. Como não era, meteu a mão no bolso das calças e fez uma figa.
Cada vez mais perturbado com a estranha situação em que se via, chegou ao pé de uma velha casa abandonada onde, poisado numa estaca de vinha, piava um mocho. No alpendre da casa, pendurado numa trave, um rolo de corda grossa, aparentemente sem préstimo, sugeriu-lhe a maneira de se livrar do pertinaz acompanhante. Fez um laço que passou pela cabeça do bode, apertou, deu uma segunda volta, e prendeu a extremidade da corda, com engenhoso nó, ao tronco sólido de uma figueira.
O caprino pareceu aceitar com brandura a vontade do humano, como se revisse nele o próprio pastor, e até facilitou, deixando-se conduzir para junto da árvore. Mas quando se sentiu preso e bem preso, tentando libertar-se sem sucesso, o colar de corda a estrangular-lhe a garganta, tomou-se de ímpetos bestiais, modos assustadores, escoiceando como muar, saltando como se tivesse molas, investindo a cornadura contra o lenho da figueira, pobre vegetal, nunca os da sua espécie haviam sentido algo de tão terrífico e extraordinário desde o dia em que Judas Iscariote, apóstolo falso, se dependurou nos ramos daquela antepassada distante. A um esticão poderoso que pareceu abalar toda a árvore rompeu-se a corda e o animal desarvorou estrada fora levando lume nos cascos e levantando uma grande nuvem de pó.
Lembrou-se então de histórias que lhe contavam quando era menino. O triste fado dos que vagueiam à noite pelos caminhos, transformados em bichos quadrúpedes, atormentando os passantes com a sua presença deletéria. Espojam-se ao pôr-do-sol em pegadas frescas de animais e deixam sair o lobisomem que lhes mora na alma. Convenceu-se de que havia tentado medir forças com um lobisomem, um desígnio estulto, que poder teria um pobre mortal para enfrentar seres e forças sobrenaturais? Mas, ao mesmo tempo, sentiu sair de cima de si um grande peso por se ter livrado daquela indesejada companhia.
Durou pouco a sensação de alívio. Ao chegar a uma encruzilhada, escassas centenas de metros adiante, distinguiu à luz do luar um vulto corpulento de homem que jazia no chão. Chegou-se ao pé para ver e aí gelou-se-lhe todo o sangue do corpo. Tinha os dedos dos pés e das mãos curvos como garras, os olhos abertos e revirados, grossos pêlos saindo-lhe da cara, a boca torcida num ricto de dor. Ao pescoço, estranguladora, a corda com que tinha acabado de prender o bode.
Fugiu apavorado, não conseguiu dormir em toda a noite. Sentia medo e um enorme peso na consciência pela responsabilidade que lhe cabia naquela morte.
No dia seguinte, ao ter notícia da descoberta do corpo, apresentou-se no posto da Guarda e deu-se como culpado do homicídio.
Há uma hora que andava nisto, noite de Lua cheia, por carreiros e estradas de terra de regresso a casa.
O bode aparecera-lhe numa curva do caminho, inopinadamente, como se tivesse saído das funduras do chão. Primeiro, imaginara tratar-se de animal tresmalhado do rebanho ou fugido de algum curral, outra explicação não encontrava, mas depois, observando o seu estranho comportamento e sentido o bafo gelado que lhe deitava nas pernas foi levado para outro campo de ideações.
Aqui anda coisa do diabo, pensou, passando os dedos sob a camisa pelo espaço aberto entre os botões, tocando no crucifixo e no sino-saimão pendentes do fio de prata que trazia ao pescoço. Se fosse homem de rezas, ter-se-ia benzido e pedido auxílio a São Jorge, intrépido matador de dragões e outras bestas ruins. Como não era, meteu a mão no bolso das calças e fez uma figa.
Cada vez mais perturbado com a estranha situação em que se via, chegou ao pé de uma velha casa abandonada onde, poisado numa estaca de vinha, piava um mocho. No alpendre da casa, pendurado numa trave, um rolo de corda grossa, aparentemente sem préstimo, sugeriu-lhe a maneira de se livrar do pertinaz acompanhante. Fez um laço que passou pela cabeça do bode, apertou, deu uma segunda volta, e prendeu a extremidade da corda, com engenhoso nó, ao tronco sólido de uma figueira.
O caprino pareceu aceitar com brandura a vontade do humano, como se revisse nele o próprio pastor, e até facilitou, deixando-se conduzir para junto da árvore. Mas quando se sentiu preso e bem preso, tentando libertar-se sem sucesso, o colar de corda a estrangular-lhe a garganta, tomou-se de ímpetos bestiais, modos assustadores, escoiceando como muar, saltando como se tivesse molas, investindo a cornadura contra o lenho da figueira, pobre vegetal, nunca os da sua espécie haviam sentido algo de tão terrífico e extraordinário desde o dia em que Judas Iscariote, apóstolo falso, se dependurou nos ramos daquela antepassada distante. A um esticão poderoso que pareceu abalar toda a árvore rompeu-se a corda e o animal desarvorou estrada fora levando lume nos cascos e levantando uma grande nuvem de pó.
Lembrou-se então de histórias que lhe contavam quando era menino. O triste fado dos que vagueiam à noite pelos caminhos, transformados em bichos quadrúpedes, atormentando os passantes com a sua presença deletéria. Espojam-se ao pôr-do-sol em pegadas frescas de animais e deixam sair o lobisomem que lhes mora na alma. Convenceu-se de que havia tentado medir forças com um lobisomem, um desígnio estulto, que poder teria um pobre mortal para enfrentar seres e forças sobrenaturais? Mas, ao mesmo tempo, sentiu sair de cima de si um grande peso por se ter livrado daquela indesejada companhia.
Durou pouco a sensação de alívio. Ao chegar a uma encruzilhada, escassas centenas de metros adiante, distinguiu à luz do luar um vulto corpulento de homem que jazia no chão. Chegou-se ao pé para ver e aí gelou-se-lhe todo o sangue do corpo. Tinha os dedos dos pés e das mãos curvos como garras, os olhos abertos e revirados, grossos pêlos saindo-lhe da cara, a boca torcida num ricto de dor. Ao pescoço, estranguladora, a corda com que tinha acabado de prender o bode.
Fugiu apavorado, não conseguiu dormir em toda a noite. Sentia medo e um enorme peso na consciência pela responsabilidade que lhe cabia naquela morte.
No dia seguinte, ao ter notícia da descoberta do corpo, apresentou-se no posto da Guarda e deu-se como culpado do homicídio.
D.E.
(Imagem obtida em jangadabrasil.com.br)
1 comentário:
Muito interessante, Manuel, e bem escrita, esta tua abordagem de um tema com raízes tão profundas na nossa cultura!
Se te interessas por este tipo de lendas e mitos, recomendo-te um livro do Prof. Mariano Calado, insigne romancista e historiador de Peniche que, em Março deste ano, publicou um livro chamado "A Maldição das Bruxas de Ferrel".
Um abraço afectuoso.
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