Lendo o romance Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, dei com aquela parte do primeiro volume em que Françoise, criada da senhora Octave na sua casa de Combray, maneja uma faca para matar um frango que resiste desesperadamente, apesar de ter o pescoço já praticamente separado do corpo. É pelos olhos de um narrador quando adolescente que a imagem nos é transmitida pelo autor. Lembrei-me então dos tempos de infância e da forma como via e sentia a morte que destinávamos aos animais. O que me perturbava não era o facto de se matar um animal para nos servir de alimento, desígnio que achava natural, mas sim a profusão de formas e meios que existiam para o fazer, como se quiséssemos aproveitar as nossas necessidades de sobrevivência para ensaiarmos diferentes métodos de roubar a vida a cada uma das nossas vítimas. Via matar galos e galinhas com uma lâmina afiada que os degolava, lentamente, o sangue escorrendo para uma tigela de barro. Os coelhos eram abatidos com uma paulada atrás da cabeça, agarrados pelas patas traseiras. Aos pombos, de cuja carne se fazia uma saborosa canja, apertava-se-lhes o bico entre o polegar e o indicador por cima de um estrebuchar de penas. Os porcos eram deitados sobre um banco comprido, amarradas as patas, bem seguros por robustos braços de homem, para que uma faca poderosa pudesse sondar-lhes o coração, cavando o grosso canal por onde singrava o sangue até ao vazadouro do alguidar. Aos carneiros e ovelhas metia-se-lhes um ferro afiado pelo alto da cabeça, deixando o animal prostrado, olhos revirados e língua pendente de um canto da boca, escorrendo baba, pronto para ser aberto, esfolado e esquartejado. Encontrei mais tarde nestas diferentes formas de matar um reflexo da inteligência humana, uma arte capaz de estabelecer para cada vítima o modus faciendi adequado, bem diferente dos processos usados pelos chamados irracionais para matar as suas presas, sempre da mesma forma, segundo modelos de sobrevivência e conservação das espécies radicados nos mais básicos instintos. Quando encontramos pequenos chumbos na carne de lebres e perdizes, anzóis e pedaços de fio na boca de peixes, deparamos apenas com manifestações dessa arte de matar que a espécie humana tão bem cultiva. Em relação aos nossos semelhantes também se desenvolveram técnicas de morte que primam pela variedade, pela escolha criteriosa, oportuna e conveniente, fundadas em tradições e pressupostos de raiz cultural e religiosa. Se hoje ninguém morre crucificado é porque essa foi a forma de morte infligida ao que veio em nome de Deus, e praticá-la seria atentar contra o que de mais profundo existe na nossa moral cristã; mas recorrer à forca, como os sistemas penais do mundo ocidental sempre fizeram, e continuam a fazer, é servirmo-nos de um método de matar que a insídia de Judas Iscariote, dependurado na triste figueira, parece legitimar. Entre os povos tupis do Brasil, como podemos ler nos textos de escritores e poetas do primeiro romantismo brasileiro, a condenação à morte consumava-se com um golpe desferido na cabeça do condenado com o tacape, uma espécie de poderoso cacete. A morte por envenenamento, praticada ao longo dos séculos, tem raízes profundas na herança cultural da Antiguidade Clássica: Sócrates, o grande filósofo de que nos fala Platão, foi condenado a morrer por envenenamento. Envenenada morreu Fedra nas tragédias clássicas de Eurípides, Séneca e Racine. Morreram na fogueira milhares de vítimas da intolerância religiosa e política. António José da Silva, o Judeu, comediógrafo, foi queimado em auto-de-fé na presença de D. João V. Gomes Freire de Andrade, conspirador liberal, foi mandado enforcar, tendo sido queimado o seu cadáver, pelos que governavam o Reino em 1817, conforme ensina a História e nos é revelado, entre outros, pelo texto dramático de Sttau Monteiro Felizmente há luar. Ao longo dos tempos, distantes e recentes, muitos conheceram a morte diante de pelotões de fuzilamento, sentados em cadeiras eléctricas, injectados, garrotados, sob o fragor de bombardeamentos e explosões, em desterros de fome e de sede. Grande é a criatividade humana nesta arte de matar semelhantes e dissemelhantes.
Quando nos pomos a ler um roman-fleuve como o de Marcel Proust, pode bem suceder que a propósito de um tema ou passagem do livro nos surja um pequeno rio de pensamentos e palavras. Pode até não passar de um simples regato. Mas esse fluir de águas, essa corrente do espírito, maneira de viajarmos por tempos e espaços, é um dos grandes tesouros que habitam os livros. É despertarmos ideias e sentimentos que estão dentro de nós, ligarmos o fio das emoções, deixarmos correr a escrita. Falarmos de morte, cantando a vida. Esse é um elogio que deve ser feito à leitura.
Quando nos pomos a ler um roman-fleuve como o de Marcel Proust, pode bem suceder que a propósito de um tema ou passagem do livro nos surja um pequeno rio de pensamentos e palavras. Pode até não passar de um simples regato. Mas esse fluir de águas, essa corrente do espírito, maneira de viajarmos por tempos e espaços, é um dos grandes tesouros que habitam os livros. É despertarmos ideias e sentimentos que estão dentro de nós, ligarmos o fio das emoções, deixarmos correr a escrita. Falarmos de morte, cantando a vida. Esse é um elogio que deve ser feito à leitura.
D.E.
1 comentário:
Manuel,
Acompanho-te, surpreendida, neste elogio à leitura e dou por mim a concordar e a dizer de mim para comigo: "bem pensado. Por que não fazê-lo por aqui?"
Um beijo.
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